segunda-feira, 28 de abril de 2014

Sobre o ato religioso de “passar o bastão”

Auto-coroação - napoleon.org

Recentemente fomos “surpreendidos” por um ato simbólico de um movimento conhecido no cenário gospel brasileiro, em que um grupo de líderes mais experientes foi convidado a fazer uma “transferência de gerações” (não me perguntem o que é isso), em que se passava uma unção ou missão especial para uma geração intermediária, representada por dois irmãos, que por sua vez fizeram a mesma transferência para uma geração mais jovem, numa algazarra típica desses encontros. Então a dirigente virou-se para a plateia dizendo que todos ali faziam parte daquilo, que deveriam sentir-se representados pelos que ocupavam o proscênio. A nova geração, assim, tem a responsabilidade de assumir a tarefa outorgada simbolicamente pela anterior. O interessante é que nenhuma reflexão mais profunda sobre a natureza desta “missão”, para além daquele frenesi, foi endereçada, e imagino que aqueles jovens tenham saído cheios de adrenalina gospel, mas com bem pouca noção do que fazer com aquilo na dispersão da vida cotidiana.

Trago este caso não para repetir críticas clichês e batidas aos envolvidos em si, mas porque isso me faz refletir sobre a natureza dinástica do que chamamos de “ministérios” na igreja contemporânea, à medida que colecionamos cerimonialismos honrosos, como o de jubilar líderes que “passam o bastão” para gerações de líderes vindouros, encarregados de dar continuidade ao que a geração anterior construiu. E fico pensando quando vejo essas coisas se não nos damos conta do quão esquisito (para dizer o mínimo) isso é do ponto de vista do evangelho e do reino de Deus. Jesus não passou cetro nenhum, mas nos chamou a carregar a cruz e, no fim, indagou-nos se seríamos capazes de beber do mesmo cálice que ele beberia, mesmo pedindo ao Pai que o afastasse. Assim, na medida em que o bastão está em evidência, o cálice se afasta.

Tenho a impressão de que estamos transformando um reino feito de amigos que cooperam junto com o rei, por meio de seu Espírito, por sua implantação, em monarquias religiosas privativas em que o que impera é a lógica da sucessão ao trono, típica luta por poder e não é de hoje. O cetro ou o bastão figuram, há milênios, como símbolos de poder e dominação em contextos monárquicos. O problema é que na simples passagem de bastão não se pode transferir integridade, bondade ou competência, apenas um “direito outorgado”. E sabe o que é pior? Não é ver isso nos movimentos apostólicos contemporâneos – isso já se espera deles –, mas é perceber que isso também acontece em movimentos que carregam a bandeira do reino e que, paradoxalmente, neste preciso momento devem estar perplexos em relação a casos como o aludido no começo. Quero dizer, de modo um pouco mais discreto ou tácito, repetem esse ato de passar o bastão com aqueles por eles considerados como representantes dignos da nova geração responsável por tocar o movimento.

Isso tudo é um contrassenso por pelo menos três razões: (1) Gerações mais velhas precisam tomar sobre si o encargo de discipular novas gerações, e não garantir e forjar uma entrega de bastão – como se aqueles devessem continuar do mesmo ponto em que estes saíram de cena; (2) Movimentos, diferentemente do que já conhecemos das instituições, não deveriam, através de alguns de seus participantes ou líderes, poder definir em uma agenda quem são ou não as pessoas que irão liderar ou mesmo dar continuidade ao “trabalho deles” – até porque o trabalho não é só deles, e segundo porque tem muita gente fazendo muita coisa boa fora dos holofotes sem se preocupar com suceder ou não suceder ninguém, mas que fazem o movimento girar; (3) Cada geração precisa ser artífice e sujeito de sua própria história, tendo a chance de decidir o que pode ser mantido e o que deve ser contraposto no trabalho de gerações anteriores, sem ter que prestar contas e nem “pedir a benção” a ninguém para poder respirar novos ares. Afinal, somos todos cooperadores do evangelho, como bem disse Paulo, e se alguém pensa ser algo mais que isso, já perdeu a noção do que é servir no reino. Como bem colocou o companheiro Lyndon de Araújo Santos, está na hora de dizer adeus à era dos avatares e de instaurar um novo processo que seja naturalmente abortivo de qualquer “avatarização” de quem quer que seja. Afinal, fazemos parte de um reino do “lava-pés”, onde existe apenas um rei, que, por sinal, fez-se servo de todos.

Jonathan

[Imagem: “A auto-coroação de Napoleão”, por David].