sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Vivendo na encruzilhada

Young Cross Roads

É inegável que William Young, escritor canadense, há pouco tempo entrou para o hall de notáveis autores da literatura contemporânea. De mero desconhecido, Young saltou para o status de um dos autores mais lidos nos últimos tempos, com o lançamento de seu primeiro livro, e também primeiro best-seller, A cabana (Sextante, 2008). Neste primeiro livro ele já demonstrou a habilidade rara de fundir em uma mesma história uma narrativa cativante e uma reflexão (existencial e teológica) provocativa, inovadora. O “problema” do livro – para alguns, é claro – é o mesmo que se pode encontrar em inovadores por natureza: eles incomodam muita gente, especialmente aos guardiões da ortodoxia de plantão. 

E começo então a falar sobre esse mais recente lançamento de Young, A travessia (2012) pontuando que ele tem algumas semelhanças com A Cabana. Em primeiro lugar, porque os temas teológicos de fundo são quase os mesmos: o problema do sofrimento humano, religião, liberdade e graça, comunidade trinitária, etc. Em segundo lugar, porque a dinâmica em que esses temas aparecem na nova trama também é bastante parecida, em que o protagonista, um homem beirando a meia-idade, vivenciando uma situação extrema, é conduzido a um encontro com a Trindade, que, assim como na obra anterior, assume formas humanas típicas: o Espírito Santo é uma mulher idosa da tribo Lakota, carinhosamente apelidada de “Vovó”; Jesus aparece como um homem de olhos castanhos e vestimentas rústicas, e Papai tem uma aparição rápida na figura de uma garotinha de vestido azul e verde, embora o autor tenha dito na narrativa que, através de Jesus e de Vovó, “Papai nunca deixou de estar presente” (p. 235). Impossível esquecer-se de outro ilustre personagem, chamado de “Jack da Irlanda”. Logo fica claro, pela influência que teve na vida do autor e na construção de sua obra, que se trata de uma homenagem a C. S. Lewis (que era conhecido por seus amigos como “Jack”). Por fim, pode-se dizer que a mesma tenacidade da união entre narrativa e reflexão, tão habituais no estilo do autor em A Cabana, continuam presentes, embora menos intensamente, em A travessia – título, aliás, que, a meu ver, não traduz a ideia do original em inglês, Cross Roads, que significa encruzilhada, cruzamento ou trincheira. Esse título, ademais, como comentou um amigo meu, dá uma cara meio “espírita” ao livro.

Agora aponto alguns aspectos singulares deste livro. Sua história é revestida de uma complexidade ainda maior que a de A Cabana, com muitos outros personagens coadjuvantes, vários cenários diferentes, e o elemento “místico”, por assim dizer, é ainda mais forte que o que vimos no livro anterior, de arrepiar os cabelos dos mais conservadores, acostumados a se ligar mais em detalhes legais e possíveis em termos de realidade, e menos no princípio que rege a história, que neste caso, é preciso lembrar, trata-se de uma ficção, recheada de aspectos arrolados para mexer com a imaginação e despertar o interesse no leitor – bem, nada de mal nisso, certo? Como diz a epígrafe do capítulo, atribuída a C. S. Lewis. “Um dia você será velho o bastante para voltar a ler contos de fadas” (p. 31).

Então, é preciso adiantar que, assim como (e até mais que A Cabana), a obra em questão deve ser lida com a fluidez livre de uma estória, como tal altamente metafórica e sem compromisso de ser precisa na forma como insere os saberes teológicos em questão. Essa é uma ressalva necessária contra possíveis buscas de “erros e heresias” no livro, desqualificando-o como “obra teológica”, como fizeram alguns em relação ao livro anterior deste autor, até porque não se trata de uma “obra teológica”, pelo menos não no sentido estrito e hermético do termo, mas pode ser classificada dentro de um gênero mais amplo, que une características típicas de um romance, mas com inserções de questões teológicas explícitas. Naturalmente, o autor teve a intenção de apresentar uma determinada visão sobre Deus, em sua relação com a humanidade, em oposição a outra, mais “religiosa” talvez. Aliás, como havia feito em seu romance anterior, Young também reconhece nesta obra que imagens de Deus não são o próprio Deus; podem ser relances inacabados apenas, como Vovó afirma a Tony, o personagem central, já no fim da história: “Imagens... nunca foram capazes de definir Deus, mas como desejamos ser conhecidos, cada vislumbre, por menor que seja, é uma pequena janela para uma das facetas de nossa natureza” (p. 235). Mas um romance que reúne aspectos teológicos não equivale a um livro de teologia sistemática, por exemplo. Dessa forma, este livro deve ser lido com espírito mais poético que cartesiano, embora seja perfeitamente possível discordar de uma ou outra visão teológica expressa pelo autor. 

A natureza imaginativa permite ao autor pensar em um caso de como alguém profundamente ferido pelas contingências da vida, e que, com isso, feriu a muitos outros também – no caso de Tony, os feridos foram seu irmão, ex-esposa, filha, sócios, funcionários e, assim, conseguiu afastar todo mundo para longe de si – pôde, num contexto de sofrimento extremo, como a morte, ter um reencontro tal com a vida e perceber que tudo o que antes chamava de liberdade, vida e sucesso, era na verdade sinônimo de escravidão, morte e fracasso. Essa vida ele reencontra através do terno amor de Jesus, o mesmo Jesus que sua mãe havia dito em sua infância que nunca deixaria de o abraçar. O personagem, em decorrência de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) que o deixou em coma profundo, encontra-se com Jesus, Vovó e Papai em uma realidade intermediária, cujo cenário é um retrato da própria vida dele até então, e é convidado a uma dupla experiência de cura e “conversão”: a cura de si mesmo através da cura e conversão a outra pessoa que ele, Tony, deveria escolher. A partir de então, começa a aventura de Anthony Spencer, em busca de respostas a perguntas como: Quem é Deus? Quem sou eu? A quem devo curar? Como posso curar alguém estando eu ainda, de múltiplas formas, ferido e à beira da morte? Se não posso apagar o passado, será é possível lidar de modo diferente com ele? Como superar a perda do filho de 5 anos, que desde então o transformara em uma pessoa fria, fechada e egoísta? 

Assim, através da história de Tony, Young demonstra que não é de um dia pro outro que o mal se instala silenciosamente no coração humano, o que torna também a conversão – esse gradativo arrancar, com a ajuda do Espírito, das ervas daninhas do jardim da existência, com o cuidado de não jogar fora com elas rosas e outros espécimes preciosos – é de fato um processo, que pode até ter marcos ou viradas bem definidas, mas que dura a vida inteira.

Uma passagem emblemática que ilustra bem essa ideia é quando Jesus, falando a Tony sobre esse gradativo projeto de (re)construção conjunta (Deus e a pessoa) de uma vida – que, para ele (Tony) estava “demorando demais” – explica que aquele terreno sobre o qual operava (que visualmente tinha a forma concreta de uma propriedade) era:

Um terreno vivo e não um canteiro de obras. Algo real, que respira, não uma construção que pode ser erguida à força. Sempre que você dá mais valor à técnica do que ao relacionamento e ao processo, sempre que tenta acelerar o desenvolvimento da consciência e forçar a compreensão e a maturidade a crescerem antes do tempo, é nisto – disse ele apontando para todos os lados da propriedade – que você se transforma (p. 56).

É óbvio que Jesus estava falando de Tony e não de qualquer pessoa em geral. Mas também é claro que esse princípio não se aplica ao personagem apenas, mas a qualquer pessoa que leia isso mais atentamente. Se nossa vida é um canteiro, certamente é um canteiro constantemente sinalizado com a placa “em obras”. E que a obra de Deus na vida de alguém pode ser lenta sob o olhar desse mesmo ou de outro alguém, mas há de ser completa até o dia de Cristo Jesus. Até lá, seremos seres inacabados e em processo. Gosto sempre de pensar que a música “In repair”, de John Mayer, é uma excelente descrição de como vejo minha própria vida, especialmente quando diz: “Eu estou em reparo, não estou pronto ainda, mas estou chegando lá”.[1]

Essa, portanto, é uma história sobre o poder de Deus de mudar uma vida – se e quando nesta vida há lugar para a morada de Deus – e, através dela, revolucionar e surpreender tantas outras com um amor incompreensível. Carrega a mensagem de que quando Deus (Pai, Filho e Espírito), passa a viver em nós, mais que religiosos, nos tornamos caminhantes da encruzilhada, sempre sendo colocados na posição de ter de escolher a vida, sendo impelidos pela graça, mas não obrigados. Costumo dizer que ser seguidor do Cristo é, de fato, estar numa posição de encruzilhada, em que nada mais é fácil, simples e nem confortável, e até por isso é tão fascinante.

Outra citação de C. S. Lewis, que aparece na última página do livro referindo-se, sobretudo, à vida cristã, é cabível aqui: “Se você buscar a verdade poderá encontrar conforto no fim. Se buscar conforto, não o alcançará, e tampouco a verdade, mas apenas bajulação e ilusões no começo e desespero no fim” (p. 239).

Finalizando, não recomendo a leitura desse livro para aqueles que, porventura, estejam ansiosos por encontrar o que já viram em A cabana. Não leia, porque, no final, provavelmente se sentirá frustrado(a). É um livro parecido em alguns aspectos, mas inteiramente diferente em outros. Recomendo sua leitura aos amantes de estórias, dramáticas, complexas, paradoxais, como a vida muitas vezes é, e que estejam dispostos a refletir e repensar sua visão sobre si, sobre Deus e sobre as pessoas que dão significado especial à sua, minha, nossa existência.

Jonathan


[*] Resenha de: YOUNG, William Paul. A travessia. São Paulo: Arqueiro, 2012, 240p.

[1] No original: “I’m in repair, I’m not together but I’m getting there”. John MAYER. Álbum: Continuum. Columbia Records, 2006, faixa 11.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Rob Bell, os evangélicos e suas representações de céu e inferno



Por Jonathan Menezes
Toda a dificuldade em entender o inferno é que a coisa a ser entendida é quase Nada.
– C. S. Lewis
Quem conhecia o pastor norte-americano Rob Bell apenas por suas obras anteriormente publicadas, nomeadamente: Repintando a Igreja (2005, Editora Vida, Velvet Elvis), Deus e sexo (2007, Editora Vida, Sex God), ou Jesus wants to save Christians (2008, Zondervan), ou até mesmo pela série Nooma, composta de vários vídeos em que Bell atua e ensina de modo criativo, certamente foi surpreendido pela repercussão e pelo teor para lá de polêmico de seu mais recente livro, O amor vence (2012, Editora Sextante, Love Wins).
A habilidade na comunicação clara, inteligente e atraente — quem lê Bell sente como se tivesse ouvindo ele falar ao vivo — continua como marca registrada nesta obra. Certamente Bell é um dos principais comunicadores desta e para esta geração. O problema, para muitos, está no conteúdo, que parte do questionamento de uma teologia de céu e inferno que há séculos vem sendo aceita e reproduzida como “Verdade” pelos cristãos, e uma versão especial dela, pelos cristãos evangélicos norte-americanos de vertente fundamentalista, a qual o autor mesmo assim descreve:
Fizeram-nos crer que um seleto grupo de cristãos viverá eternamente em um lugar de paz e alegria chamado céu, enquanto o resto da humanidade será deixado para sempre no tormento do inferno. Muita gente aprendeu que esta é uma verdade imutável da fé cristã e que rejeitá-la é o mesmo que rejeitar Jesus. Isso é um equívoco. Além do mais, essa ideia não ajuda a propagação da mensagem de amor, alegria, perdão e paz que o Senhor nos trouxe e que precisamos desesperadamente ouvir (1).
Desde que o livro foi publicado nos Estados Unidos, há pouco mais de 1 ano, as repercussões que aconteciam lá reverberavam aqui no Brasil com um teor negativo maiormente, em que Bell recebia acusações que o colocavam no posto de “herege da vez”. A mais comum foi a de que, com este livro, Bell se autoiniciou em uma nova fase “universalista” — isto é, segundo o senso comum, como quem crê que a salvação em Cristo é universal e que, a despeito do que na terra aconteça, no final Deus irá salvar a todos, porque no fim, como diz o bordão do livro, “o amor vence”. Com a tradução do livro para o português e sua publicação no Brasil neste ano de 2012 (pela editora Sextante), o assunto voltou à tona entre os brasileiros. Mais ainda agora, a partir da entrevista concedida por Bell à André Petry, para a Revista Veja (Edição 2297, de 28 de novembro de 2012). Gostaria de concentrar meus comentários na entrevista, fazendo breves correlações com o livro.
Em primeiro lugar, uma das ênfases de Bell na entrevista, que bem resume a principal tese defendida no livro, é a de que céu e inferno são dimensões de nossa existência aqui e agora, que “se estendem para a dimensão para a qual vamos ao morrer...”, e que “as pessoas mais interessadas em discutir o inferno depois da morte são menos interessadas em discutir o inferno sobre a terra. E vice-versa” (2). Não poderia concordar mais e não vejo nada de exagerado nestas afirmaçôes. Como ele mesmo diz, basta olhar ao redor, em nosso país e no mundo, para perceber que muitas pessoas, de fato, têm enfrentado infernos de infinitas naturezas neste momento. De igual modo, é possível dizer que o céu — ou a vida eterna — é algo que se pode experimentar, pela fé, de modo parcial já-aqui no tempo. Contudo, este ponto de seu argumento — de que céu e inferno não são “lugares” propriamente, mas estados existenciais —, Bell não foi o primeiro a apresentar, e nem eu saberia precisar com certeza se há um único “pai” para esta ideia. O próprio Bell reconhece isso quando diz: “Eu não criei nenhuma linha de pensamento inovadora que vá de encontro a tudo o que já foi dito inúmeras vezes. Esta é a beleza da fé cristã, histórica e tradicional: ela é um rio largo e profundo que vem correndo há milhares de anos, transmitindo uma incrível variedade de vozes, pontos de vista e experiências” (3).
Deixe-me citar um exemplo disso. Num livro de ficção (não menos teológico por isso) escrito em 1946, chamado The great divorce [O grande abismo], C. S. Lewis fez afirmações semelhantes e, em minha avaliação, de maneira um pouco mais criteriosa que Bell em seu O amor vence. A assunção básica de Lewis, logo no prefácio, é a de que será verdade, para aqueles que completarem a jornada (ou a “carreira da fé”, na linguagem paulina), que “o bem é tudo e que o céu está em toda parte”, embora disto não implique, segundo ele, na “falsa e desastrosa ideia de que tudo é bom e de que qualquer lugar é o céu” (4). Também afirmou acreditar que, se a Terra fosse escolhida em lugar do Céu, acabaria tendo sido, todo o tempo, “apenas uma região no inferno”, mas se estivesse subordinada ao Céu, teria sido, desde sempre, “uma parte do próprio Céu” (5). Decorre disso que, para Lewis, o Céu é algo que permeia a realidade de tudo aquilo que é “bom” e “verdadeiro”, e o inferno pode ser mais bem entendido como um “estado de mente”, resultante do isolamento da criatura, em sua própria mente, da vontade de seu Criador (6) — e aqui estão inclusas todas as incontroláveis implicações disso. Isto se funde bem com a ideia de Bell de que o inferno pode ser descrito como nossa recusa em permitir que Deus reconte nossa história (7).
Em outras palavras, o inferno seria fruto, também, da escolha do ser humano — ou sua “rejeição” e “resistência”, como enfatiza Bell numa parte da entrevista — por viver de modo alheio, e até mesmo oposto, ao amor de Deus em sua vida na terra. Se é impossível afirmar que o destino deste ser humano será a condenação eterna, é também muito difícil (e tão “especulativo” quanto) afirmar que, porque Deus é bom e é amor, ele/ela está, por derivação natural e largamente extendida do amor divino, livre de qualquer condenação. Lembrando do que disse Paulo, “já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte” (Rm 8.1, 2). A libertação da condenação, desta forma, é consequência do “estar em Cristo”, conforme Paulo. Quem está, como chegou a estar e de que modo permanece “estando” é outra discussão. Só sei que, de modo algum, propagaria aqui a confusão entre as afirmações “não há salvação fora de Cristo” e “não há salvação fora da Igreja” ou “do Cristianismo”. Essa é uma pretensão tola da qual precisamos, urgentemente, nos livrar.
Em segundo lugar, um dos equívocos de Bell está em rejeitar com veemência o que ele chama de teologia concernente ao campo da “pura especulação” sobre céu e inferno. Não pela razão — correta a meu ver — de que nada podemos falar sobre céu e inferno como se tivéssemos “lá” estado ou como se possuíssemos “uma fotografia” de como será quando passarmos “desta para melhor” (ou para pior, quem sabe). Se estudarmos com um pouco mais de atenção o que as Escrituras falam sobre céu e inferno, veremos que estes são representados de modo figurativo, e não literal, isto é, não pretendem apresentar uma pintura ou foto da coisa em si, mas oferecer vislumbres simbólicos de como é ou como será — o livro de Apocalipse é, para mim, o melhor exemplo. Desse modo, de fato, é no mínimo estranha a “autoridade” com que alguns reclamam afirmar que “lá será assim” ou “lá será assado”. Mas, quando digo que ele se equivoca, é porque deixa inúmeras questões em aberto em suas afirmações, tornando-as tão especulativas quanto as que ele mesmo ora critica, tanto no livro quanto na entrevista. Um exemplo está em quando ele diz ser possível encontrar hoje um número grande de cristãos que acreditam que “Deus conquistará todos nós, ganhará todos os corações. Não sei se isso vai acontecer, também não sei o que acontece quando morremos, mas acho que essa é a melhor história possível. Portanto, por que não torcer por ela?” (8).
O uso da palavra “não sei” por Bell me lembra daquele personagem, o Chicó, do filme O auto da compadecida(Guel Arraes, 2000), que dizia não saber explicar as coisas, e repetia constantemente o bordão: “Não sei, só sei que foi assim”. O problema não está em não saber, está, antes, em confundir a natureza dos saberes, os de ordem científica — como o evolucionismo, citado por ele — e especulativa, e os de ordem de fé. Não estou dizendo que não possa haver, em nenhuma hipótese, conciliação entre eles, mas que há diferenças óbvias entre o que um saber científico reivindica e o que um saber de fé reivindica, e entre as respostas que ambos podem e se propõem a dar. O cientista, que estuda fenômenos, nada pode dizer sobre céu e inferno, pois não pode dizê-lo “objetivamente”. Já a pessoa de fé, é capaz de dizer: “sei que o inferno e o céu estão aqui presentes, e também lá”, mas logo reconhecerá que este saber só tem sentido se concebido e experienciado na fé. Ele/ela não apenas “torce” para que assim seja, como quem torce para que chova amanhã, mas espera — no sentido da esperança que se conjuga entre paciência e luta — que assim seja. A fé, já diria o autor de Hebreus (11.1), “é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se veem”.
Em outras palavras, a fé pode ser entendida como uma certeza sustentada pelo Espírito — já que não vejo, mas espero — em meio às muitas incertezas humanas. É resultado do encontro entre o que há de mais sublime e verdadeiro na existência para os que “estão na fé” — o conhecimento de Deus — com aquilo que há de mais frágil e incerto — conhecimento e experiência humanos. Na definição de Brennan Manning, “fé é um compromisso com a verdade, que é Jesus Cristo. Fé é dedicação à realidade, que é Jesus Cristo” (9). Portanto, Cristo é o centro tanto da fé nele, como da salvação que somente nele obtemos. E isto me conduz ao meu terceiro e penúltimo ponto: a intrincada questão da “salvação universal”.
É preciso dizer que concordo com a defesa de Bell que, ao invés de céu e inferno, o amor de Deus está no centro da mensagem do evangelho e que este amor se destina à toda a humanidade e não somente a uma parcela dela — basta aqui lembrar de João 3.16. Em seu primeiro livro, Velvet Elvis, Bell disse que “se o evangelho não é a boa-nova para todo mundo, então não é boa nova para ninguém” (10). A salvação de Cristo pode ser considerada, nesse sentido, “universal” quando se tem em mente que a intenção seja a salvação de todo ser humano na face da terra. A crença de Bell numa “salvação universal” em que todos serão alcançados — que rejeita a noção de condenação e barateia a noção de graça — me parece, porém, uma banalização da ideia. Sobretudo, porque ele mesmo afirma que a salvação precisa ser concebida em um “contexto holístico”. O que ele omite, talvez pelos limites próprios da edição, são as implicações disso. O que significa, afinal, “ser salvo”? Salvo de quê e para quê? Ser salvo, num contexto holístico, não implica que as pessoas estejam sendo transformadas, paulatinamente, na totalidade de seu ser? Talvez na tentativa de combater a ideia da presença ou ausência de uma salvação que determina se a pessoa vai para o céu ou para o inferno, Bell tenha se perdido um pouco quanto a outros aspectos, não menos importantes, de “ser salvo”, ou mesmo em esclarecer quais seriam os reflexos do “céu aqui” na vida concreta de pessoas.
Em minha percepção, essa entrevista apresenta um Rob Bell um pouco mais “irresponsável” na maneira de se posicionar do que demonstrou ser em O amor vence. Se isso tem a ver com o fato de ele ter saído da Mars Hill, sua antiga igreja, se mudado para Laguna Beach, na Califórnia, e agora atuar como palestrante e escritor mais “livre”, nada posso dizer para além de especulação. Não importa. No livro, pelo menos, não vejo Rob Bell abrindo mão da ideia de um céu ou inferno “depois”. Pelo contrário, no capítulo 3, em que fala do Inferno (e aqui tomo o livro em sua versão original) ele diz que “existem infernos individuais, infernos comunitários, infernos de uma sociedade mais ampla... há inferno agora, e há inferno depois, e Jesus nos ensina a tomá-los, ambos, seriamente” (11). Então confesso ter ficado um tanto quanto confuso pela falta de clareza da posição de Bell acerca disso. A princípio, parece-me que a ideia de céu e inferno “aqui”, prevalecem diante da ideia do que vai acontecer no pós-morte, sobre o que ele se recusa a falar. Ele tem ideias interessantes neste livro, mas se aprofunda pouco nelas, deixando uma série de questões muito mal resolvidas. Não pode reclamar, neste sentido e ao todo, da polissemia interpretativa de seus críticos.
Em quarto lugar, e aqui vai talvez meu maior ponto de desapontamento e desacordo com o que Rob Bell disse na entrevista, ele patina muito ao tentar pintar um Deus “bonzinho”, de boa reputação, que não fere ninguém, não magoa ninguém, não desaponta ninguém — coisas que nem o próprio Deus, em minha percepção de sua Palavra, pretendeu ser. É quase como que uma postura de “guarda-costas” da bondade divina, seja contra a postura da “liga da justiça” fundamentalista norte-americana, ou a favor de um mundo ferido “em nome de Deus”. Isto fica explícito na resposta à pergunta: “Faz sentido que um ateu seja salvo por uma divindade na qual ele não acredita?”. Ao que Bell responde: “As pessoas de fé acreditam que Deus ama a todos, dá vida a todos. O Deus sobre o qual Jesus falou não seria capaz de ferir ninguém”(12). Afinal, a quem Bell quer convencer (ou contentar) com declarações como essa? Teologia preocupada em salvar a reputação de Deus soa menos como teologia e mais como marketing divino. E o evangelho me parece ser o “produto” mais antimarketing que existe na terra. Nele vejo a imagem de um Deus amoroso e terno, mas que não omite sua fúria em certos momentos e não aceita passivamente a rebelião de suas criaturas contra si mesmas e contra seu criador. Ama incondicionalmente, sem perder seu “anseio furioso” (Brennan Manning) pela reconciliação da Criação, sem, porém, ofertá-la a “preço de banana” na esquina mais próxima. Um Deus incapaz de se enfurecer é um Deus indiferente e, como tal, incapaz de amar.
Para encerrar, quero enfatizar que sou contra qualquer um que, em qualquer posição que esteja, julgue-se no direito de condenar outra pessoa como “herege” (um cristão menos qualificado neste sentido), como muitos estão fazendo com Rob Bell neste momento. E tenho, inclusive, um entendimento mais empático em relação a ideia de “herege” do que negativo, pois se trata da figura do contestador, e sem dúvida precisamos de contestadores no mundo de hoje. Contestadores que não sejam impossibilitados de contestar, mas que também aceitem jubilosamente ser contestados, desde que em um nível dialogal e respeitoso. Fora isso, o “lado bom” de se conhecer um “herege” é que você acaba conhecendo também muitos inquisidores, que estavam à espera dele aparecer, e acaba se dando conta de que a “Santa Inquisição” pode ter morrido com o passado, mas permanece viva “em espírito” numa miríade de sentidos. Como oro a Deus para que me livre da pretensão maligna de ser inquisidor ou (no campo da teologia) “legislador”, minhas críticas a Rob Bell são críticas às ideias dele — como leitor e admirador de seus escritos — e não à sua pessoa (me sinto ridículo tendo que esclarecer esse tipo de coisa em pleno século 21!). Quanto à pessoa, continuo crendo de bom grado, pelo que vejo, que Bell permanece sendo um homem de fé comprometido com Jesus Cristo. Não será este livro ou essa entrevista à Veja que irão romper com isso. É preciso bem mais que isso, e nem caberia a mim dizer que está “dentro” ou “fora”. Deixemos Deus fazer o trabalho de Deus.
Na tarefa de teologizar limito-me a pensá-la como uma resposta ocasional. Se ela é válida ou não, não me cabe determinar, apenas me esforçar para que assim seja. E que seja também uma resposta que, antes de tudo, esteja conectada não apenas com meu modo de pensar as coisas, mas de vivê-las (minha experiência). Não vejo nesse empreendimento a que Bell e tantos outros têm se dedicado, de “provar” no balcão das liquidações pós-modernas que Deus é amor e salvar a reputação de sua existência, algo salutar. Não se prova, no sentido cabal de comprovação, o amor de Deus. Ou se experimenta, ou não. Do contrário, estarei bastante sujeito a cair no que Lewis chama de a “mais sutil de todas as armadilhas”: a de falar tanto ou defender tanto algo, e acabar perdendo de vista sua dimensão encarnacional ou prática.
Em suas próprias palavras, com as quais termino:
Houve homens que se interessaram de tal forma em provar a existência de Deus que acabaram desinteressando-se por completo do próprio Deus... como se o bom Deus nada tivesse a fazer além de existir! Houve alguns tão ocupados em tornar o Cristianismo conhecido que jamais pensaram em Cristo. Nossa! E é possível ver isso nas mínimas coisas. Já conheceu um amante de livros que, a despeito de todas as suas primeiras edições e obras autografadas, tivesse perdido a capacidade de lê-los? Ou, quem sabe, um organizador de projetos de caridade que perdesse todo o amor pelos pobres? (13).
Notas 
(1) BELL, Rob. O amor vence. Rio de Janeiro: Sextante, 2012, p. 08. 
(2) “Quem falou em céu e inferno”. Entrevista de Rob Bell a André Petry. Veja, Edição 2297, de 28 de novembro de 2012, p. 19, 22. 
(3) BELL, op. cit.: 09. 
(4) LEWIS, C. S. O grande abismo. São Paulo: Editora Vida, 2006, p. 17. 
(5) Ibid.: 17 
(6) Ibid.: 84. 
(7) Ver: BELL, Rob. Love wins. New York: HarperOne, 2011, p. 170. 
(8) “Quem falou em céu e inferno”. Entrevista de Rob Bell a André Petry. Veja, Edição 2297, de 28 de novembro de 2012, p. 22. 
(9) MANNING, Brennan. A implacável ternura de Jesus. São Paulo: Naós, 2010, p. 126. 
(10) BELL, Rob. Velvet Elvis. Repainting the Christian Faith. Grand. Rapids: Zondervan, 2005, p. 166. 
(11) BELL, 2011: 79. Minha tradução. 
(12) “Quem falou em céu e inferno”. Entrevista de Rob Bell a André Petry. Veja, Edição 2297, de 28 de novembro de 2012, p. 23. 
(13) LEWIS, op. cit.: 87.