domingo, 26 de setembro de 2010

Oração e integridade (III)

Para finalizar esta série, gostaria de compartilhar alguns trechos de pensamentos de autores a quem admiro, não por me ensinarem 10 passos sobre como orar, ou a fórmula da oração bem-sucedida; longe de mim coisas assim, e dos autores aos quais me referirei. Admiro-os, pois, ao falar sobre a oração, não escondem a dificuldade implícita nessa atividade, embora a considerem preciosa e importante; nem tampouco seguem a linha do determinismo crente, de que orar pode mudar céus e terra ou move o coração de Deus, desde que oremos “do jeito certo”.

Definitivamente, não! Reconhecem que a oração muda a gente em relação a Deus e não Deus em relação à gente. Tampouco ignoram o fato de que, pessoas de oração são, antes de tudo, gente de carne e osso, humanos, demasiadamente humanos. E isso me encanta, porque posso me distanciar cada vez mais do lugar religioso do cinismo, hipocrisia e da falsa piedade, e me aproximar mais de um lugar onde posso me considerar, quem sabe, um homem de oração, sem deixar de ser homem e nem almejar que minha oração “mova montanhas”, ocupando o lugar de Deus. Isso é o que ainda me mantém fascinado, ou seja, a chance de poder constatar que a oração, em si, não tem poder algum; quem o tem é Deus. E Ele parece não estar disposto a dividir esse posto com ninguém.

O primeiro autor a ser referendado não fala de oração (pelo menos não aqui). Mas fala sobre ser humano ou sobre a condição humana, coisa que nunca deixamos de ser, principalmente quando oramos. As palavras de Paulo Freire, admirável ser humano e brilhante educador, me inspiram a gostar desse paradoxo que é ser humano:

Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável, que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu “destino” não é um dado, (sic) mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade (Pedagogia da autonomia, p. 58-59).

Oração é, na vida de fé, o ato em que entramos diante de Deus em postura consciente e deliberada de falar e ouvir – relacionamento do Criador com a sua criação e dela com Ele. A qualquer tempo que nos concentramos, focamos os pensamentos e prestamos atenção, nós oramos. Orar significa ter consciência, exercitar a atenção, estimular e desenvolver a intensidade pessoal diante de Deus. (...) A oração é linguagem ousada para se dirigir a Deus, não para explicá-lo nem para falar sobre Ele. É resposta. O evangelho tem a missão de nos fazer parar de falar sobre Deus e nos levar a falar com Ele. (...) O verdadeiro conhecimento de Deus jamais é conhecimento sobre Ele; é sempre relacionamento com Ele (Trovão inverso, p. 128, 129).

A segunda referência foi de Eugene Peterson, para quem oração significa prestar atenção em Deus e manter o foco de nossa vida Nele. A terceira e última citação vem de Henri Nouwen, exemplo de integridade, como foi Jeremias; o que ele escrevia, ele vivia; e o que ele vivia, era expresso com enorme e inexorável franqueza em seus escritos. Com sua sensibilidade e brilhantismo ele deixou um legado espiritual incomparável para nós, cristãos. Em todos os seus livros praticamente se fala sobre oração. Mas em no Diário de seu último ano sabático, encontrei o que, para mim, são as palavras mais humanas e livres até então por ele escritas sobre o assunto.

Primeiro, ele começa falando sobre seu entendimento do que vem a ser a oração:

A oração é a ponte entre a minha vida inconsciente e consciente. Ela conecta meu pensamento com meu coração, minha vontade com minhas paixões, meu cérebro com meu estômago. A oração é a única via para deixar o Espírito vivificante de Deus penetrar todos os recantos do meu ser. É o instrumento divino de minha completude, unidade e paz interior (Diário, p. 20).
Em seguida, ele compara essa definição com sua vida de oração, fazendo uma confissão honesta acerca de si mesmo, um idoso de quase 64 anos de idade, que passou a vida falando sobre espiritualidade e oração, tendo um alto grau de aceitação e sucesso por isso, mas que, no fim da vida, se vê diante da encruzilhada tenebrosa de ter que admitir certos paradoxos em sua espiritualidade:

Se é assim, o que posso dizer sobre minha vida de orações? Gosto de orar? É meu desejo orar? Reservo tempo parar orar? Francamente, a resposta é “não” para todas as três questões. Depois de 63 anos de vida e 38 de sacerdócio, minha oração parece tão morta quanto uma pedra. (...) A verdade é que não sinto nada de singular quando oro, se é que sinto alguma coisa. Não há emoções intensas, sensações físicas, ou visões mentais. Nenhum de meus cinco sentidos é tocado – nenhum cheiro especial, nenhum som especial, nenhuma imagem especial, tampouco algum movimento especial. Se por um bom tempo o Espírito agiu tão claramente em minha carne, agora não sinto nada. Vivi na expectativa de que a oração se tornasse mais fácil à medida que eu envelhecesse e me aproximasse da morte. Mas parece estar acontecendo o contrário. As palavras escuridão e aridez parecem ser as melhores para descrever minha oração hoje (Diário, p. 20, 21).

Por fim, Nouwen nos brinda com a tentativa de avaliar sua própria confissão anterior, admitindo a grande dose de realismo nu e cru que nela há, sem, no entanto, perder de vista as possibilidades escondidas mesmo em seus mais áridos desertos espirituais, tampouco a perspectiva bíblica de que, no fim das contas, o Espírito “nos ajuda em nossa fraqueza, pois não sabemos como orar, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis” (Rm 8.26, NVI):
Será que a escuridão e aridez de minha oração são sinais da ausência de Deus, ou são sinais de uma presença mais profunda e vasta que meus sentidos podem abarcar? A morte de minha oração é o fim de minha intimidade com Deus ou o início de uma nova comunhão, para além das palavras, emoções e sensações corporais? Na meia hora em que me sento para estar na presença de Deus e orar, não acontece coisa sobre a qual poderia comentar com meus amigos. Mas talvez esse tempo seja uma maneira de morrer com Jesus. O ano à minha frente deve ser um ano de oração, embora eu diga que minha oração está tão morta quanto uma pedra. A minha certamente está, mas não a oração do Espírito em mim (Diário, p. 21).

Jonathan

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Sobre o Manifesto do Conselho de Pastores Evangélicos de Londrina

O Manifesto ao qual me referirei, pode ser lido no Coisado.com. Fico feliz em ver este Conselho se manifestando, e parabenizo-o pela excelente iniciativa; deveria fazer mais manifestos dessa natureza (e espero que o faça), especialmente fora das eleições, sobre questões públicas que não envolvam somente a “causa” dos evangélicos ou cristãos, como ele mesmo estimula, e muito bem, seus leitores a fazer ao final do texto.

Todavia, quero respeitosamente destacar alguns pontos no mínimo controversos e passíveis de debate do manifesto:

(1) Primeiro, ele fala de “movimentos que se levantam contra a liberdade de expressão da igreja”. Isso me parece muito mais um sentimento interno, fruto desse movimento que temos visto acontecer nas ultimas semanas em função de certos vídeos, do que algo que seja intenção clara e direta desses movimentos. Indiretamente, talvez mexa um pouco; mas não podemos afirmar que seja intenção primária. O PNDH 3 (Programa Nacional de Direitos Humanos 3), por exemplo, pretende (veja, eu disse “pretende”) defender os direitos de TODOS, desde garantir os direitos civis e humanos dos homossexuais, até “o livre exercício das diversas práticas religiosas, e a proteção de seu espaço físico”, o que inclui obviamente os cristãos, mas não SÓ os cristãos.

(2) Afirma-se ainda que o PLC 122/06 “pretende tornar criminosa toda a manifestação contrária à prática do homossexualismo”. Bem, eu li o projeto (e fico me perguntando quem mais leu, antes de se pronunciar contra ou a favor) e, pelo que li, NEM TODA manifestação será considerada criminosa (pelo menos em tese), só aquelas que efetivamente forem criminosas deverão ser punidas, como a questão do preconceito e da discriminação, em torno das quais claramente gravita esta lei.

Veja o Artigo 20, por exemplo: punirá (com reclusão de 1 a 3 anos e multa) quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem... orientação sexual ou identidade de gênero”. Se um pastor ou crente fizer isso (o que inclui a mim), apoio que sejam mesmo punidos como qualquer um. Ter uma posição pessoal contrária a homoafetividade não implica, necessariamente, em incitar preconceito ou discriminação contra homossexuais. Aliás, o testemunho cristão não condiz em nada com tais ações. Se não condiz, porque estamos tão preocupados? Será porque sabemos que entre nós existem fundamentalistas religiosos bem capazes de agir contra tal lei e, não só isso, contra o que o próprio Cristo nos ensinou?

(3) O texto também diz que “precisamos buscar candidatos que, além de respeitar a Constituição, assegurem também o direito da Igreja Cristã”. Correto, “também”. Afinal, ele milita num estado laico, e tem de defender os direitos de todas as pessoas de professarem publicamente suas religiões e religiosidades, mesmo as não-cristãs, e lutar por um estado social de direito, visando o bem comum – básico isso, não?

Em suma, sugiro aos irmãos e irmãs que tenham lido esse manifesto, que também se informem, leiam, pensem, meditem, orem sobre tudo o que puderem, não só antes de votar nas próximas eleições, mas também de condenar ou emitir opiniões a respeito. Do contrário, continuaremos sendo taxados, e com razão, de reacionários ignorantes, e gente que não pensa. NÃO É PROIBIDO discordar, de quem for, mesmo que seja o pastor, bispo ou apóstolo da sua igreja. Ele foi ungido e escolhido por Deus para essa função no corpo de Cristo, mas não é melhor que ninguém, e mesmo eles, os ungidos, falam besteira de vez em quando, afinal, são gente, em construção, pessoas inacabadas. A boa obra que Deus começou neles não está mais completa do que nos demais, mas há de ser completada... Até lá, eles só realizam coisas diferentes e não mais importantes que você, que não é sacerdote, e continuam sendo pecadores salvos pela graça e muito carentes dela em suas vidas, como qualquer um de nós. Discernir é preciso e pensar não é pecado!

Jonathan

terça-feira, 21 de setembro de 2010

No limear entre o Amém e o Retuitar

É engraçado, porém, não sem sentido, como certas reflexões que tenho feito têm nascido e crescido ultimamente de papos informais, seja pessoalmente ou pelo twitter. Às vezes, o que escrevo vira opção de reprodução no twitter, às vezes o que tuíto (é assim que escreve?) vira alternativa para reflexões textuais mais ou menos amplas, como será o caso a seguir.

O último de meus cúmplices de idéias foi Sérgio Carmo (sigam ele no twitter: @sergiorscarmo, pra não dizer que não fiz “jabá”), após sua resposta a uma de minhas postagens, que dizia: “É tendência dominante na religião o endosso sem o exame crítico, o ‘Amém’, sem o conferir coisa com coisa”. Então ele respondeu com um “Amém” (risos), e em seguida brincou com o lance, dizendo que “o amém é o retuíte da vida real”. Gostei da brincadeira, e repliquei dizendo que, por sua vez, “alguns améns” (isto é, nem todos) são retuítes (sem edição, nem adição) da vida real. E ai de quem “adicionar” ou “subtrair” algo! Afinal, à Palavra (de Deus, ainda que segundo os homens) não se põe, sobrepõe e nem se tira nada, sobretudo quando são palavras dos “ungidos de Deus” (leia-se: “do próprio Deus”).

Para acrescentar algo a mais em nossa despretensiosa conversa, disse (aproveitando as últimas discussões de natureza político-religiosa que temos acompanhado via web) que o diálogo entre cristãos deve acontecer na tensão entre amém e não-amém, evitando recorrências freqüentes ao “seja anátema”. Porque a linha é muito tênue, tenho defendido, entre o expor e ouvir opiniões diferentes, e o destilar de nossos anátemas e demonizações (que se pretendem desideologizantes, mas que são ideológicos) ao diferente, simplesmente porque o diferente não é o “como-eu” da Palavra. Sacaram? Não?

Ora, pois: tentando ser menos filosófico – porque até isso hoje é motivo pra ser execrado no meio evangélico, ou seja, “ser filosófico” é igual a “não ser crente” – o que estou dizendo é que tendemos a tratar o vizinho (diferente) como ameaça, especialmente se o “diferente” desse vizinho é “diferente da Palavra” (leia-se: diferente de “como eu” leio a Palavra, sem admiti-lo). Encurtando e indagando: quem foi que disse que a gente precisa dizer amém pra tudo o que tem uma conotação religiosa, teológica, sacerdotal ou sagrada? Quem seria capaz de se dizer árbitro e detentor do critério máximo da Verdade, a ponto de não admitir outra interpretação da Palavra (e da realidade, à luz dela) que não a sua própria – ou a de seu gueto (leia-se: igreja), pastor, bispo, apóstolo ou papa? (Essa pergunta foi retórica, pois há muitos entre nós que ainda têm se mostrado bem capazes disso).

Enfim, será que os bereanos – aqueles que foram considerados “mais nobres” que os tessalonicenses, porque não só tinham grande interesse pela Palavra, como a examinavam cuidadosamente enquanto ouviam, para ver se tudo era assim mesmo (At 17.11) – enquanto tipologia crente, ficaram tão distantes de nós a ponto de serem extintos? Acho que não. Eles podem ser minoria (como têm sido na história?), mas ainda estão por aí, espero, e a se propagar pelas “beiras” (como diria Marcos Monteiro) do cristianismo brasileiro. E que eles cresçam entre e além de nós, não só nas igrejas, mas nas praças, instâncias públicas, na política, na cultura, na economia, na sociedade, em outras culturas... Há um amém pra isso? Se sim, então retuíte (ou repasse) pra tua galera, se quiser. Se não, amém!

Jonathan

domingo, 19 de setembro de 2010

Discurso da iniquidade à serviço da ideologia dominante: a posição de Marcos Monteiro

No crepúsculo das Eleições do ano de 2010, temos visto a emergência tardia, mas (in)oportuna (de certo modo e por suas próprias razões) de posicionamentos acerca da conjuntura política atual no Brasil. É sintomático: falar de política a cada dois ou quatro anos em função das agendas eleitorais (e eleitoreiras). Tudo bem, “antes tarde do que nunca”, diria o ditado, que endosso parcialmente.

O borbulhar desses posicionamentos entre os evangélicos se deu não por causa de Marina – a representante do segmento entre os postulantes à presidência – mas de um pronunciamento, veiculado em vídeo, feito pelo Pr. Paschoal Piragini Jr., da PIB de Curitiba, após 30 anos de omissão e supostamente fazendo coro à ideologia “crente não se mete em política”. Há algumas décadas esse princípio vem sendo subvertido, muitas vezes pelo lado negativo – corporativismo evangélico, escândalos políticos, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, participação em “mensalões” e “mensalinhos”, dentre outras coisas.

A recente discussão se dá em função de uma agenda legislativa, supostamente orquestrada pelo PT, em prol da aprovação de leis que defendem direitos em geral dos GLBTS (Gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e simpatizantes) e à favor da descriminalização do aborto. O referido posicionamento, se coloca não apenas contra a aprovação de tais projetos de lei (sobretudo o PLC 122/2006), como tenta induzir um grupo de fiéis a não votar no PT, sob pena de ter, como corolário, não só a possível aprovação de tais leis, mas o impedimento legal de cristãos em se posicionar contra a prática homossexual, com a instauração da chamada “iniqüidade institucionalizada” e, pós ela, a ira e juízo divinos caindo sobre nós (socorro!).

Há grupos, como eu disse, que têm se manifestado contrariamente não só a perspectiva ideológica encampada por Piragini e seus correligionários, mas também teológica – entendendo que a iniqüidade, enraizada no ser humano, avança sobre outras áreas da vida, e não somente a sexual, o que não só o vídeo parece ignorar, como boa parte dos posicionamentos públicos de evangélicos, que pouco têm a dizer sobre injustiças, miséria, violência, desigualdades, etc., fruto de um “pecado estrutural”, mas quando a coisa afeta a moral e os “bons costumes”, cá estão eles, prontos não somente para se levantarem contra, mas também para demonizar, exorcizar e mandar pro inferno, se preciso for, quem ao menos pense de modo diferente. "A Verdade" está do lado deles e, claramente (afinal, “tá na Palavra”), não pode estar com os demais, sobretudo com os “progressistas”, que são pintados como aliados do Diabo na luta pela implantação do comunismo – que coisa mais retrógrada e anacrônica!

O vídeo que quero endereçar aqui é fruto dos posicionamentos de primeira ordem – contra esse discurso da iniqüidade à serviço da ideologia dominante e em desserviço do reino, da liberdade de expressão, democracia e do diálogo aberto. Quem se posiciona é meu amigo e irmão, a quem admiro, pastor Marcos Monteiro. Quero não só parabenizá-lo por sua coragem e discernimento, como dizer que concordo com cada palavra que ele diz – exceto quando afirma que irá votar em Plínio, excelente candidato, diga-se de passagem, mas meu voto pessoal vai para Marina Silva. É um exercício público de sua racionalidade, um convite ao diálogo, e uma amostra de que nem tudo o que é evangélico no Brasil precisa ser alienado ou estar à serviço de um moralismo despolitizado, desinformado e ultrapassado. Faço minhas as palavras de Robinson Cavalcanti: "Um maniqueísmo histórico, não sincero, não verdadeiro, paranóico, não é uma boa forma de testemunho".

Valeu, Marcos! Peço que vejam o vídeo e estejam abertos a opinar – de preferência, respeitando quem pensa diferente.

Jonathan



quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Oração e Integridade (II)


Tu me conheces, Senhor; lembra-te de mim, vem em meu auxílio e vinga-me dos meus perseguidores. Que, pela tua paciência para com eles, eu não seja eliminado. Sabes que sofro afronta por tua causa.Quando as tuas palavras foram encontradas, eu as comi; elas são a minha alegria e o meu júbilo, pois pertenço a ti Senhor Deus dos Exércitos. Jamais me sentei na companhia dos que se divertem, nunca festejei com eles. Sentei-me sozinho, porque a tua mão estava sobre mim e me encheste de indignação. Por que é permanente a minha dor, e a minha ferida é grave e incurável? Por que te tornaste para mim como um riacho seco, cujos mananciais falham? (Jeremias 15.15-18).

O jeito de Jeremias de orar certamente não seria indicado a nenhuma Prêmio Nobel de Oração, se é que esse negócio existisse (às vezes, mesmo que às escuras, ele parece existir); nem publicado num livro com sendo a oração que devemos repetir, porque Deus sempre atende. Por isso, me sinto razoavelmente confortável pra falar de oração agora. Não porque Jeremias seja modelo, mas porque ele é um anti-modelo; não creio que oração tenha a ver com modelos, nem com pacotes fechados. Se não havia dissonância entre a vida e o livro de Jeremias, o mesmo parece ser verdade sobre sua vida como profeta e sua vida de oração. As mesmas dores, angústia, ira, medo, lágrimas, alegrias, prazer, tristezas, raiva e depressão geradas por seu ministério profético eram matéria de suas conversas, nem sempre cordiais ou piedosas, com Deus. Em outras palavras, ao orar, Jeremias mostrava que era humano e, precisamente por isso, que precisava de Deus.

Primeiro, ele se mostra carente, rejeitado (pelo pecado e indiferença do povo), e impaciente, clamando pela ação divina, que parecia retardar em função de sua paciência e longanimidade (v. 15). É como se ele estivesse dizendo: “Você me colocou nisso, e agora, por tua causa, eu estou sendo prejudicado. Vê se me livra dessa, Deus!” (me baseio na paráfrase de Eugene Peterson, em “Corra com os Cavalos”, p. 122). Jeremias se mostra aqui igualzinho a qualquer um de nós – quando “nosso tempo compulsivo colide frontalmente com o tempo da providência divina” (Peterson) – tentando ensinar Deus a como ser soberano, e a como ser Deus!

Segundo, ele afirma ser solitário, em seu trabalho de profeta, não tendo ocasião pra se sentar com uma galera em festa, dando risadas e se divertindo (v. 17). A tarefa de pensar, refletir, pregar, desvendar significados, é uma tarefa muitas vezes solitária, sobretudo no caso de Jeremias. E por mais necessário que seja, consciente e irredutível que se esteja, a solidão bate e, com ela, o desejo de convívio. E não havia porque esconder nada disso de Deus, já que tudo era por causa dele. E o profeta diz se sentir “oprimido” pela mão de Deus. Por mais que fazer parte das causas Dele seja um privilégio, nem sempre é prazeroso (e nem tem que ser).

Terceiro, ele se revela sofredor (v. 18a). Sofremos muitas vezes por determinadas posições que ocupamos. Por mais necessárias e reconhecidamente importantes, elas (e os tipos de reação que temos em relação a elas) nos conduzem a lugares de sofrimento. Lembro-me que, desde criança, eu sempre fui muito conseqüente. E minha conseqüência me levava a não revidar com força (e as vezes nem revidar), as provocações da minha irmã. E, como eu não queria revidar, pra não ser injusto nem fazer besteira, esperava justiça do meu pai. E nem sempre essa justiça vinha do modo como eu esperava. Daí, vinha a revolta; daí a gente pensa e fala besteira, mesmo sem fazer. Esse é o lugar de Jeremias, de revolta e dor, por razões muito maiores. E ele quer partilhar com Deus essa dor. Através da oração ele pode fazer isso.

Quarto, além de sofredor, ele também se mostra irado com Deus. A sensação é de que Deus o abandonou; no começo, parecia promissor andar ao seu lado. Depois, veio a decepção de ver que Deus nem sempre age do modo como esperamos, e que ser amigo de Deus implica em ter de conviver com inimizades outras. Então, Jeremias destila toda sua honestidade, quando diz (na tradução “The Message”): “Você não é nada mais do que uma miragem, Deus; um adorável oásis à distância, e então nada!” (v. 18b). Sinceramente, não sei como na nova versão do livro de Eugene Peterson (“Ânimo”, Mundo Cristão), os editores tiveram a proeza de dizer, em um dos capítulos, que Jeremias é “o mais animado dos profetas”. Não entendo isso, pelo menos não nesse sentido neurolinguístico para a palavra. É o mesmo que querer achar pelo em ovo...

Mas, não nos enganemos com esse negócio de honestidade, do qual sou defensor, porém, consciente de que ela nem sempre será recebida e acolhida com uma tonalidade positiva. No caso de Jeremias, foi uma amostra de sua intimidade, sem desfaçatez ou pieguismo, com Deus, o que é bom. Na oração, não precisamos de máscaras ou disfarces; queiramos ou não, estamos nus diante de Deus. Por outro lado, revela a perda do foco e das prioridades. A excessiva preocupação com o que os outros pensam ou dizem sobre nós, pode revelar uma excessiva preocupação conosco; e essa excessiva preocupação conosco pode ser um sinal de que perdemos Deus de vista, e o que Ele nos chamou a fazer.

Mas, como diz Peterson, no momento em que Jeremias coloca esses sentimentos em oração, algo começa acontecer. Deus, além de ouvir atentamente, o convida a rever as palavras ditas, restabelecer prioridades e a renovar suas perspectivas, não como alguém ofendido por sua postura, mas desejoso de vê-lo avançar e crescer. Deixar falar os sentimentos às vezes significa, ainda que do lugar legítimo da intimidade, dizer coisas que ferem o relacionamento. Então, corremos o risco de dizer coisas “vis”. Mas Deus, como fez com Jeremias, abre as portas ao arrependimento sincero, e nos chama a separar o precioso do vil (v. 19), e recolocar nosso vagão nos trilhos.

(Continua...)

Jonathan

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Os defensores do Livro

Assisti ontem ao filme O Livro de Eli. Achei fantástica a sua crítica, sobretudo aquela dirigida aos fundamentalismos religiosos de nosso tempo – em parte, encampado pelo debate em torno do recente pronunciamento, de púlpito, do pastor Paschoal Piragini, pedindo aos seus fiéis para não votar no PT nas eleições de 2010 (mais sobre o debate, ver: http://www.novosdialogos.com/) – em seus usos (e abusos) do “livro sagrado”. Uma das frases marcantes do filme é quando Eli, personagem do protagonista Denzel Washington, afirma: “Todos esses anos que eu o levava e o lia, diariamente, na minha obsessão por mantê-lo a salvo, deixei de viver segundo o que aprendi nele”.

É impressionante como essa frase representa bem o que se tem vivido em termos de história das religiões, dentre elas o cristianismo, até os dias de hoje, você não acha? Ou seja, quando nos tornamos paladinos de um livro sagrado (no caso do filme, a Bíblia), incorporamos a posição dos fundamentalistas religiosos, e tendemos a perder de vista a integridade que o próprio livro nos ensina – no caso de Eli, o ensino fundamental esquecido foi: considerar o próximo antes e acima de si mesmo.

E pior: agimos como se Deus (e sua Palavra) precisassem de guarda-costas, e tendemos a abafar a consciência de liberdade e tolerância que essa mesma Palavra reivindica. E, geralmente, aquele que julga que a verdade está do seu lado, é o menos capaz de ver a luz libertária que emana da Verdade – “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8.32).

Quando a luta pela liberdade se desassocia da luta pela verdade, e as duas deixam de ser parceiras, geradas e geradoras uma da outra, o resultado é o que a história já tem nos mostrado há milhares de anos: violência, intolerância, guerras, inquisições, fogueiras santas. Dogmas não representam “a verdade” de Deus, embora se lhes atribuam tal valor; o cristão, por mais que conheça a Jesus (caminho, verdade e vida) jamais poderá exprimir absolutamente essa verdade nas coisas que cria (dogmas, estruturas, instituições). Logo, a religião fala muito mais da forma humana que da forma de Deus.

Outra frase do filme, que corrobora com esta idéia, é a do personagem Carnegie, o antagonista da história, interpretado brilhantemente por Gary Oldman. Numa discussão com um de seus lacaios, que havia dito que tudo aquilo era por um “maldito livro”, coisa inútil, Carnegie responde incisivamente: “Não é apenas um livro! É uma arma poderosa, apontada para o coração dos fracos e desesperados! E com ele, nós controlamos”. Isso me faz lembrar outra frase, dita por Nietzsche em seu livro Humano, demasiado humano: “O cristianismo nasceu para aliviar o coração, mas agora deve primeiro oprimi-lo, para mais adiante poder aliviá-lo” (2005, p. 90).

Enfim, o filme retrata de modo sutil a maneira como nós, que nos dizemos seguidores do Cristo, nos relacionamos com a Bíblia: às vezes como um amuleto, que traz sorte e bênçãos se a gente souber ler as palavras certas, do jeito certo; um tesouro (não aquele em vasos de barro, mas em vasos blindados) a ser escondido e defendido com unhas e dentes, ainda que seja sob uma poça de sangue; um instrumento (arma) poderoso, capaz de manipular pessoas das mais diferentes formas e para as mais escusas finalidades.

O Livro de Eli me faz recordar algo básico, elementar: quando a Palavra deixa de ser meio por excelência de libertação, ela se torna qualquer coisa, menos a Palavra de Deus.

Jonathan

sábado, 11 de setembro de 2010

Oração e Integridade (I)

Poucas vezes a oração esteve entre os meus mais diletos temas. Talvez porque as exigências que quase sempre ouvia em relação a ela soassem pesadas e grandes demais para os raros (e custosos) momentos de oração aos quais me dedicava.

Na adolescência, me diziam que a oração é um elemento fundamental na vida de qualquer cristão verdadeiramente convertido, como uma espécie de “termômetro da espiritualidade”: quanto mais a gente ora, mais próximos de Deus estamos, logo mais espirituais somos. Essa lógica sempre me soou muito própria do ponto de vista da vida cristã formal – que eu tinha como referencia – mas, ao mesmo tempo, bem imprópria do ponto de vista de minha pouca capacidade de adequação a esses moldes.

Fora isso, ainda tinha o desânimo que batia ao ver (e ler) certas coisas sobre oração que a tratavam como um “negócio”. Tipo, é quase como se estivesse dizendo que oração é fazer business com Deus. Só não diziam que é um tipo de business do qual Deus mesmo, geralmente, está ausente. Afinal, pra quê Deus, não é mesmo? A oração já faz tudo: ela liberta, expulsa demônios, gera emprego, cura doenças, traz o marido ou a esposa de volta, tem o poder de converter o coração de pessoas e, mais do que isso, de “mover o coração de Deus”. Não me esqueço da primeira frase que li no livro “A oração de Jabez”, de Bruce Wilkinson, em que ele dizia: “Caro leitor, quero ensinar-lhe como fazer uma oração à qual Deus sempre atende” (2001, p. 02). Foi o suficiente pra eu não querer ler mais. E nem precisava...

Ainda hoje me impressiono positivamente ao ver pessoas, como meu colega Steve, que são intercessoras por natureza. Mas tenho tentado deixar de lado a ilusão de orar tanto quanto elas ou de ser igual a elas, pois isso é algo que nunca serei. Tento admirá-las como admiro quem serve com naturalidade e prazer, quem canta maravilhosamente, quem apara um jardim como ninguém, quem cozinha coisas deliciosas, quem joga futebol magicamente, ou quem ensina e discursa conseguindo prender a atenção das pessoas do começo ao fim. São dons especiais.

Mas orar não tem a ver só com o dom de intercessão. Aprendi há algum tempo que, orar, mais do que interceder ou falar com Deus, é viver. A Bíblia diz: “Orai sem cessar”. Isso pode significar que, mesmo quando o falar cessa, a oração não termina; Deus continua falando, e nós devemos continuar ouvindo a sua voz, que, apesar de inaudível, não cala. Deus tem seus meios, os mais diversos, para falar conosco. E tenho aprendido que, não obstante toda formalidade que ainda impera nesse quesito, há também muitos jeitos de orar, de andar e me relacionar com Ele.

Continuo no próximo post, falando da oração e integridade no profeta Jeremias.

Jonathan

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Pragmatismo invertido (II): Resposta a Mark Carpenter

Caro Mark,

Fico muito grato por seu comentário ao meu último post. Creio que você explicou melhor que eu. O uso da expressão “how” se encaixaria melhor mesmo em “quão” (se fosse o caso). Também acredito que vocês possam ter tentado honrar a intenção de Philip Yancey – embora esse negócio de perscrutar a intenção de alguém seja relativo à sua própria interpretação, e não possa ser equivalente à intenção original em si. Há outras obras, como a citada “Alma sobrevivente”, em que vocês se mantiveram mais fiéis à intenção explícita do autor, pelo menos em minha rasa percepção.

Contudo, como eu disse, ela “parece” (e como nem tudo que parece, é...) ter seguido noutra direção, que é a de ressaltar Que Deus “bom” é esse (no sentido de dar vazão aos questionamentos sobre a bondade de Deus mesma, e não se Ele “serve” ou não), e, como contrapartida, que fé (cristã?) pode ser relevante hoje. Mantenho minha posição reticente quanto ao uso das expressões “serve” e “verdadeira”, e conheço pouco, mas o suficiente, de literatura cristã, inclusive das que vocês têm publicado ao longo desses 45 bem-sucedidos anos de vossa existência, para saber que, embora possa haver interesse em respeitar a intenção do autor e a “inteligência do leitor”, igualmente inteligente é a estratégia de privilegiar o mercado.

Reconheço, nenhuma editora pode ser grande como é a Mundo Cristão hoje no Brasil sem levá-lo em consideração. Mas você há de considerar, igualmente, que não é possível manter a fidelidade a certo prospecto ideológico (formativo, consciente, crítico e teologicamente equilibrado) trabalhando em função das tendências de mercado – sem aqui querer demonizá-lo nem desconsiderar sua importância. Apenas creio que, assim como globalização e pós-modernidade são expressões idiomáticas e conceituais que tentam dar conta desse tempo em que estamos vivendo para que mantenhamos uma relação crítico-construtiva (de inserção parcial e também de suspeita) com a cultura , o mesmo pode se dizer do mercado, expressão que quer dar conta de tanta coisa ao mesmo tempo, tornando-se reducionista às vezes e com a qual (ou com o qual) precisamos manter a mesma relação crítica suspiciosa.

Ademais, o que vocês fizeram com livros como o “Corra com os cavalos” (antiga edição da Ultimato e Textus) para mim, também é um exemplo de pragmatismo, que visa mais atender as demandas de um tipo de público do que necessariamente a fidelidade ao “original”. Uma coisa é atualizar o livro. Outra, bem diferente, é atualizá-lo à luz de um apelo comercial. E isso não só vocês fazem, a maioria das editoras faz, e não é de hoje. Um leitor um pouco mais atento – e não precisa ser tão inteligente assim – saca isso rapidinho.

Leio e aprecio os livros de vocês e continuarei lendo, apreciando e recomendando. Mas creio que, como editora, vocês precisam não apenas de leitores “tietes”, ávidos pelos produtos (dentre os mais variados) que vocês oferecem ou as demandas que atendem (e criam), que aplaudem e concordam com absolutamente TUDO o que vocês fazem, desde as escolhas de autores, seleção para publicações e decisões editoriais menores, mas também de leitores que sejam parceiros críticos, entendendo que a apreciação pura e simples sem a crítica não produz crescimento, a não ser o do ego. Falo como alguém que tem, a duras penas, tentado aprender essa lição...

Respeitosamente,

Jonathan

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Pragmatismo invertido

Pela primeira vez, tive o privilégio de ver e ouvir o renomado escritor norte-americano Philip Yancey, na Livraria Cultura em São Paulo, na ocasião do lançamento de seu mais recente livro: “What Good is God? In search of a faith that matters” – que, na versão da Editora Mundo Cristão, ficou assim: “Para que serve Deus? Em busca da verdadeira fé”.

Já li alguns livros de Yancey, sendo “Alma Sobrevivente” (2004), para mim, o mais marcante e significativo de tantos que ele já escreveu. Foi interessante perceber como a habilidade narrativa do autor, ao contar histórias do cotidiano entremeadas por reflexão teológica, é uma marca não somente de sua maneira de escrever, como também de discursar. Curioso foi também notar a grande aceitação do público brasileiro para com este autor. Aceitação com relances de tietagem, visível no breve momento de interação com o autor, que se abreviou ainda mais em função da falta de objetividade dos “questionadores”, que questões não expressaram, senão apenas o desejo de externar seu entusiasmo de fãs.

Todavia, quero aqui chamar atenção para um detalhe mercadológico. O título do livro, se traduzido literalmente do original (e o original faz bem mais jus do que a sua versão), seria: “Quão bom é Deus? Em busca de uma fé relevante” (ou “que importa”). Segundo relatou o autor, com tantos questionamentos sobre a legitimidade da fé em Deus que o mundo tem feito, estupefato diante dessa era de catástrofes que temos presenciado, o livro é uma tentativa de responder a tais questionamentos, do lugar das experiências por ele vivenciadas em suas viagens ao redor do mundo como palestrante. A intenção, portanto, seria buscar um caminho de retorno a uma fé que tem importância em tais contextos – não essa com contornos quase dogmáticos (“da verdadeira fé”) que o subtítulo na tradução oferece.

Dessa forma, o título “Para que serve Deus?”, não apenas não parece condizer com o original – como boa parte dos livros traduzidos para o português por editoras como a Mundo Cristão – como instaura o que se poderia chamar de pragmatismo invertido. Ou seja, a pergunta “para que serve”, não vem de um autor norte-americano, como era de se esperar – já que são eles os que, por formação, mais tendem a pensar quase tudo em termos de “Para que serve” e “Como funciona” – mas de uma editora brasileira que, pela enésima vez, lança o livro de um norte-americano.

Moral da história: pelo jeito, aprendemos direitinho (com os norte-americanos, sobretudo) a pragmática lição de “como fazer vender” e “como produzir sucesso”, até mesmo quando a intenção original da obra e de seu autor parece ir em outra direção.

Jonathan