segunda-feira, 23 de março de 2015

Por uma fé que pode fraquejar

Week heart

Quando o meu coração estava amargurado e no íntimo eu sentia inveja, agi como insensato e ignorante; minha atitude para contigo era a de um animal irracional. Contudo, sempre estou contigo; tomas a minha mão direita e me susténs. Tu me diriges com o teu conselho, e depois me receberás com honras. A quem tenho nos céus senão a ti? E na terra, nada mais desejo além de estar junto a ti. O meu corpo e o meu coração poderão fraquejar, mas Deus é a força do meu coração e a minha herança para sempre (Sl 73.21-26).

Uma das coisas que mais me preocupa quando o assunto é “fé” é o pouco espaço que nossas definições e percepções mais ou menos comuns deixam para o lado incerto e fraco da fé. Sobretudo porque, ainda que o conceito de fé tenha um aspecto doutrinário ou quase definitivo – e se não respeitar aquilo, não será considerado fé – o fato fundamental é que a fé não existe fora da pessoa. E como pessoas, adotamos, criamos, defendemos e obedecemos convicções, mas também somos abalados em relação a elas, o que denota uma dupla condição de fragilidade: (a) primeiro a condição da vida humana; (b) a condição de nossas certezas, que muitas vezes se abalam na medida em que invariavelmente nosso mundo se abala. A questão no caso é se saberemos ou não a lidar com a ambiguidade óbvia que nos contitui como humanos e, como tal, também atinge nossa própria fé?

Os salmos são cheios dessas ambiguidades, como este que lemos acima. O salmista demonstra ser alguém que andava com Deus, buscando e apreciando seus conselhos; mas no meio dessa trajetória comete alguns deslizes próprios de quem, mesmo sendo de fé, é gente, é humano; e o que aproximava este homem de Deus não era apenas o fato de que ele foi um “escolhido” de Deus, mas de que também, a despeito de suas dúvidas, inquietações, medos e outros sentimentos demasiadamente humanos, ele prosseguia escolhendo Deus. E escolher Deus implica em admitir sua dependência, é ser honesto com Ele, é saber que Ele “é” e continua “sendo”, a despeito de nós não sermos, e que ele permanece, apesar de nossos desvios e fraquezas.

É disso que trata este texto. Nele, o autor admite ter sido tomado pela inveja e amargura em seu coração em relação aos arrogantes e ímpios, mas prósperos; pessoas passam por cima das outras e só pensam em si mesmas, mas, a despeito disso, parecem ser bem-sucedidas em tudo: não adoecem, estão sempre fortes, oprimem os outros, agem como quem pode se apossar da terra, como se esta fosse só delas; além disso, ainda zombam de Deus, não se preocupam com nada e só vão aumentando sua riqueza. O salmista então é tomado pela insensatez e conclui que toda a sua busca por se manter reto e puro, em agir corretamente e temer a Deus, provava-se inútil, pois o fez penar ainda mais enquanto esses pérfidos aí gozam de todas as benesses que ele, pelo bem realizado, deveria estar gozando. E quem não se sentiria injustiçado? Quem não se veria tentado e duvidar do caminho da retidão, isto é, dos caminhos de Deus? Quem numa situação dessas não passaria pelo vale da insensatez e da amargura como passou o salmista por um momento, que não sabemos quanto tempo durou? É isto que chamo de “mundo abalado”; perdemos nosso chão, e vemos como nossas convicções podem ser solapadas e se perder nestas horas.

Mas o salmista não era insensato ao todo; simplesmente porque, diante de Deus, ele admitiu fraquejar, reconheceu seus minutos de bobeira e insensatez; mas mesmo neles, percebeu que não saiu do lado de Deus. Para onde poderia correr? Qual seria, afinal, o sentido de tudo isso? Ele decidiu que melhor é continuar andando com Deus. O sentido de sua fé era maior que a própria fé, pelos modos pelos quais ela se constrói, pelos invólucros frágeis nos quais ela, muitas vezes, se sustenta. Permanecer na fé, contra todos os questionamentos que eventualmente fazemos aos seus conteúdos, como diz Tillich, é um ato de coragem, e mostra que a fé é bem maior que os invólucros que inventamos para contê-la; em suma, é ser possuído por “aquilo que nos toca incondicionalmente”. Envolve a pessoa inteira. Não somente a razão, tampouco só as emoções. Não apenas convive com a dúvida existencial, mas se alimenta dela. Sua única certeza é a do incondicional. Seu principal mote é o impulso de viver, a despeito da própria morte e da incerteza.

No fim das contas, o coração humano é ou pode ser enganoso, como defendeu Jeremias; traiçoeiro em seus direcionamentos, compulsivo em seus desejos. Por ele passam torrentes de pensamento, impulso e volição que podem nos afastar tanto do centro de quem somos, como de nossa própria fé. Por isso, como diz o salmista, ele pode, sim, fraquejar. Mas eu acrescento: é bom que ele fraqueje, pois, fraquejando, melhor reconhece suas lacunas, vulnerabilidades, defeitos; mais bem sabe de sua insuficiência. E quando sabemos disso, fica talvez mais fácil entender que somos apenas gente, parte de um todo, e que a força do nosso coração vem não dele mesmo, mas de quem o fez e faz pulsar: Deus, o único que possui a chave dos corações humanos e que, mesmo em meio a toda corrupção que lhes é própria, escolhe deliberadamente por amá-los.

Jonathan