quinta-feira, 14 de novembro de 2013

A coragem de ser quem se é

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O meu corpo e o meu coração poderão fraquejar...” (Salmo 76.26).

Não ter com quem realmente contar diante das “más notícias” da vida é uma fonte de grande angústia para qualquer ser humano com um mínimo de sensibilidade. Às vezes nem entre alguns amigos, certos membros da família, da comunidade, e colegas de trabalho menos ainda, contamos de fato com alguém. Por quê? Porque está cada vez mais difícil encontrar companheiros/as para a hora da dor em uma sociedade que consagra a vida indolente, feliz e, de preferência, sem grandes dilemas, principalmente aqueles para os quais não temos resposta nem tampouco paciência para lidar. Falar em depressão, transtornos, fraquezas, bipolaridades ou neuroses com esse tipo de gente é o mesmo que lançar pérolas aos porcos – se bem que os porcos, por razões óbvias, não julgam nem têm preconceitos semelhantes aos que, diariamente, vemos especialmente no meio religioso.

Não escrevo para demonizar esse tipo de gente. É uma constatação apenas de que elas estão cumprindo fielmente, e um tanto irrefletidamente, aquilo que o espírito do tempo – de louvor ao sucesso e de exorcismo do fracasso – lhes designou.

Percebo, contudo, que ainda existem pessoas singulares, cuja singularidade advém precisamente do fato de que têm tanto aprendido quanto inspirado no mundo àquilo que Paul Tillich (outro espírito singular) chamou de “a coragem de ser”: de ser quem se é e de ser “como uma parte”. Somos (ou podemos nos tornar) quem somos de verdade à medida que admitimos jubilosa e corajosamente nossa parcialidade, precariedade e provisoriedade em quase tudo na vida, tanto no sentido de que não damos conta da existência, como no de que partilhamos nessa mesma existência de fragilidades muito semelhantes.

Esta é a coragem que nos permite viver com integridade as dores e alegrias de ser-no-mundo; ela também nos convida à partilha com outros (pessoas singulares que Deus graciosamente coloca em nosso caminho) e descobrir que, de modos diferentes e em intensidades que não podem ser mensuradas, todos podemos fraquejar e fraquejamos. Esta possibilidade concreta nos humaniza. Assumir e viver o que somos, com nossas luzes e sombras, por mais doído que seja, não nos destrói, mas nos torna mais humanos, como não deixa mentir o exemplo do “Deus Crucificado”. Negar, sublimar o ignorar este lado da vida é, portanto, nos desumanizar. De pessoas singulares, assim, congraçamo-nos no indiferentismo fingindo (e pregando) felicidade e paz, onde o que existe é mais complexo; perdemos a coragem do coração, tornamo-nos pusilânimes.

Por isso é que, como contrapartida, sou fã dos poetas bíblicos, pois eles mostram que a Bíblia é um livro repleto de histórias escritas, narradas, vividas e dramatizadas por gente como você e eu, e por um tipo de pessoa que eu gostaria de me tornar: inteira, corajosa, compassiva, demasiadamente humana. Viver na obscuridade não é saudável pra ninguém; negar que ela nos ronda, muito menos. Limitações existem e só são entraves para quem, luciferianamente, tem síndrome de Deus. Aos que creem e vivem sob o poder de Deus, porém, elas são caminho de liberdade. Só quem reconhece a fragilidade do próprio coração pode dizer com trêmula convicção: “... mas Deus é a força do meu coração e a minha herança para sempre”.

Jonathan

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Todo mundo é pródigo!

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Assumir a sua, a minha, a nossa prodigalidade é parte de nossa condição humana, para ser mais humanos. Eis a visão da alegoria bíblica do “filho pródigo” em Lucas: não existe ninguém que, em alguma dimensão ou extensão de sua vida precária, não seja/ esteja perdido...

Então, quando dizemos, por exemplo, que a missão da igreja no mundo é conduzir “gente perdida” a Deus, o que isso efetivamente quer dizer?

Para muitos, na prática isso significa que já fomos achados, estamos na casa do Pai, que tudo está sob perfeito controle, portanto não somos perdidos, os “outros” é que são.

Se nutrirmos algo semelhante em nosso coração, não podemos estar mais fora do prumo divino, pois denegamos nossa condição humana precária e carente da graça em nome de algo “maior”; usurpamos uma suposta divindade e, uma vez mais, aceitamos a oferta da serpente.

Essa história, contudo, mostra que é possível permanecer perdido, mesmo sem nunca se deixar perder, sem nunca ter partido, como é o caso do filho mais velho.

Esse é um dos paradoxos da parábola: quando dizemos que já fomos achados, que nada mais resta para ser redimido, aí é que perdidos estamos e de modo permanente, invisível. Quando, porém, reconhecemos que perdidos estamos, mesmo que por pouco, significa que há esperança de ser encontrado ou reencontrado...

Isso, no entanto, não é a desgraça da missão de Deus, mas a sua qualidade; a assunção de nossas fraquezas e da condição humana é o que nos torna úteis nesse mundo. Parafraseando Segundo Galilea, o que não pode ser assumido também não pode ser redimido. Cristo assumiu nossa condição para, só então, redimi-la.

Sendo honesto, então, preciso admitir isso: sou um eterno reincidente! Não há um dia sequer de minha vida em que, por muito ou por pouco, eu não caia. Essa é uma verdade inconveniente sobre mim: eu vivo caindo! Nem todos sabem; poucos gostam de admitir, mas Deus o sabe...

A inconveniência dessa verdade está não somente no fato de que ela me expõe como pessoa, mas também de que ela mostra que o cair não precisa ser inimigo do estar de pé, de levantar, de poder se reerguer. Na verdade, como diz o ditado, “para cair, basta estar de pé”. Ou, melhor ainda, como disse Paulo, “quem pensa estar de pé, cuide para que não caia”. Cuide, e não negue; cuide, e não reprima; cuide, o que significa, lide com a possibilidade sempre iminente da queda...

Por isso, é importantíssima no filho mais jovem a atitude de reconhecimento, em que se admite: “Estou perdido”! Sem isso, não há encontro possível. Quem nunca se sentiu perdido na vida não pode reconhecer a alegria e a satisfação de ser encontrado...

De muitas e variadas formas eu fui encontrado, assim como de muitas e variadas formas eu continuo perdido; tentando não cair, e ainda assim caindo vez por outra; levantando-me pela graça e tentando prosseguir na força que Deus, a família, os amigos, a comunidade suprem.

Assim sou eu, assim é você, e assim também é Deus. Como assim, Deus? Sim, Deus! Ao reler a parábola, percebo que não somente os dois filhos são as figuras vulneráveis e perdidas da história. O pai também é. Não da maneira dos filhos, é claro; o pai é “perdido de amor”.

É essa imagem de Deus que a parábola me revela: de um Deus de amor, que também se encontra “perdido” em busca de seus filhos perdidos e não descansa até que, finalmente, os encontre. Um Deus que nos ama com um amor incondicional, incansável, imponderável, insano e nada justo aos nossos olhos. Um amor que, como defende Brennan Manning, “abraça a todos sem exceção. De novo, o amor de Deus é tolo”. Desejo aprender mais dessa tolice divina para, quem sabe, me encontrar mais humano.

Jonathan

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Sexualidade e espiritualidade: uma fusão libertadora (Parte Final)

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As considerações até aqui feitas são óbvias, básicas e elementares ao pensamento cristão sobre o tema. Mas o óbvio e o básico há muito têm sido negados na prática histórica das igrejas. Penso que o sexo foi criado por Deus para ser benção. E ser benção implica ser concebido num contexto de amor e responsabilidade, afinal de contas “tornar-se uma só carne” não é algo banal, embora em nosso mundo tenha se tornado. O que me encabula demais é que a igreja transformou a sexualidade em sua “pedra de toque”; ela tem as interpretações corretas e as vias certas a se seguir. Nada pode sair desse eixo, muito menos cabe questionamento. E assim, vamos transformando em maldição aquilo que Deus declarou como sendo benção. Cortamos as verdades de Deus do tamanho de nossa mente teológica auto-suficiente e assim perdemos a dimensão de honestidade intelectual, que deveria ser tão cara a qualquer cristão. Tão focados nos costumes e nos dogmas, nos omitimos de nos acercar da realidade e respondê-la com relevância.

Não deveríamos, por exemplo, ser cínicos ao ponto de ficar dizendo “sexo é bom”, do nosso confortável mundo matrimonial, e olhar para os jovens e dizer “mas você não pode, viu”. É como colocar um pote de sorvete, com tudo o que se tem direito, em frente a uma criança, dizer “hum, está muito gostoso”, para em seguida afirmar: “Ah, mas você não pode, porque ainda não tem idade pra comer essas coisas”. É torturante, desonesto e uma negação da vida. Diálogos honestos e conscientes, tanto da realidade, quanto da complexidade que envolve o tema, são necessários. Falar do tema de uma maneira verdadeiramente humana, como diz Kierkegaard, é necessário.

Mas, para falar de maneira humana, é preciso amar e aceitar a humana condição – onde vige tanto a luz quanto as trevas, tanto a porção simbólica quanto a porção diabólica. Pois, como lembra Galilea, o que não pode ser assumido não pode ser redimido. Cristo assumiu nossa condição para, só então, poder redimi-la. E é precisamente aqui que, de acordo com Galilea, reside a originalidade e autenticidade da espiritualidade cristã:

Em que seguimos um Deus um Deus que assumiu a condição humana, que teve uma história como a nossa, que viveu nossas experiências, que fez opções, que se entregou a uma causa, pela qual sofreu, experimentou êxitos, alegrias e fracassos, pela qual entregou sua vida, esse homem, Jesus de Nazaré, igual a nós menos no pecado, no qual habitava a plenitude de Deus, é o modelo de nosso seguimento.[1]

Abraçar nossa condição é uma forma de humanização da espiritualidade cristã, pois nela somos convocados a assumir jubilosamente quem somos, como e para quê fomos criados, reconhecendo também o desvio em que vige a fraqueza e a deficiência que nos são inerentes. Uma humanidade mais divina (espiritual) e mais humana ao mesmo tempo é aquela que não teme suas obvias deficiências, mas as reconhece; é aquela em que a vacância ou o esvaziamento de poder (humano) é um convite ao poder divino e a um divino caminhar, em que não apenas trilhamos por caminhos, mas criamos caminhos onde já não há mais caminho. E esta é uma atitude tremendamente libertadora, pois abandonamos o controle, a ânsia por poder e por dominação, para encontrar o livre caminho do amor. Outra vez cito Galilea: “Nós nos humanizamos na medida em que deixamos que Deus seja Deus, amor gratuito, não passível de manipulação e, por isso mesmo, capaz de deixar o homem ser plenamente homem, também livre e não passível de manipulação”.[2]

Finalmente, andar com Deus é o modo mais eficaz e sublime de se humanizar e de se obter dignidade humana. Pois não são nossos recursos, trabalho e inteligência, ou nossas identidades periféricas e de gueto (ser evangélico, ser negro, ser gay, etc.) que nos “dignificam”, mas é a graça que nos dignifica e que dá sentido à vida. De igual modo, o espírito de gratidão e de gratuidade nos dignifica, à medida que representam a admissão de que fora de Deus não temos mais que uma mera ilusão de realização, enquanto em Deus nos realizamos em simplesmente sermos aceitos como seus filhos e filhas. É na obtenção dessa dignidade em especial que nos capacita para, e legitima a, luta pela dignidade de nossos irmãos e irmãs de caminhada na vida, como um processo recebido, gestado e orientado em e para Deus e sua justiça, vontade e glória.

Jonathan

Referências bibliográficas


[1] GALILEA, Segundo. Seguir a Cristo. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1979, p. 23.
[2] GALILEA, Segundo. O caminho da espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 195.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Sexualidade e espiritualidade: uma fusão libertadora (Parte II)

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Resulta da desconfiança mencionada ao final do primeiro post, que a sensualidade só é licita no universo das sensações espirituais, mas não no da sexualidade. Neste ínterim, a espiritualidade não pode se desenvolver na mesma casa em que dormita a sexualidade, por isso ou transportamos a espiritualidade para outro lugar – se no corpo ou fora do corpo, Deus o sabe – ou fazemos de tudo para manter adormecidos os estímulos à sexualidade, tentando anulá-la no ser. Temos, assim, de um lado, uma sexualidade desespiritualizada (neologismo) e uma espiritualidade assexuada e, como tal, desencarnada. O problema disso tudo é, de novo, que continuamos criando gente mais esquizofrênica, doente e mal resolvida, com rostos envernizados num ambiente altamente hipócrita de negação, culpa, sublimação e vigilância. E as pessoas vão fingindo que são felizes com seus casamentos sexualmente mornos, com seus namoros monitorados (até certo ponto), com suas escapadas culposas, e com a sua escolha por “esperar” o momento certo e o príncipe ou princesa encantados que Deus reservou, dentre tantos/as pretendentes no mundo, exclusivamente para elas.

Uma espiritualidade sadia, porém, começa com o entendimento de que o maior pecado talvez seja o de desnaturalizar, segmentar, segregar ou esquartejar aquilo que o Criador fez para que se mantivesse unido e declarou como sendo bom e natural. Nossa mentalidade religiosa ou teológica é tão viciada nos preconceitos culturais que somos capazes de aconselhar a pessoa (ou digamos, um casal) para que ore à beira da cama antes do coito nupcial, mas torcemos o nariz e somos moralmente judiciosos quando alguém narra a história de outro alguém que se sentiu excitado (com “tesão”) na igreja durante o louvor ou a pregação, por uma palavra um um apelo mais sensual. Isso é esquizofrenia hipócrita e desumanizante, caros/as companheiros/as!

No livro Deus e sexo (2011), Rob Bell propõe uma síntese interessante sobre a interação entre espiritualidade e sexualidade. Quando levamos em consideração a indivisibilidade prática – e menos a divisibilidade teológico-doutrinaria – do ser humano, torna-se natural e obvia esta conexão, pois elas estão juntas, queiramos ou não. Então, pensar teologicamente, agir pastoralmente e viver integramente a partir de tal junção torna-se um meio de corrigir rotas esquizofrênicas.

Primeiro, porque as histórias da Bíblia convergem para a “conexão”, de um Deus que a todo o momento deseja relacionar-se com seu povo e sua criação, mas cuja intenção nem sempre é genuinamente correspondida. Isso, devido aos muitos obstáculos criados pelo ser humano, que o conduziram ora a um relacionamento superficial com Deus, de barganha, legalismo e expectativas, ora a uma rejeição prática, à medida que se assentiu ao convite tentador da serpente para ser “como Deus”, declarando, assim, sua (nossa) independência.

Segundo, porque as pessoas de nosso tempo estão cada vez mais “antenadas” a tudo que acontece ao seu redor, e cada vez menos capazes de contrair experiências duradouras e profundas, vivendo, portanto, uma história sem raízes, relacionamentos descartáveis, vidas que não se conectam a outras vidas, e cujo sentido é, na realidade, um não-sentido, uma vez que tudo passa a girar em torno do “sentir”. Fez sentido?

A posição de Bell, todavia, é suficientemente clara: você pode, de diferentes maneiras (e o sexo é uma delas), “estar” com um número variado de pessoas e não permanecer conectado a nenhuma; de igual modo, pode-se ter uma gama apreciável de performances rituais e “espirituais” para Deus ou até gabaritar na prova de conhecimentos bíblicos, sabendo a Bíblia “de cabo à rabo”, e não saber absolutamente nada sobre Deus, visto que Deus é amor, e está muito mais interessado na intensidade de nosso amor que na quantidade de nosso conhecimento, sendo o verdadeiro saber – dádiva Divina – qualidade inerente daquele que ama, conforme Deus ama (ágape).

E o amor pressupõe conexão e profundidade. E o sexo com amor é o prazer que conecta, liberta e completa os amantes para serem um do outro e um para o outro. Não foi assim que Deus designou no princípio? Da costela do homem, Deus havia criado a mulher. Eles não apenas tinham a mesma natureza (húmus – pó – humano), mas haviam sido criados para viver em permanente conexão entre si, e com seu Criador. “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne” (Gn 2.24). Uma só carne, ser, família, corpo, alma e espírito, indivisíveis!

O sexo é uma dessas bonitas e benditas expressões da sexualidade. Duas pessoas diferentes e especiais se unem; seus corpos se tocam, se interpenetram; de duas carnes, uma só se faz. E a conexão não está apenas nos corpos que se juntam, mas nas almas que se encontram (onde está o corpo está a alma). Assim, pode-se dizer como a mulher no Cântico dos Cânticos: “Eu sou do meu amado, e o meu amado é meu”. E assim se completa o desejo do Senhor: pela realização do ser humano, como mais fina expressão de seu amor e presença Nele e com Ele. Logo, esse amor não pode ser algo abstrato ou virtual, como um beijo que se manda pelo Skype, ou uma mensagem pelo Facebook. Mas é a presença de Deus reverberando em nós, através de relacionamentos vivos e reais entre pessoas de carne e osso; é o Deus-concoso-aqui-já-sempre.

O pecado, portanto, não habita na sexualidade ou no sexo em si, nem em nada que lhe diga respeito. Ele habita, sim, no ser indivisível. Enquanto o ser estiver corrompido, todas as suas relações também estarão. O amor, por sua vez, é o “vínculo da perfeição”, como diria João. Onde houver amor, haverá o sólido convite e possibilidade para que vivamos a plenitude de Deus com alegria, gozo e liberdade, como expressa a célebre frase de Agostinho: “Ame e faze o que quiseres”. Sem amor nada somos e tudo o que fazemos torna-se sem sentido, parte de uma precária provisoriedade.

(Continua…)

Jonathan

domingo, 13 de outubro de 2013

Sexualidade e espiritualidade: uma fusão libertadora (Parte I)

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Antes de tudo, começo dizendo que espiritualidade, para mim, tem a ver com um modo de ser, pensar e agir daquele ser que nasceu de novo, nasceu do Espírito, e agora é “espírito” (ser novo vivente). Isto não significa que se desencarnou ou desumanizou. Pelo contrário, ele/a se re-humanizou no Espírito, nasceu de novo, é novo humano. Jesus, em seu diálogo com o fariseu Nicodemos no Evangelho de João, disse que: “A não ser que alguém se submeta a essa criação original, a criação na qual ‘o vento pairava por sobre as águas’, o invisível movendo o visível, um batismo para a nova vida, não lhe será possível entrar no reino de Deus”, e que “a pessoa que tem um nascimento interior é formada por algo que você não pode ver nem tocar – o Espírito – e se torna espírito vivo” (Jo 3.5, 6 – Tradução A Mensagem).

No começo de toda vida espiritual, portanto, está a experiência de criação de um novo ser pelo Espírito, ser este que não mais se rende à sua própria vontade, mas à vontade do Pai, revelada em sua Palavra e encarnada na Pessoa de Jesus Cristo.

Na prática, porém, “espiritualidade” é um tema muito mal-elaborado e também muito mal-compreendido. Nossa forma de compreender e elaborar nossas “espiritualidades” é marcadamente cultural. E nossa matriz cultural de concepção da espiritualidade ainda, salvo exceções, é platônica e dualista. O platonismo (ou o neoplatonismo) fez um grande estrago na visão (teológica) cristã (o que inclui a espiritualidade); isto, pois negou a corporalidade (como dimensão essencial humana), a materialidade, nos afastando desse mundo para um plano ideal, transcendente ou futuro. A inevitável associação da palavra com um mundo à parte, para o qual migramos, de tempos em tempos, em busca de enlevo e paz na alma, fez com que essa espiritualidade perdesse qualquer contato mais significativo com a situação vivida. Daí provém muitas das críticas a alguns modelos de espiritualidade como sendo “alienantes”, “desencarnados”, sem repercussão na vida e sem conexão com a missão. Daí a necessidade de superar nossos dualismos e esquizofrenias platonizantes.

Essa superação, porém, segundo certa interpretação, seria algo improvável, pois o próprio Paulo havia gerado um dualismo permanente à fé. Há uma confusão, nesse caso, entre dualidade e dualismo. Dualidade é a convivência inevitável entre dois elementos distintos, dois modos de existência ou orientação da vida – como o de Carne e de Espírito. O dualismo, aqui entendido, indica uma polarização entre dois elementos – bem e mal, matéria e alma, o que gera uma esquizofrenia, pois a pessoa vive no corpo, mas é ensinada que mais importante é a alma; seu ser é corporal, mas o espiritual pertence à dimensão do transcendente, onde somente o espírito ou a alma são elevados. Ao corpo é relegado o status de habitat do pecado – especialmente os ligados à luxúria.

O equívoco desta percepção está não apenas de subtrair a materialidade da espiritualidade, mas em atribuir responsabilidade pelo pecado – ou a lei que habita em nossos membros, como diria Paulo (Rm 7) – somente à corporalidade. É um equívoco pois o entendimento paulino de carne provavelmente advém da compreensão do AT, que engloba o ser humano como um todo-indivisível. Segundo José Comblin, em Paulo “carne” não significa apenas o corpo como que distinto da alma, mas “o homem todo na sua fraqueza, mortalidade, tentação de pecado. Assim, a carne está mais no intelecto e na vontade que na matéria”.[1] Ser “carne” e ser “espírito”, nesse aspecto, são modos coexistentes, embora distintos, de vida. O primeiro é o modo de quem busca suficiência em si, e o segundo que encontra a suficiência em Cristo.

Como esclarece Gottfried Brakemeier,

Se o ser humano, à parte da fé, é integralmente carnal, com inclusão de seu espírito, o corpo já não mais pode ser o exclusivo culpado do pecado. Não se pode incriminá-lo de segurar a pessoa nas esferas inferiores do pecado e de impedir a ascensão a Deus. O pecado é ‘ato coletivo’ de todas as faculdades humanas, com destaque à vontade, ao coração, ao espírito.[2]

Jeremias (capítulo 17) foi quem disse que o pecado de Judá estava gravado no coração com ponta de diamante. A palavra aqui usada diz respeito a uma ofensa, não verbal, mas “gravada” no coração (centro da vontade e decisão do ser). Tem uma dimensão espiritual, mas aqui é identificado com coisas muito concretas no povo de Israel (idolatria, injustiça, impiedade). Como se Deus estivesse dizendo: “Para onde você vai, olha ou toca, fica ali um rastro do teu pecado. Se as tuas ações não o refletem, seu coração já o faz”. Então isso afeta a integralidade de nosso ser; não somente uma parte ou área da vida, como os dualistas insistem em querer nos fazer crer. Como ressalta Comblin, “no evangelho cristão tudo no homem é corporal, tudo é espiritual, tudo é alma. Não há nada fora do corpo. Pois o espírito está também no corpo, ele é o corpo humano como orientado sob a moção de Deus”.[3]

Ouvimos de alguns que não se pode nem “humanizar”, nem “espiritualizar” as coisas – cacoetes do discurso evangélico que denotam nossa compreensão média de espiritualidade, ainda dualista, pois separa o humano do espiritual e o espiritual do humano – o mesmo se poderia dizer da santidade. Mas quem é o santo? Não é um anjo ou ser espiritual ou elevado que se desumanizou. Antes, é um ser humano que encarnou a vida de Deus, e que tornou concreta a obediência ao Deus da vida. Então, sem novidades nisso, nossa espiritualidade continua desprezando a imanência e estigmatizando o corpo – embora toda a eletricidade, as fortes emoções, as fruições e pirações espirituais ela sinta no corpo. Os desejos, os ímpetos e as paixões, porém, prosseguem debaixo de muita desconfiança.

(Continua…)

Jonathan

Referências bibliográficas


[1] COMBLIN, José. Antropologia cristã. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990, p. 77.
[2] BRAKEMEIER, Gottfried. O ser humano em busca de identidade. Contribuições para uma antropologia teológica. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2002, p. 118.
[3] COMBLIN, OP. Cit., p. 77.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Por uma igreja frágil e irrelevante

Fragilidade

Nosso mundo é um mundo cada vez mais competitivo, composto de pessoas competitivas. Nem todos são vencedores, nem todos os vencedores alcançam o pódio e o poder por mérito próprio, mas quase todos, regidos pela lei do mercado, competem entre si para ver quem conquista o direito de “chegar lá”. Maquiavel ficaria feliz em se dar conta de que sua teoria, originalmente aplicada à política de sua época (no clássico O Príncipe), funciona bem em outros ambientes, como o mercado de trabalho ou a religião, por exemplo; universos nos quais nem sempre importam tanto os meios, se estes estiverem a serviço de almejáveis fins. Sucesso, pujança e relevância são palavras indispensáveis a qualquer um que deseje ter uma sobrevida neste tipo de sociedade.

Você, leitor/a, deve estar se perguntando, “e a igreja nisso?”, já que meu título remete a ela. Bem, a igreja vive na tensão entre ser uma expressão desta e (relevante) para esta época, e sua razão de ser, que é encarnar diante do mundo a boa nova do reino revelada em Jesus. Ou seja, o que move a igreja não são os ditames do que impera na sociedade em que ela coexiste, mas o exemplo de seu Senhor.

E o exemplo de Jesus, suas prioridades, sua missão se desenham desde seus primeiros passos no ministério. Segundo a narrativa de Lucas no texto indicado acima, Jesus não inicia seu ministério em ação, mas em silêncio, oração e na total dependência do Espírito no deserto. Lucas diz que ele voltou do Jordão (lugar de seu batismo) “cheio do Espírito” e que ele “foi guiado pelo mesmo Espírito no deserto” (Lc 4.1). Depois de quarenta dias, ele passou a ser tentado pelo diabo no instante mesmo de sua maior vulnerabilidade e em seus aspectos geradores: (a) suas necessidades básicas (transforma pedras em pão), (b) sua identidade (se és o filho de Deus, atira-te daqui e convoque os anjos pra te livrarem), (c) sua vinculação divino-humana com o poder (a ti darei todos estes reinos se prostrado me adorares). Em nenhuma delas, porém, Jesus foi imprudente, não se submetendo ao uso leviano da Palavra pelo diabo. Pelo contrário, ele rejeita o caminho do poder e abraça, a partir dali, uma vocação despossuída de pretensões grandiosas neste mundo e desejosa apenas de fazer a vontade do Pai.

O caráter dessa vocação se confirma no momento seguinte da narrativa. Num sábado, Jesus adentra a sinagoga (respeitando o costume e a tradição) e lhe é dado o livro do profeta Isaías, no qual se lê: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e  recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos, e proclamar o ano da graça do Senhor” (Lc 4.18-19, NVI). E, logo em seguida, disse aos presentes que aquela palavra acabara de se cumprir nele mesmo. Desde então, fica claro que ele encarna a figura indigesta do profeta.

Quase todo líder cristão em nossos dias, naturalmente, imagina poder iniciar seu ministério bem, realizando boas e grandes coisas para se estabelecer, sendo notado e respeitado a fim de conquistar seu espaço. O mestre, porém, tem um início subversivo até nisso, pois esse primeiro ato ministerial, segundo esse relato, foi um fracasso total: todos na sinagoga ficaram enraivecidos com seu discurso, o expulsaram da cidade e tentaram jogá-lo do precipício, o que só não aconteceu porque ainda não era o momento. Mas era o indício de um caminho, caminho de cruz.

O que a igreja contemporânea tem a aprender com isso? Dentre tantas lições que daqui poderíamos extrair, eu diria que igreja e seus líderes precisam aprender com Jesus a não temer a rejeição, o escárnio e o insucesso (aos olhos do mercado) no instante em que ela decide viver com integridade sua vocação para ser um frágil instrumento da missão do reino neste mundo. Henri Nouwen vai além, e afirma algo arrojado em relação aos líderes cristãos (que aqui reaplico a igreja): “O líder cristão do futuro será aquele que ousa afirmar sua irrelevância no mundo contemporâneo como uma vocação divina. Ela permite que ele esteja em profunda solidariedade com a angústia atrás de todo aquele esplendor do sucesso. E leve a luz de Jesus para brilhar ali”.

“Frágil e irrelevante”, digo, não porque encarna o espírito de vítima ou de derrotada, tampouco porque não faça e não vá fazer diferença, mas porque é irreverente aos caminhos de sucesso mundanos, e porque encarna o espírito de sua fragilidade humana na dependência do Espírito, como Jesus no deserto, e admite não precisar nem desejar viver sob a égide e em busca de outro poder que não esse; e mais, assume que todo exercício legítimo de poder na igreja passa pela fragilização de quem o exerce, no momento em que se coloca tanto na dependência do mesmo Espírito no serviço, como na mútua e fraterna dependência da própria comunidade. Em suma: olhar para Jesus torna mais claro o tipo de opção que a igreja de Cristo precisa fazer ao lidar com poder e instituições neste mundo, qual seja, não a de rejeitá-los como quem os demoniza, mas de abandonar o modo como se valoriza poder e instituição por aí, tantas vezes colocando-os acima das pessoas às quais deveríamos amar e servir.

A igreja que se diz de Jesus não pode inverter a lógica: ela ama mais as pessoas que as instituições e não o contrário. Aliás, instituições são instrumentos úteis, não objetos de amor e/ou veneração!

Ademais, a vocação primária da igreja faz com que ela não esteja neste mundo para estabelecer coisas – como que monumentos só dela, porém supostamente erigidos “para a glória de Deus” (resta saber qual) –, mas para peregrinar na liberdade, e seguindo os rastros, do Espírito e obedecendo unicamente a um Senhor. Por fim, o papel da comunidade do povo de Deus em um tempo tão plural como o nosso não reside em normatizar o falar de Deus, nem tampouco na pretensão de falar por Deus, como se a ela tivessem sido conferidas tanto uma revelação especial quanto um modo especial (ou exclusivo) de apresentar a revelação. Em tempos de fragilização, como o pensamento fraco de Gianni Vattimo nos faz atentar, a igreja não passa de um débil e, como tal, não exclusivo instrumento da Missio Dei, que, para ser efetiva como instrumento, precisa se aceitar como insuficiente, frágil, como um vaso de barro nas mãos do Oleiro, a fim de que nela, através dela e para além dela, isto é, no mundo, avulte o poder do Espírito Santo, a única testemunha absoluta da verdade, a nós não acessível senão por meio de fragmentos de linguagem e fragmentos de experiência.

Jonathan

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O mundo não é dos espertos?

O Grinch

O mundo não é dos espertos, mas é das pessoas honestas e verdadeiras. A esperteza, um dia é descoberta e vira vergonha. A honestidade se transforma em exemplo para as futuras gerações. Uma corrompe a vida e a outra enobrece a alma. [Raquel Fragoso]

Frases de efeito espalhadas na internet podem ser como gotas em um oceano: logo, sem mais nem menos, tudo vira uma só substância líquida comum a todos os usuários. Tentei encontrar a autoria da frase acima, e eis que surgiu o nome de Raquel Fragoso. Assumirei que ela seja mesmo a autora, até que se prove o contrário (ou não). O fato é que, vendo a mensagem espalhada como vírus nas redes sociais – outro fenômeno desta era digital: nem sempre refletimos sobre o que “curtimos” e/ou compartilhamos, e ainda assim endossamos – confesso que, de primeiro instante, parece ser uma frase atraente, com uma mensagem positiva para gente de bem. Basicamente dizendo: não importa o quão bem-sucedidos sejam os “espertos” por aí existentes, que em tudo querem ou afirmam levar vantagem; no fim das contas, o mundo será “das pessoas honestas e verdadeiras”, que deixarão exemplo para as próximas gerações, enquanto a corja da esperteza, quando descoberta, resultará em “vergonha”, que em si já pode ser a própria punição.

Não que esta seja, de fato, a intenção desta frase, mas, numa realidade cruel, não me impressiona que as pessoas se agarrem a mensagens do tipo “no fim o bem vencerá”, mesmo nos dias de hoje. É a mensagem presente em quase todos os enredos de Hollywood ou nas novelas da Rede Globo, com raríssimas exceções; os personagens que representam “o mal” podem até prevalecer sobre as pessoas “do bem” (que geralmente são as protagonistas), mas, para alegria do “respeitável público pagão” (como diz O Teatro Mágico) de plantão, a estória, com mais ou menos meandros de complexidade, sempre termina com a vitória “do bem sobre o mal”. Compreensível, afinal para que o espetáculo possa continuar é preciso não somente retratar o provável, mas o palatável, ou seja, “o que o povo gosta”, com uma boa dose de autoengano. E, como disse Michel Maffesoli, “a necessidade de se autoenganar é o motor constante do conformismo do pensamento”.

Talvez um primeiro (ou segundo) impulso do/a leitor/a, a essa altura, seja em dizer: “defina esperteza”! Pois bem, dentre os muitos sentidos possíveis que o Dicionário Michaelis dá à palavra (como “acordado”, “ativo”, “desperto”, ou “inteligente”), o que mais se aproxima do sentido usado pela autora da frase talvez seja este: “que tem agudez e atividade” ou “sagaz”. Então esperteza, nesse ínterim, seria uma espécie de arte da vileza, por meio da sagacidade, da artimanha aguda e arguta de quem maquina não pelo bem, mas para “se dar bem”, custe o que custar. Bem, o que me parece é, que se o mundo não está inteiramente entregue a tal espécie de esperteza, sem dúvida ele é, em quase todas as dimensões da vida, refém constante dela.

Não quero ser advogado do pessimismo ou do niilismo aqui. Abraço a honestidade e a sabedoria como caminhos (positivos?) de vida. É indubitável que, num sentido cristão e humano, elas são melhores que a tolice e a malandragem. Mas penso que o autor de Eclesiastes foi mais assertivo e realista que a autora desta frase, em seu capítulo 9, quando afirma que “a sorte é a mesma para todos”, bons e maus, justos e injustos, espertinhos ou honestos, e que “tudo depende do tempo e do acaso”. Mais ainda, quando aponta para o paradoxo dos trabalhos sem recompensa (como a bondade, por exemplo), ou mesmo das inversões perversas da vida, isto é, os estultos dominando os sábios. É claro que podemos ser reconhecidos e até recompensados pelo bem; mas não há garantias disso. E, por mais ilusório e fugaz que seja, sim, o mundo não só é, como está nas mãos dos espertos muitas vezes, e a política e religião são bons exemplos, nus e crus exemplos eu diria, de como e com que gigantescas proporções isto se dá. Até porque, a frase se refere a este e não a outro mundo, onírico ou escatológico.

Eclesiastes ainda dá outro exemplo no mesmo capítulo (v. 13-18): numa pequena cidade com poucos habitantes, veio um rei muito rico, sitiou-a e a dominou; então, veio um homem pobre, mas sábio e, por sua sabedoria, livrou a cidade. No fim, porém, o opressor foi lembrado, e o libertador esquecido pelo povo da cidade. Os anais da história daquele povo registraram o nome do opressor, mas não o do sábio. Por causa de exemplos como esse é que, como se diz no começo do capítulo acima citado de Eclesiastes, diante do fato de que não apenas “a todos sucede o mesmo”, mas que nem sempre o benefício da bondade e a punição da maldade são garantidos, muitos desanimam e se entregam desvairadamente à vil “esperteza”. Talvez porque acabem chegando à trágica conclusão de que ser honesto não vale à pena, não traz recompensa, não traz grandes ganhos; pelo contrário, muitas vezes pode trazer perseguição, prisão ou morte, como disse certa vez o padre Gustavo Gutiérrez. Assim, a questão pode ser: se todo mundo está igualado na existência; se o bem nem sempre triunfa sobre o mal; se o político opressor recebe um busto na praça enquanto o sábio libertador é esquecido, por que razão devo me preocupar em ser honesto?

Ser honesto é um trabalho funesto quando se busca recompensa e/ou reconhecimento, ou mesmo quando se espera aplausos por isso. Honestidade é um modo de ser que nos possui e nos impulsiona a agir de tal modo (honesto) quando ninguém está vendo. Antes de tudo, o ser honesto acontece diante de Deus e de si mesmo, onde não há sentido para autoenganação ou ilusão. Ademais, Eclesiastes e a vida ensinam: no fim, nem sempre o melhor vence a batalha, ou mocinho supera o bandido, ou o justo prevalece sobre o injusto, não só porque a vida é complexa, mas porque a todos iguala debaixo do sol. E se a honestidade persiste sendo um melhor caminho é porque, como diz a frase, “enobrece a alma”, e não porque nos faz ganhar o mundo. Afinal, como disse Jesus, de que vale ganhar o mundo inteiro e perder a própria alma?

Jonathan

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Letter to a sexually active young couple

casal-sexo

By Jonathan Menezes

Our world (specifically the “Christian world”) is still permeated by the pretentious assumption that dating Christian couples that attend church services (or not) are not necessarily sexually active. Yes, chastity is still the ideal thought when it comes to Christian dating nowadays. There are no problems with that legitimate option, so to speak; the problem is to claim it not as an option, that is influenced by the awareness and maturity level of each person or each couple, but as a universal rule, a categorical imperative (using here Kant’s term), as if purity and holiness of a dating relationship could only be evaluated (although I think it cannot be assessed) by the absence of the erotic dimension. It is preferred, therefore, to ignore that most of the dating couples today do not live according to this imperative, consciously and healthily, or secretly and culpably.

The requirements of the church regarding sexuality have been, for a long time, hypocritical, presumptuous and loyalist, all in the name of a “Biblicist idolatry” under the guise of fidelity to the Bible. It is ignored, as said Robinson Cavalcanti, the fact that “the Bible is not an encyclopedia of prescriptions for every detail of human life”. What it offers us, in many cases, such as premarital sex, for example, are either guidelines to very specific cases, historically and culturally situated, or more general relational principles grounded in loving God, loving our lives and our neighbors.

The worst thing is that this imperative, as you may have noticed, is exclusive, that is, anyone, being Christian, in any way could have a kind of dating where sex is present, with sanity and sanctity. And there has not been enough opening for anyone who wants to discuss it nor for those who think differently. What is the reason for this? The reason is always: because sex outside of marriage is a sin and it is "pretty much clear" in the Bible. As happened to me, perhaps you have already intricately stopped before and reflected about such certainty, and thought: I have either read the bible very little or have I read it very badly, because where in the Bible is it spoken so clearly on this issue and so categorically that many Christians – especially the evangelical ones – have propagated that as absolute truth, for so long, for all people, regardless of what is the case? Now which possible “textual buzzword” critical thinkers will be mooting at this point? Fornication? That our body is the temple of the Spirit? The story of marriage (“becoming one flesh”) according to the Genesis? Holiness and purity? Texts about lust, lubricity, impure desires, prostitution? Well, the list can be large and I will not try here to give exhaustive references; I think you understood my point, so I will go straight to it.

I am not saying that these precepts do not exist or are not valid, however there is a lack of insight and intellectual honesty when we apply them, several times (if not most of the time) outside a proper context. Common sense and creativity seem to be elements that have been increasingly left out of our Bible reading. At the end of the day, the impression that remains is that what evangelicals have always said to be their “strength”, that is, their zeal in relation to the Scripture, can also be their weakness. Especially when they do not realize that the most childish idolatry is the one in which we hold others to one thing and lose our sense of independence and the power to criticize our relationship with our independence. And that is the way that many of those who boast themselves of being biblical evangelicals treat the Bible: as an object of veneration, which ends up canceling reverence to God's Word, impoverishing and enclosing it into their human precepts (all too human?).

I will mention the most common case, just as an illustration, of one of the practices not recommended in the Bible; fornication. When one thinks of “sex outside marriage”, for example, this is the first principle that appears in many forms of argument against the “practice” – as if its applicability was universal in this case. The biblical meaning of the word “fornication”, according to Robinson Cavalcanti, is “fortuitous relationship, uncompromised without emotional involvement”. It is the typical sex for sex, casual, without connection, without much regard for the person with whom you have sex. It does not mean that all sexual relationships outside the context of marriage are fornication, nor that all those who practice it fit into the category of “fornicators”. But they are all included in the same group because it is much easier to consider the Bible a manual of good conduct, with specific rules for everything we regard as misconduct, than to consider it the Word of God, which in itself is an invitation to obedience with discernment and good conscience before each experienced situation.

One of the most honest interpretations I have read about sexual relationship in the context of dating, engagement and commitment, coming from a Christian, was written by Robinson Cavalcanti, if I am not mistaken, in 1985. According to him:

It is assumed that the intimacy grows as: a) feelings b) mutual knowledge c) commitment d) the approach of the marriage, formal or informal, grow. Being the good sexual relationship a condition for marital success, some indicator should be inferred even in the preparatory period. If the virginity of both is a Christian ethical target, sexual socialization of costs (everybody assuming the burden) is lesser evil than the dichotomy of some virginity vs. prostitution of others, with one “paying the bill” of the other. (...) What cannot be required of people who are really committed and who love each other, under awkward sexual tension, is for them to simply "push it back", when they are grown-ups, graduated, with a good job, a nice apartment, a car etc. Meanwhile...

My goal with this particular letter, however, is neither to empty the meaning and power of sin in a human being – something impossible – nor to trivialize the sexual act, which is a divine gift, but to think together the implications of an active sex life between dating couples, assuming that this is already your reality or maybe it is in the verge of being your reality. I do believe that there is a possibility, on a dating or engagement during which the couple has sexual intercourses, that sex will not be merely fornication, but it will be love, commitment and emotional involvement, full of meaning and a maturation process towards a lasting married life, that is, marriage. With this letter I have the risk of getting many stones thrown at me, but this is the price of honesty and the price of no longer be willing to play this “pretending” game which exists in our midst, that is: “I pretend I do not know you have sex and you pretend to follow the law of premarital abstinence”. We must stop with this hypocrisy, even with screams that will be heard by few and execrated by many (I am feeling as I was the Salem Witch right now).

Well, let’s focus less on the outside world, and more in our inner world. When you decided to take this important step in your relationship – as long as that has come from a conscious decision and not just from passion (no judgments here) – you might have reflected about the greatness, beauty, and also the responsibility of this act, I imagine. Otherwise, I think it is worth reflecting about it. I mean, even though we are made of flesh, bones and that our body has a specific shape, we do have impulses, desires, and sexual attraction. We are not talking about fleshes in friction, rubbing each other simply for pleasure, but we are referring to two people who have feelings, who suffer, who cry, who get excited, who become fragile when they get disappointed, when they love, when they get hurt. Yes, relationships where the buzz goes beyond sex encompass all those factors. Have you ever thought that during a sexual intercourse it is not simply our bodies that are touching each other, but our whole being? And, as much as we think that through performance, through the plasticity of the act and the ability to give and receive pleasure, we are in control of the situation, it is a great mistake. Because, as I said, whether we accept it or not, there are always more factors involved, nobody has the complete control of themselves, nobody is able to completely control their feelings, nor the other’s feelings. That is why, even in cases where both have an agreement to only use themselves and enjoy each other, there is no guarantee that in the end, no one will get hurt. After all, you could have treated your partner as a mere “object” some time in life, but when you get treated like that it is different, and even the “deal” might not end up as a “great deal”.

But I also imagine that you have decided to have sex because you love each other, because sex is an essential complement to your love, and because you wanted your relationship to be completely perfect – Am I being assertive or far too idealistic? Anyway, when we want something like this, it might be because we want (even if unconsciously) a relationship that lasts a lifetime, although this is relatively long, it takes a lot of work, and it is beyond the reach of our eyes and mind. The future, as it is usually said, belongs to God. The point is, we are able to decide what to do with our present, and this can be a either a gift or a torment, it depends on us most of the time. I believe that God gives us the power to choose with whom and in what way we will direct our relationships, and then He will bless our choices as long as our choices dignify and honor God, our partner, and our lives. Happiness, if it does exist, is a gift that is only enjoyed when shared with intensity.

Do not think, thus, that I am writing to you simply to say that it is all right to do it. I write to say that the will to do it right is in your hands, do it well, do it with love, make your relationship last for a lifetime, because it is also a divine gift. Sex can be very pleasurable when it is just sex, however it is much better when there is commitment, when the feeling is cultivated to last forever, to make sense, and to generate and inspire life. I hope you understand the depth of this, that sex can be an instrument of love and life, but also of power, competitiveness and mere vanity. That is what happens with any type of great power.

In order to guide us, Jesus made an interesting point in one of his parables: "From everyone who has been given much, much will be demanded; and from the one who has been entrusted with much, much more will be asked" (Luke 12.48b, NIV). In another translation (The Message) it says: “Great gifts mean great responsibilities; greater gifts, greater responsibilities!”. What does this imply? It implies that God calls us by love, through love He sustains us, and the greatest power of all that He offers us is love, without which the other "powers", including sex, can cause destruction and instead of generating life. This happens for, in essence, love is a subversive power, once it takes over the control of our lives it leaves us vulnerable and sets the other person free – it does not use, does not abuse, nor exploits.

The beauty of God's creation is that the Creator gives us the chance to choose what to do, what we will do with the things He gave us during life, the chance to choose generating good or bad things from what we have been given, even though, in us, “good” gets to mix with “worse” very easily. Nonetheless He said he hopes we opt for life. I wonder, at the current level of knowledge, involvement and mutual responsibility between you as a couple, what does it mean to opt for life? What do you want and expect from your relationship? How much have fought to have a mutual life? Because it is the strength of the alliance between you two that makes sex become divinely blessed and humanly meaningful. Not only a source of pleasure, but a source of abundant life...

[Translation: Vinicius Cavalheri]

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Sexo: ama e faz o que quiseres!


Para você, leitor/a, que “chegou agora”, um aviso: este texto é um pós-escrito de minha “Carta a um jovem casal sexualmente ativo”, uma tentativa de responder a alguns dos questionamentos e críticas que recebi. A gente gasta certo tempo pensando e escrevendo antes... Se o assunto é "sexo", certamente gasta bem mais tempo respondendo às reverberações e regurgitações depois – até aí tudo bem, diálogo é bom, e a gente, no fundo, escreve pra ser lido; o problema é a natureza e a belicosidade de algumas das respostas. Se pensar e hesitar demais, chegará à conclusão de que melhor é não escrever. É preciso de um pouco de coragem e de um pouco de insanidade (além de um bom colete à prova de balas) para escrever sobre isso em um ambiente cercado de pessoas armadas até os dentes, parece que ávidas à espera de quem será o próximo "indecente" a se aventurar a tratar do tema. Incrível a tácita e reprimida fascinação pelo assunto entre religiosos, não? E pergunto como é que podemos manter por tanto tempo a sexualidade como centro e pedra sagrada de "nossa moral"? E por quanto tempo ainda iremos fingir que o atual estado de coisas não pode, de modo algum, interferir nem alterar o modo como há séculos temos pensado e agido (ou não pensado nem falado, mas muito "agido")? Sabiamente disse certa vez o caro amigo e mestre Julio Zabatiero: "Pecado não é fazer sexo, pecado é falar sobre sexo".

Minha relação com o tema não é contratual nem polêmica (embora o tema seja); é uma relação de curiosidade e inquietação, por entender que foram muitos anos de uma ditadura teológica explícita sem sair do lugar comum das mesmas afirmações, nem sempre com a devida base e seriedade. Acho no mínimo curioso que se celebre tanto e se aceite passivamente posições previamente assumidas simplesmente porque, por muito tempo, cristãos, ao longo de séculos, sustentaram-nas como sendo verdadeiras. Devemos levar isso em consideração, é claro. Mas não nos esqueçamos de que: em primeiro lugar, elas são interpretações da Mensagem, e não o espelho da própria Mensagem e; em segundo lugar, que nem todos os cristãos, em todas as épocas e lugares, pensaram de uma única forma sobre o sexo. O que questiono no artigo provém, majoritariamente, de uma visão cristã ocidental e, sobretudo, do evangelicalismo norte-americano. Admiro quem se dispõe a nadar contra a maré, toma o tema a peito e resolve dar a cara à tapa por admitir outras interpretações – daí meu interesse e apreço por Robinson Cavalcanti, embora pense que muito do que ele disse precisa ser revisto e não apenas revisitado. Descer a lenha em que pensa, ou, como disse Kierkegaard (em 1844, referindo-se à sexualidade), "fazer de censor, é demasiado fácil; extrair daqui sermões, passando por cima da dificuldade, não é menos doentio; mas falar sobre o problema de maneira verdadeiramente humana, eis o que constitui toda uma arte". Assim, minha intenção, ao escrever o texto em questão, foi expressar (artístico-humanamente) o que penso e provocar o pensar, desde um lugar de liberdade. Agora, sei bem que a liberdade tem riscos e que ela incomoda mais que as celas de segurança com as quais estamos bem habituados. Todavia, quem tem boa vontade e desejo de aprender e não somente reafirmar o que supostamente já sabe (porque "é a verdade", segundo ele/a) e polemizar, jogar pedras ou interpretar como bem entende – minhas intenções, meu texto e seja lá o que for – mesmo que não concorde, compreenderá que ideias são lançadas para serem discutidas, revisadas, criticadas, porque provisórias.

Talvez um jeito de evitar o “perigo” que tantos temem em falar do tema a partir desse lugar é criando uma espécie de censura para abordagens como essa, o que acham? No começo do artigo, colocar o seguinte aviso: "Proibido para pessoas não maduras na fé!". Só fico me perguntando: como esperamos que essas pessoas amadureçam? Prosseguindo com a “boa e velha” homeopatia bíblica? Conheço inúmeras igrejas que adotam esse sistema e nem por isso houve alguma progressão ou abandono do estado de infantilidade. Natural, afinal, também tenho aprendido que a liberdade, embora se destine (como vocação) a todos os humanos, não será acolhida e nem perseguida por todos. Mas, se queremos que as pessoas deixem de ser infantes, paremos de tratá-las como tais. Meu texto é muito claro sobre o contexto de amor e responsabilidade que demandam uma relação e os efeitos negativos que a relação sexual pode gerar em alguém (aspecto ignorado por muitos, que preferem se centrar apenas no que é periférico e atacável no texto). O grande problema de alguns de meus leitores, mais ou menos enraivecidos com o que proponho, é que não coloco um "ponto final", não determino a regra, mas instigo a que cada um cuide e zele por si mesmo, afinal é a Deus e somente a Ele que prestaremos contas de tudo.

Diante dos questionamentos que recebi de um pastor no facebook, a partir do clássico Cristianismo puro e simples, de C. S. Lewis, voltei ao livro para recordar algumas coisas. Lembro como em minha adolescência, depois de ter sido bombardeado por Jaime Kemp, esse livro, e seu capítulo sobre a moralidade sexual, me foram importantes. Sobretudo em duas coisas que ele diz: (1) Que Deus conhece nossa situação e não nos julgará como se não tivéssemos dificuldades – o contexto opressor em que vivia foi incapaz de me dizer isso; (2) Que a sexualidade (dimensão animal) não é, para ele, o centro da moralidade cristã, e sim o orgulho (dimensão diabólica) – que ele define como o mais completo estado da alma anti-Deus. Não poderia estar mais de acordo, até hoje. Lewis foi o primeiro a me fazer pensar, logo cedo, que havia algo de doentio talvez em nossa persistência em tornar a sexualidade o centro da moralidade, coando mosquitos e engolindo camelos. Mas, enfim, ela é importante, e ainda resta a opinião clara e central naquele capítulo de que a castidade pré-matrimonial é uma regra clara e inegociável. Pois bem, minha pergunta é simples: se essa é "a regra cristã", quem foi que transformou aquilo que claramente é uma interpretação possível em a única interpretação possível? Porque se é a única possível e incontestável, não posso chegar a outra conclusão senão a de que estamos confundindo absolutos da Mensagem com absolutos da cultura, seja ela religiosa ou não.  

O casamento, por exemplo, faz parte da intenção criativa do Criador desde o princípio, como relatado em Gênesis e não questiono isso. O que questiono são os formatos, as circunstâncias historicamente situadas, o padrão cultural que absolutizamos. Creio que precisamos repensar o casamento (as formas) e as circunstâncias prévias a ele (caso a caso, consciência por consciência), em que o sexo não tem que ser, necessariamente, uma coisa impudica e condenatória. Precisamos ir além de Lewis, que claramente não se debruçou de modo intenso sobre o tema (e quem o fez até hoje?). Ele foi um homem de seu tempo e escreveu em resposta aos desafios daquele momento. Estaremos nós com honestidade, discernimento e coragem dispostos ao mesmo? Sempre haverá muitos "ses" e "poréns" a um assunto tão complexo. E encaro minhas opiniões como sendo tão provisórias e em construção quanto eu mesmo. O que não dá, pelo menos pra mim, é para fechar questão. Estamos apenas começando, ou prosseguindo, como queiram.

Meu ponto principal é, e sempre foi, o seguinte: sexo, para ser canal de vida, precisa ser feito dentro de um contexto de amor e responsabilidade, em que ambos carregam bônus e ônus das decisões que tomam. Aqui, a meu ver, cabe bem a frase de Santo Agostinho: “Ama e faz o que quiseres”. O amor liberta, mas também cuida, zela com responsabilidade pela vida do/a amado/a em todas as coisas. E o contexto em que isso se dá de modo mais intenso, mesmo que antecipadamente, é sem dúvida um casamento (talvez um pré-casamento, nestes casos): um relacionamento estável, sério, comprometido e que se quer de longa duração. Sempre me questionam que esse relacionamento pode acabar; então, este casal terá casado "de fato", mas não "de jure". Para mim, o que conta, biblicamente falando, é o casamento de fato. O casamento de jure é mais um testemunho público (esse termo justifica melhor que o de uma "satisfação pública") do amor e aliança do casal, tendo a "benção" da igreja e da sociedade (a de Deus sempre vem antes, desde a criação e, mais especificamente, quando o compromisso do casal é seguido ou precedido do compromisso com Deus). Agora, conheço tantos e tantos exemplos de casamentos malogrados no primeiro ano, no primeiro semestre, no primeiro mês, simplesmente porque casar de jure, nestes casos, muitas vezes, não passou de "um abençoado erro".

O que para mim não faz o menor sentido é dizer que isso é melhor ou diferente dos casos de casais comprometidos, que resolveram "aprofundar" a relação, casando-se "de fato" e, mesmo que intencionalmente querendo algo que dure, terminaram. Não é licença para que isso aconteça sempre, mas faz parte da vida, pode acontecer e acontece. E não vejo como sendo bíblico, tampouco como cristão, o peso de condenação infernal que no cristianismo se tem colocado sobre pessoas neste tipo de situação (não estou especulando, conheço inúmeros casos em que isso se aplica); aliás, isso é desumano e hipócrita para falar o mínimo.

Aqui cabe um esclarecimento: o uso que faço do termo “hipócrita” é sinônimo para farisaico; hipócrita é a im-posição – que parte do pressuposto de que eu tenho o que é preciso para “ser espiritual e crente”, enquanto o outro não, quando, no fundo, ninguém tem. Muito melhor é o sustentar plural de certas posições, sejam elas conservadoras ou não. Que fique claro: meu problema não é com ser conservador, o conservadorismo precisa ser respeitado; a hipocrisia (inclusive a que me ronda diariamente), denunciada. Penso que qualquer posição pode ser sustentada (e é nosso dever garantir o espaço democrático em que possam ser ditas e defendidas); o problema é quando ela tenta se sustentar pela via (por natureza, excludente) do moralismo, do sanitarismo, da purificação da raça. Aí pra mim reside todo o problema. Enfim, mas o que acabo de citar acima é um contexto de relacionamento apenas, dentro de um assunto para lá de complexo.

O que quero mesmo é continuar escrevendo, com honestidade e responsabilidade a respeito, e sei do grande desafio que me espera. Concordo com, e acolho tranquilamente, o que alguns amigos e críticos já me alertaram, há algum tempo: isso passa por um aprofundamento bíblico inclusive, explorando textos e contextos diversos, o que também pretendo fazer. O que não posso endossar é essa visão de “bíblico” que alguns dos que me interpelam severamente (às vezes me chamando de liberal, humanista e até pondo em cheque a razão de minha fé) apresentam: uma colheita de versículos bíblicos retirados de seu contexto e que, mesmo genericamente, devem embasar o todo de nossa moralidade, mesmo que não tratem especificamente de sexo ou da sexualidade humana. Quem espera isso de mim, está perdendo seu tempo. Duas coisas curiosas: 1) muitos dos textos bíblicos utilizados para refutar minha carta, de fato, nem sequer falavam de sexo; 2) a mesma lógica utilizada para captar frases bíblicas e aplicá-las na discussão foi utilizada com meu texto, extraindo frases fora de contexto para gerar pretextos. A isso me refiro quando digo que falta honestidade intelectual em nossa abordagem a este e a outros assuntos.

Ademais, confesso que me sinto um pouco ridículo tem horas, parecendo ter que discursar sobre um tema no século XXI para pessoas com uma cabeça que beira o medieval. Preciso vencer a tentação de desconsiderá-las, ao mesmo tempo em que tento não me amarrar por causa delas – afinal, não dá para querer ser autêntico e agradar a todo mundo ao mesmo tempo, especialmente os do “mundo evangélico”. É difícil, como difícil é lidar com a própria igreja nestes termos. Mas vamos em frente com a graça de Deus, nem que dando marretadas no ar e acertando a própria cabeça. Afinal, antes perder a própria cabeça que arrancar a do outro por causa das ideias que ali dentro borbulham. Agradeço pelas intervenções, agradáveis ou desagradáveis, que recebi em função desse texto. Me ajudaram e me ajudarão a continuar pensando...

Jonathan

domingo, 11 de agosto de 2013

Carta a um jovem casal sexualmente ativo


Nosso mundo (sobretudo o cristão) ainda está permeado pela pretensiosa assunção de que casais de namorados cristãos das igrejas (ou sem-igreja), necessariamente, não são sexualmente ativos. Sim, a castidade continua sendo o ideal quando se fala de namoro cristão ainda em nossos dias. Nenhum problema com tal opção legítima, diga-se de passagem; o problema é reivindicá-la não como opção, facultativa a consciência e variável nível de maturidade de cada pessoa e de cada casal, mas como uma regra universal, um imperativo categórico (usando aqui o termo de Kant), como se pureza e a santidade de um namoro pudessem apenas ser avaliadas (embora eu pense que isso não se avalia) pela ausência da dimensão erótica. Tem-se preferido, assim, ignorar que boa parte dos casais de namorados hoje não vive de acordo com tal imperativo, consciente e saudavelmente, ou clandestina e culposamente.

As exigências da igreja com relação à sexualidade há um bom tempo têm sido hipócritas, presunçosas e legalistas, tudo em nome de uma idolatria biblicista travestida de fidelidade à Bíblia. Ignora-se, como lembra Robinson Cavalcanti, que “a Bíblia não é uma enciclopédia de prescrições para cada detalhe da vida do homem”.[1] O que ela nos oferece, em muitos casos, como o do sexo pré-matrimonial, por exemplo, ou são orientações para casos muito específicos e histórica e culturalmente situados ou princípios relacionais mais gerais fundamentados no amor a Deus, à própria vida e ao próximo.

O pior de tudo é que esse imperativo, como vocês já devem ter notado, é excludente, ou seja, ninguém, sendo cristã(o), em hipótese alguma poderia viver um tipo de namoro em que o sexo esteja presente, com sanidade e santidade. E não tem havido suficiente abertura para quem quer discutir ou para quem pensa diferente. E qual a razão para isso? A razão é a de sempre: porque o sexo, fora do casamento, é pecado e isto está “muito claro” na bíblia. Assim como eu, talvez vocês já tenham parado intrigados diante de tamanha certeza, e pensado: ou eu li a bíblia muito pouco ou li muito mal, pois onde é que nela se fala com tanta clareza assim sobre esse assunto e de modo tão categórico para que muitos cristãos – sobretudo os evangelicais – tenham propagado por tanto tempo isso como sendo verdade absoluta para todas as pessoas a despeito de qual seja o caso? Ora, que “chavão textual” meus possíveis críticos estarão pensando trazer à baila neste momento? A questão da fornicação? Que nosso corpo é templo do Espírito? O relato do casamento (“tornar-se uma só carne”) segundo Gênesis? A questão da santidade e da pureza? Textos sobre luxúria, lascívia, os desejos impuros, a prostituição? Bem, a lista pode ser grande e nem me preocuparei aqui em ser exaustivo quanto às referências, acho que vocês entenderam meu ponto, por isso vou direto a ele.

Não estou dizendo que estes preceitos não existem nem que não sejam válidos, mas sim que faltam discernimento e honestidade intelectual no momento em que os aplicamos, muitas vezes (senão na maioria delas) fora seu devido contexto. Parece que o bom senso e a criatividade são elementos cada vez mais deixados de fora de nossa leitura bíblica. No fim das contas, fica a impressão de que aquilo que os evangelicais sempre disseram ser o seu “lado forte”, isto é, seu zelo em relação às Escrituras, pode ser também seu lado fraco. Sobretudo, quando não percebem que a forma mais infantil de idolatria é aquela em que nos aferramos demais a uma coisa e perdemos nosso senso de independência e criticidade em nossa relação com ela. E é assim que muitos dos que com certa jactância se proclamam crentes bíblicos tratam a Bíblia: como um objeto de veneração, que acaba anulando a reverência à Palavra Divina, empobrecendo e enclausurando-a em seus preceitos humanos (demasiadamente humanos?).

Citarei o caso mais comum, apenas como ilustração, de uma das práticas não recomendadas na Bíblia chamada fornicação. Quando se pensa em “sexo fora do casamento”, por exemplo, é o primeiro princípio que aparece em muita das formas de argumentação contrária à “prática” – como se sua aplicabilidade fosse universal neste caso. O sentido bíblico da palavra “fornicação”, segundo Robinson Cavalcanti, é “relacionamento fortuito, descomprometido, sem envolvimento afetivo”.[2] É o típico sexo pelo sexo, casual, sem conexão, sem grande consideração pela pessoa com quem se faz sexo. Não quer dizer que todo sexo feito fora do contexto do matrimônio seja fornicação, e nem que todos aqueles que o praticam se encaixam na categoria de “fornicadores”. Mas acabam entrando na vala comum porque é mais fácil pensar a Bíblia como um manual de boa conduta, com regras específicas para tudo o que consideramos como má conduta, que como a Palavra de Deus que, em si, é um convite a uma obediência com discernimento e boa consciência diante de cada situação vivida.

Uma das interpretações mais honestas que já li a respeito do relacionamento sexual num contexto de namoro, envolvimento e comprometimento, vinda de um cristão, foi escrita por Robinson Cavalcanti, se não me engano em 1985. Segundo ele, nessas condições:

Supõe-se que a intimidade cresça à medida que crescem: a) os sentimentos; b) o conhecimento mútuo; c) o compromisso; d) a aproximação do vínculo matrimonial, formal ou informal. Sendo o bom relacionamento sexual uma das condições para o sucesso conjugal, algum indicador deve ser inferido ainda nesse período preparatório. Se a virgindade de ambos os sexos é um alvo ético cristão, a socialização dos custos sexuais (todo o mundo assumindo o ônus) é um mal menor do que a dicotomia virgindade de algumas vs. prostituição de outras, com umas “pagando a conta” das outras. (...) O que não se pode exigir das pessoas realmente comprometidas e que se amam, sob constrangedora tensão sexual, é que simplesmente “deixem para depois”, quando uma vez formados e com um bom emprego, montarem um belo apartamento, comprarem um carro etc. Enquanto isso...[3].

Meu objetivo particular com esta carta, porém, não é nem o de esvaziar o sentido e poder do pecado no ser – coisa impossível – nem banalizar o ato sexual, que é um dom divino, mas que pensemos juntos nas implicações de uma vida sexual ativa entre namorados, pressupondo que essa ou já é a realidade de vocês ou quem sabe esteja em iminência de ser. Parto aqui do pressuposto de que podemos falar, sim, em um namoro ou noivado com sexo que não seja meramente fornicatório, mas em que haja amor, compromisso e envolvimento afetivo cada vez mais cheio de sentido e em processo de amadurecimento para uma vida conjugal duradoura, isto é, um casamento. Corro aqui o risco de levar muitas pedradas, mas é o preço da honestidade e de não mais estar disposto a esse jogo de faz de contas que há muito grassa em nosso meio, ou seja, faz de conta que eu não sei que vocês transam e vocês fazem de conta que seguem a lei da abstinência pré-matrimonial. É preciso dar um basta nessa hipocrisia, mesmo que como gritos que serão ouvidos por poucos e execrados por muitos (estou me sentindo a própria bruxa de Salém agora).

Pois bem, nos foquemos menos no mundo externo, e mais no mundo interno de vocês. Quando decidiram dar esse passo importante no relacionamento – se é que isso partiu de uma decisão pensada e não apenas apaixonada (sem julgamentos aqui) – devem ter pensado na grandeza, beleza e também responsabilidade desse ato, imagino eu. Senão, creio que vale a pena pensar. Quer dizer, embora sejamos feitos de carne, ossos, nosso corpo tenha uma forma, tenhamos impulsos, desejo, e atração sexual, não estamos falando de pedaços de carne em atrito e fricção em busca de prazer pura e simplesmente, mas nos referimos a duas pessoas, que têm sentimentos, que sofrem, que choram, se emocionam, se fragilizam quando se decepcionam, quando amam, quando se machucam. Sim, uma relação em que o que rola vai muito além de sexo, tudo isso está envolvido. Vocês já pensaram que numa relação sexual podem não ser apenas os corpos que se tocam, mas nosso ser por inteiro? E, por mais que achemos que pelo desempenho, pela plasticidade do ato e a capacidade de dar e receber prazer, estamos no controle da situação, isso é ledo engano. Porque, como já disse, queiramos ou não, há sempre mais elementos envolvidos, ninguém manda completamente em si, controla seus sentimentos por inteiro, tampouco os do outro. É por isso que, mesmo os casos em que ambos têm um acordo de apenas se usar e se curtir mutuamente, não há garantias de que, no final, ninguém sairá machucado. Afinal, posso ter tratado minha parceira como mero “pedaço de carne” alguma vez na vida, mas quando sou tratado assim o sentido é outro, e mesmo o combinado pode sair caro nessas horas. 

Mas, imagino também que tenham decidido ter relações sexuais porque se amam, porque o sexo é um complemento essencial do amor de vocês, e porque queriam ser “plenos” um no outro – estou sendo assertivo ou muito idealista? De qualquer modo, quando a gente quer algo assim, deve ser porque queremos (mesmo que inconscientemente) algo que dure a vida toda, ainda que isso seja relativamente muito tempo, dê muito trabalho, e esteja fora do alcance de nossos olhos e mente. O futuro, como se diz, a Deus pertence. A questão é que podemos decidir o que fazer com nosso presente, que pode ser um presente ou um tormento, depende de nós na maioria das vezes. Creio que Deus nos dá o poder de escolher com quem e de que jeito vamos nos relacionar, e assim abençoa nossas escolhas, se elas honram e dignificam a Deus, ao amante, à vida. A felicidade, se ela existe mesmo, é um bem que só se goza com intensidade quando partilhada.

Não pensem, portanto, que estou lhes escrevendo apenas para dizer que está tudo certo. Escrevo para dizer que está nas mãos de vocês o querer fazer certo, fazer bem, fazer com amor, fazer durar o relacionamento enquanto se é vivo, e isso também é dádiva divina. Porque o sexo pode ser muito prazeroso quando é só sexo, mas é muito melhor quando existe cumplicidade, quando o que existe é para durar, é para fazer sentido, é para gerar e inspirar vida. Espero que vocês entendam bem a profundidade disso, que o sexo pode ser instrumento de amor e vida, como de poder, competitividade e mera vaidade. É assim que acontece com todo grande poder.

Para nos ajudar, Jesus fez uma comparação interessante acerca disso em uma de suas parábolas: “A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será pedido” (Lc 12.47b, NVI). Em outra tradução (A Mensagem) se diz: “Grandes dádivas implicam em grandes responsabilidades; quanto maior a dádiva, maiores serão as responsabilidades”. E não é essa a frase que o tio Ben do Peter Parker disse para ele no primeiro filme do Homem-Aranha? “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”... O que isso implica? Implica que Deus nos chama por amor, por amor nos sustenta, e o maior poder de todos que nos oferece é o amor, sem o qual os demais “poderes”, incluso o sexo, podem gerar destruição e não vida. Isto, pois em essência o amor é um poder subversivo, uma vez que nos tira do controle, nos deixa vulneráveis e deixa o outro livre – não usa, não abusa, não explora.

A beleza da criação divina é que o Criador nos dá a chance de escolher o que vai ser, de como faremos uso das coisas que Ele mesmo nos presenteou na vida, de gerar algo bom ou ruim daí, ainda que em nós o bom se misture com o pior muito facilmente. Mas Ele já disse que espera que optemos pela vida. E pergunto, no atual nível de relacionamento, envolvimento e mútua responsabilidade em que se encontram, o que significa entre vocês optar pela vida? O que vocês querem e esperam dessa relação? O quanto têm lutado para ter, por muito tempo, uma vida em comum? Porque é isso, a visceralidade da aliança entre vocês dois, que torna o sexo divinamente abençoado e humanamente significativo. Não só fonte de prazer, mas de vida abundante...

Jonathan

Notas

[1] CAVALCANTI, Robinson. Uma benção chamada sexo. 9ª ed. São Paulo: ABU Editora, 2005, p. 103.
[2] Ibid, p. 55.
[3] CAVALCANTI, Robinson. Libertação e sexualidade: instinto, cultura e revelação. 3ª ed. Campinas, SP: CEBEP; São Paulo: Temática Publicações, 2004, p. 60, 63.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Carta a um jovem masturbador


Caro poeta com as mãos,

Longe de mim está a pretensão de precisão e beleza de um Rilke, ao escrever-te esta carta. Para muitos, isso aqui será um ato meramente cômico; para outros, de transgressão. Mas, na multidão dos leitores interessados neste tema – sem revelar que o são, afinal, ele não traz nenhuma boa reputação – talvez encontremos um sujeito, espero, sobretudo, que sejas tu, para quem essas palavras façam alguma diferença.

Sim, camarada, nosso mundo é repleto de hipocrisia. A mais sórdida delas, se é que se pode estabelecer uma gradação neste caso, é aquela em que se aconselha ou repreende a alguém por ter feito algo que essa outra pessoa também já fez, às vezes com muito mais intensidade, mas fingindo nem sequer conhecer o que é na prática, tampouco admitir suas reais dificuldades nesta área. Sinto que você tem padecido basicamente de uma culpa que não é exclusivamente sua, um duplo fardo que está carregando pela excessiva falta de franqueza e solidariedade humanas por parte daqueles que o sobrecarregam com seus incautos preceitos.

Decidi escrever-te, enfim, meu conterrâneo dos impulsos, para ver se consigo te ajudar a desmistificar essas sombras moralizantes que têm assaltado sua consciência, também porque pouca gente até hoje teve coragem de te mandar um papo reto com honestidade. Mas não ligue pra eles, nem os condene; no fundo os algozes morais da religião e da sociedade também são de alguma forma vítimas devedoras de suas próprias condenações – afinal, não há quem julgue que não seja também julgado – foram ou são, portanto, apenas punheiteiros reprimidos.

Deixe-me te dizer uma coisa, que não sei se servirá de alento ou de ainda mais desespero: você não é o primeiro nem o último a sofrer esse tipo de “abuso” – que, obviamente, sempre virá travestido de “bom conselho”. Durante boa parte de minha adolescência ouvi inúmeras coisas sobre sexualidade em geral, e masturbação em particular, e preciso te dizer, a maioria delas foi inútil, fora da realidade e apenas gerou mais culpa. O pior de tudo era quando vinham recheadas de subterfúgios bíblicos, como a história de um camarada chamado Onã (Gn 38.8-10), que fora intimado por seu pai, Judá, a se deitar com sua cunhada Tamar, naquele momento viúva de seu irmão, o primogênito Er, para que o nome dele (do irmão) se perpetuasse na descendência. O problema é que o subversivo Onã arranjou um jeito de aproveitar do sexo com a cunhada sem gerar filho algum; falando o português popular, ele “tirou antes de gozar”. Pobre Onã, foi condenado só porque não quis fazer às vezes do irmão (imagine só, você fazendo um filho para perpetuar o nome de outro – coisas estranhas da cultura) e ainda teve que levar a fama de “inventor da masturbação”! Não preciso dizer que isso não passa de uma associação barata, mais uma forma tosca de encontrar “base bíblica” pra tudo. Enfim, quando vierem com esse papo de onanismo, você já conhece a história.

Mas não para por aí. Dizem também que masturbação é pecado porque, para conseguir o desempenho e o prazer desejados, precisamos imaginar o sexo com alguém. Veja só, meu caro, até nossos pensamentos querem vigiar, esses “big brothers” de hoje! E como queriam que você fizesse? Que pensasse nas Cataratas do Iguaçu enquanto se masturba? Ah, quem dera fosse possível expor os pensamentos e desejos mais profundos desses que tentam te oprimir, bem no instante em que o fazem! Não restaria palavra por palavra e o muro de Berlim de seu falso moralismo cairia sem precisar de muitas marretadas. Quem é capaz de suprimir ou controlar por completo seu mundo de desejos ou por onde sua mente vagueia que atire a primeira pedra! Ademais, os sonhos aí estão – e cada um sabe bem o que sonha, embora nem sempre o porquê – para mostrar o quão inútil é essa tentativa. Senão, pense comigo: você já deve ter escutado dos moralistas sexuais que a válvula de escape natural que Deus deu para que você se alivie sem precisar da “horrorosa punheta” é a chamada polução noturna, certo? O problema é que, via de regra, esse mecanismo natural precisa de um estímulo, que acontece enquanto dormimos e geralmente vem do próprio sonho. Então que nos digam os carapálidas politicamente corretos: que tipo de sonho seria esse? Sonho com uma borboleta pousando numa flor em um jardim? E que controle tem essa pessoa sobre esse sonho? Certamente haverá alguém para defender que somos inocentes enquanto dormimos. Isso porque são santas demais para ler a opinião de um profano chamado Freud, que afirmou, dentre outras tantas coisas, que sonhos são liberações fantasiosas de desejos reprimidos.

Dessa maneira, assim como eu, você também deve ter percebido o quanto de esquizofrenia e doença há nessa moral religiosa. Mas não se espante tanto, coisa muito pior tem por debaixo desses densos lençóis cobertos de brancura. Talvez seja porque certo dia a humanidade lhes foi roubada e, desde então, quem sabe em busca da sobrevivência em função da humanidade perdida, tais pessoas tornaram-se práticos ladrões de humanidade. Contudo, uma palavra de esperança a você, caro amigo, ainda é possível. E ela é: você pode resistir a este nefasto assalto a sua humanidade, e essa capacidade é dom oferecido pelo Deus de vida e liberdade, e não de morte!

Se ainda posso lhe dar uma dica simples (porque lição, só Deus e a vida é quem dão), aí vai: desencane! Não vale à pena entrar nessa “pilha” que os apologistas do politicamente correto no campo da sexualidade têm tentado colocar sobre você. Até porque, no fundo, nem eles sabem o que dizem e a extensão do mal que causam em pessoas antes saudáveis. Quer saber o que eu penso? Se Deus nos fez sexuados para que, na prática, fugíssemos de nossa sexualidade como o Diabo da cruz, esse Deus só pode ser sádico ou um louco. Então, não tenha vergonha de sentir o que sente, porque é natural e o Criador disse que era bom no começo. Tenho a impressão de que quanto mais tranquilos tentamos ser em relação a nossos ímpetos, quanto mais tirarmos o ar de “proibido” da libido, menos fissurados e tiranizados seremos pelos nossos desejos, até porque somos animais, mas não necessariamente irracionais.

Antes de tudo, dê um voto de confiança a si mesmo, pois é isso que estou tentando fazer agora, ou seja, falando de uma liberdade rumando à maturidade. Assim, tente desenvolver hábitos de vida física, mental e espiritual, no sentido mais abrangente e integral, que te permitam curtir a vida, a si mesmo e seus relacionamentos sem neuroses, nem ter que abusar nem extrapolar os seus limites e os do outro, porque o gozo e o prazer ilimitados também são uma forma doentia e autodestrutiva de se relacionar com a vida. E evite essas competições pessoais masturbatórias (por mais curiosas e às vezes divertidas que possam parecer), pois o prazer é bom, mas sete vezes ao dia não tem nada de perfeito. Torna-se desgosto, desgaste, enfado, e não foi pra isso que Deus criou nossa sexualidade. Imagine você almoçando e, ao se deleitar tanto nesse almoço, resolve então repetir mais umas seis vezes, o que acontecerá? Agora, quer pagar pra ver? O corpo, a consciência e a vida são seus, meu camarada, só fique atento para o que eles te dizem, o que nem sempre é: “Vamos lá, mais uminha hoje”.

Jonathan

quarta-feira, 3 de julho de 2013

As palavras e o silêncio

Emudecer-se, calar-se... deixar que as vozes de dentro não se misturem e não se confundam às demais vozes e aos muitos ruídos do cotidiano. Até porque, quando elas se misturam demais (e esse é o risco o tempo todo), podem não passar de meros... ruídos!

Zacarias, marido de Isabel e pai de João Batista, ficou forçosamente mudo por certo tempo. Seu ceticismo o incapacitou de enxergar a boa nova saltitante ao seu redor como gazela no cio; as vozes de sua descrença e de seu materialismo, por um momento, falaram mais alto que as da esperança, e precisaram ser caladas para que, quem sabe, esta última pudesse, de novo, ter alguma voz e no ser fazer morada.

Eis a magia de seu período de silêncio: quando enfim ele voltou a falar, com o nascimento de seu filho João, seus lábios proferiram beleza, exultação no espírito, louvor, sabedoria... Palavras cheias da graça e do poder de Deus. Palavras que acertaram o alvo, o mote, a base de tudo: a vida!

Tenho a impressão de que quanto mais nossas palavras nascem da agitação, mais elas tendem a falhar na pontaria, a se perder no meio de outras, e não produzir nada além de ruídos, barulho que ensurdece os ouvidos e não toca o coração, a não ser para machucar. Quando, porém, se fazem filhas do silêncio, da escuta atenta, da revisão, da reflexão e da oração (mesmo sem discurso), as palavras não são simplesmente jogadas ao vento, mas são simbióticas, misturam-se com a vida, produzem vida.

Honestamente, amigos e amigas, sinto que preciso também, como Zacarias, me calar por um tempo, ou antes que o tempo não me silencie de vez e nada mais possa ser dito, para o bem ou para o mal. Sim, pois a palavra humana é encharcada da ambiguidade e do paradoxo próprios de ser humano, que todos reconhecemos de pronto quando olhamos direta e crucialmente para dentro. Por essa razão, seu encontro com a Palavra de Deus é um milagre, quando há lastro a ser preenchido pelo Espírito, razão pela qual precisamos do silêncio como lugar de visitação perene, pois, no silêncio nossa palavras podem engravidar do Espírito e, pelo Espírito, ser gerada com, e para gerar, vida.

Espero, assim, no silêncio reencontrar sentido e razão próprios ao meu falar, já gasto e enfraquecido, em parte pela agitação e em arte pela descrença, para não residir permanentemente na casa do descrédito. Pois tenho aprendido que o falar, por si só, é um ato vazio; que quem muito fala, como diria minha avó, corre o risco de “falar pelos cotovelos”, ou seja, de falar e não dizer coisa alguma. A palavra certa no tempo certo, contudo, “é como a jóia feita por encomenda” (Pv 25.11): pode ser recebida como dádiva, e repartida com gratidão.

(Imagem: "The sounds of silence", by Skierscott)

Jonathan

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Meu caminho até “Humanos, graças a Deus”

Humanos-Caminho

Gostaria de aqui endereçar alguns fatores indicativos de um caminho que me conduziu até a redação final desse livro, publicado pela Novos Diálogos Editora, sob o título de Humanos, graças a Deus! Em busca de uma espiritualidade encarnada. Aqui vão eles:

1. O livro não nasceu como livro, primeiramente, escrito de "cabo à rabo". Foi escrito no caminho; ou seja, são escritos de uma caminhada de mais ou menos 4 anos – caminhada de vida, teológica, de sala de aula, de pesquisas, de observações, de vivência da fé pessoal e comunitária e, é claro, de corridas. Muitos deles nasceram de conversas, outros de reflexões em sala de aula, outros de respostas a indagações de leitores – a quem eu carinhosamente chamo de “co-transgressores” – feitas em outros textos que escrevi no blog Escrever é Trangredir. Mas, o mais fascinante para mim, é que eles nasceram de um lugar de liberdade, pois a escrita é isso: um lugar de liberdade! E como liberdade, citando Roland Barthes, “a escrita não é mais que um momento”. Esses escritos são produtos de instantes vividos, e de escolhas que fiz ao partilhar meu olhar sobre esses instantes.

2. Embora não tenha sido programado de antemão, há nele um cantus firmos, um fio condutor, que despretensiosamente, embora não casualmente, foi se desenhando, e que é endereçado pelo título – uma espécie de afirmação-celebração e denúncia-protesto ao mesmo tempo: a de que somos humanos, e graças a Deus por isso!

3. Qual seria a razão dessa preocupação e de onde ela brota? Eu diria que ela não nasce de hoje, uma vez que, primeiro, esse é um clamor bíblico – pela humanização da pessoa – que vemos repercutir nas narrativas bíblicas e, de modo especial, em Jesus; segundo, porque continua reverberando em autores que me influenciaram, só para citar alguns: Kierkegaard, Ellul, Buechner, Peterson, Manning, Cavalcanti, Rosset, Monteiro, Unamuno, Nietzsche, Urteaga e tantos outros. Mas um autor que merece uma especial menção aqui é Henri Nouwen, sem dúvida a principal influência desse livro. Nouwen endereçou essa questão – a de nossa humanização – menos ao modo de uma discussão em seus livros, e mais ao modo de uma autobiografia ou de uma transgressão de si. De modo que quem lê Nouwen lê sua vida, e percebe o verbo encarnado o tempo todo e de inúmeras formas, não somente belas e alegres, mas também feias e tristes. Nouwen foi um dos primeiros (e poucos) a me fazer perceber que na espiritualidade cristã não somos transfomados para caminhar, somos transformados enquanto caminhamos e enfrentamos, à duras penas muitas vezes, os desafios, as alegrias, as tristezas, a leveza e a dureza do caminhar. É assim que a gente cresce, amadurece e aprende a ser humano e a andar perto de Deus e das pessoas ao mesmo tempo.

4. Penso que essa preocupação também nasce de inquietações do tempo presente, minhas é claro, mas não minhas apenas, de muita gente. Tenho impressão de que uma porção de nossa humanidade como existência, como identidades, como razão de ser, tem sido decepada por um certo espírito do tempo ou por um projeto de ser humano, que a religião cristã certamente ajudou a construir, que tem a ver com eficiência, santidade, perfeição, indefectibilidade, e que a gente não deu conta de viver. E, não dando conta de viver, escoamos nossas frustrações de várias formas, pela via do niilismo, do espiritualismo, do relativismo ou simplesmente do grito incontido que parece dizer: "Eu tenho o direito (natural) de ser imperfeito, de estar errado" – embora não necessariamente me resigne ao lugar do erro, invariavelmente passo por ali.

5. Então, esse livro vai ao encontro dessas inquietações, procurando ou buscando uma espiritualidade encarnada, procurando se parecer com Jesus de Nazaré, o Deus que se fez ser humano e tão lindamente humano, que só podia ser Deus. Como disse Thomas Merton, “é um destino glorioso ser membro da raça humana, ainda que seja uma raça dedicada a diversos absurdos e que cometa terríveis erros: mesmo assim, Deus em sua glória tornou-se membro da raça humana! Um lugar comum como esse de repente pode ser como possuir um bilhete premiado de uma loteria cósmica”.

Permitam-me citar aqui dois trechos do livro, e com eles termino essa breve descrição de caminho. O primeiro diz respeito precisamente a essa busca que me move neste livro:

Mas o que busco, afinal? Uma experiência, um modo de ser, pensar e agir que preconizem a convergência entre o cristão e o humano, entre o santo e o profano, entre ser discípulo e ser gente, de acordo com o tipo de gente que Jesus foi — verbo encarnado, chamado de “glutão e beberrão”, amigo de pecadores, que chorou, sorriu, festejou e sofreu. E, mais que isso, defendo que viver a fé cristã, buscando fidelidade ao Cristo, não nos isenta de ter de encarar a nós mesmos tal como somos no mais profundo do ser, nossas virtudes e bondade, bem como idiossincrasias, pecados e demônios. Lembrando do que disse Padre Brown, personagem de G. K. Chesterton: “Sou um homem... e, por isso mesmo, tenho todos os demônios do mundo em meu coração”. E, também, das palavras autobiográficas de Leonardo Boff: “Participo, penosamente, da condition humaine onde vige a porção sim-bólica junto com a porção dia-bólica. Sou teólogo mas também pecador. Peregrino e também me desgarro. Por isso sou devedor de desculpas e suplicante de perdão” (p. 19).

Por fim, as palavras de Paulo Freire, que foi um admirável ser humano e brilhante educador, que me inspiram a gostar desse paradoxo que é ser humano:

Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável, que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu “destino” não é um dado, (sic) mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo (p. 61).

É isso, minha gente. O restante, se curiosos/as estão, vocês terão de ler no livro...

Jonathan