segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Sobre a verdade em um sentido (cristão) pós-moderno (final)

Sobre o testemunho da verdade em um mundo pós-moderno

Tenho me focado até aqui em travar uma discussão teórica, em primeiro plano, sobre a questão da verdade em uma perspectiva (cristã) pós-moderna, sem me preocupar muito com as implicações disso no que diz respeito às posturas ético-relacionais do cristão chamado a dar “testemunho da verdade”, conforme o exemplo de seu mestre. Parte dessas implicações, creio, tentei abordar em meu outro artigo, “Verdade e liberdade em um reino de vida”. Aqui seguirei um caminho parecido, mas diferente, Não a partir da ótica de “como” se evangeliza, mas “em que base”. E penso (não somente eu, é claro) que esta base – a despeito de quem, como ou onde – é relacional, a partir do paradigma da presença.

No anseio por defender nossas convicções cristãs em meio a um mundo onde elas são cada vez menos consideradas como relevantes para a vida em geral, tendemos a nos focar muito em questões – a questão do aborto, a questão da corrupção, a questão do homossexualismo, a questão da verdade – e com isso perdemos de vista os relacionamentos com as pessoas em torno das quais se levantam tais questões. Em outras palavras, as questões tendem a ser mais importantes que as pessoas. E que implicações isto tem? Penso que elas são mais ou menos óbvias. No que diz respeito à verdade, por exemplo, reitero: se a verdade passa a ser tratada mais como questão e objeto de defesa – a “minha verdade” contra a “verdade dos outros” – a tendência é que se perca de vista o princípio (no caso cristão, relacional, de amor) que serve como combustível para que essa verdade possa ser reconhecida como verdade-vida e não verdade-morte. A defesa da questão da tolerância pode, da mesma forma, se tornar mais importante que o ser tolerante, inclusive com quem não é. Aliás, é uma contradição em termos, o defender a tolerância e não tolerar que não tolera. E o mesmo poderia ser dito da justiça, ética, solidariedade, compaixão, e assim por diante.

Quando a defesa da retidão e do “caminho certo” torna-se mais importante que a conexão com as pessoas, podemos estar diante de um cabal exemplo de como estar no caminho torto e equivocado, mais perto do farisaísmo que de Jesus.

Penso que dar testemunho da verdade em um mundo pós-moderno é partir mais do paradigma da presença que do discurso. Ainda que não prescindamos totalmente dos discursos e admitamos que eles ainda possam ser válidos, entendo que a presença e o modo como nos fazemos presentes “entre os outros” no mundo é o que (ainda) pode fazer diferença, e até dar mais crédito ao que falamos. A vida, nesse sentido, não apenas fala mais que a própria fala, mas a legitima. Nossa presença não é equivalente a presença de Cristo – uma vez que ele já se faz presente, com ou sem a gente – mas é um reflexo possível de sua presença: solidária, amorosa, não-excludente, dialogal, transformadora. Não necessariamente através de grandes gestos, mas de pequenos gestos feitos no dia a dia, quando ninguém está vendo, quando não há jornal que noticie e nem público que aplauda. Pequenos gestos são, assim, “sinais de esperança”, como disse Hans de Wit, que ainda defende a idéia de que “assim como o mal começa muitas vezes com coisas pequenas – a criação da imagem do inimigo, a pressão social, a proibição da dúvida – também o bem muitas vezes se realiza por meio de pequenos gestos de amor” (De Wit, 2011, p. 302 – grifo meu).

Dessa forma, ao invés da insígnia de “embaixadores do evangelho”, prefiro a insígnia paulina de que somos “colaboradores com o evangelho”. O colaborador co-labora e não labora em lugar de. Nosso trabalho é inútil e pretensioso quando achamos que o Espírito está do nosso lado, e não que nós é que, pela graça, no colocamos ao lado dele, seguindo suas pegadas no mundo, “ouvindo duas vezes”, usando a brilhante imagem de John Stott em “Ouça o Espírito, ouça o mundo” (2003).

Outra imagem interessante de Paulo que gostaria de evocar é a de um “tesouro em vasos de barro” (2Co 4.7). Ela designa o contraste entre nossa humanidade, que como o vaso vem do pó, é frágil, vulnerável e sujeita a quebra, com o eterno poder do evangelho e a divina companhia, que não podem ser contidos, mas que escolhem precisamente o que há de mais fraco e incerto para se “abrigar”. A pergunta é: por quê? Paulo dá a resposta no mesmo verso: “Para mostrar que este poder que a tudo excede provém de Deus, e não de nós”. Curioso, não? Temos um “poder”, mas que não é precisamente “nosso”, nem nos faz maiores que ninguém, antes ressalta nossa fragilidade e não imunidade às contingências e sofrimentos de qualquer ser humano. Mesmo possuindo, ou melhor, sendo possuídos pelo tesouro, nós nunca deixaremos de ser simples “vasos”...

O vaso não existe para ser transformado em cofre-forte e blindado, mas existe para morrer: “Pois nós, que estamos vivos, somos sempre entregues à morte por amor a Jesus, para que a sua vida também se manifeste em nosso corpo mortal. De modo que em nós atua a morte; mas em vocês, a vida” (2Co 4.10). O vaso não existe para “proteger” a integridade do tesouro (ela não pode ser ferida), mas é o tesouro que é oferecido para restaurar a integridade do vaso. Não somos, portanto, caçadores (fomos achado por ele e nele) nem detentores do tesouro (somos detido-libertos nele); este tesouro não precisa de sentinelas, cofres de segurança ou guardiões, mas de simples vasos que não querem resplandecer, mas que anseiam para que, pela graça, o tesouro neles resplandeça.

Paulo, portanto, nos convida a rever nossa teologia do poder e da fraqueza, e a reservar um lugar em nossa vida e missão como igreja ao acolhimento e aceitação da fraqueza, em louvor à fragilidade. Somente quando assumirmos este lugar de vulnerabilidade em nossa relação com o mundo e nos variados contextos em que o Senhor no coloca, o poder de Deus poderá se aperfeiçoar em nós para alcançar as pessoas (tantas vezes perdidas) no caminho, com verdade e com vida.

Jonathan

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Sobre a verdade em um sentido (cristão) pós-moderno (3)

Verdade, construção e relativismo

Quando Richard Rorty, lendo Nietzsche, parte do ponto de que a verdade é construída, isto é, de que é uma produção que se realiza no mundo da fala e da linguagem, ou de que é “uma propriedade de entidades lingüísticas, de frases” (2007, p. 31) e não pode simplesmente ser “achada” lá fora, a qual verdade ele está se referindo? Ora, penso que à verdade “conhecida” por meio de nossas proposições ou frases. Em outras palavras, para verificar a verdade em termos cognitivos e objetivos, eu preciso dizer: “Isto ou aquilo é verdade”. E quando digo isto, ela já não mais pode ser “a verdade”, e sim “verdade para mim” ou “para nós” (pensando em um coletivo ou rebanho). E verdade para mim ou nós é sempre parcial.

Isto implica então que, quando afirmamos que “Cristo é a verdade”, ele deixa de ser “a verdade”? De modo nenhum (não pelo menos do ponto de vista de quem crê que é assim). De novo trazendo Ellul ao diálogo, “a verdade é sempre verdade apesar e contra tudo... firme, estável, flexível, indiscutível”. Isto porque a verdade “é” (no caso de Cristo, uma pessoa), acima de nossas cogitações, estimativas e apreensões. E, mudando um pouco a frase de Wittgenstein, para tudo aquilo que é a linguagem cala. Aquilo que “é” não pode ser declarado sem que, no nível da fala, se torne apenas um fragmento – eis o problema em reduzi-lo em conceitos ou definições. Podemos continuar lançando mão de critérios? Sim! Mas entendamos que eles são “nossos critérios”, que podem ser inspirados na e pela verdade, mas que não podem ser confundidos com a própria verdade. O que “é” (a verdade) pode até preceder, mas não ser igualado àquilo que muda (nossas visões, conceitos e pressupostos). Fico repetindo isto com o receio de que ainda não esteja suficientemente claro.

Prossigo defendendo (é claro, não somente e nem primeiramente eu), portanto, que nossas proposições teológicas ou filosóficas devem ser mais modestas. Posso, dessa forma, continuar propondo, conhecendo, me aprofundando e defendendo questões sem pretensões universalizantes para estas questões. Discordo tecnicamente da afirmação de Charles Hodge (2003, p. 329) de que “a verdade é aquilo em que a realidade corresponde exatamente ao que é manifesto”. Ora, se o que o (discurso) humano “manifesta”, manifesta linguisticamente, então a verdade (em si) não pode corresponder exatamente ao manifesto, como tenho afirmado. De novo: as correspondências humanas com a verdade são sempre parciais, fragmentárias e, sim, relativas!

E isto não implica necessariamente no endosso de um relativismo do tipo “vale-tudo”. Primeiro, porque o relativismo tende a ser auto-contraditório. Acaba fazendo na prática precisamente aquilo que rejeita no discurso. Por exemplo: pessoas relativistas costumam ser consideradas de “mente aberta”; ao mesmo tempo, podem ser “mente fechada” quando afirmam quase dogmaticamente que não há verdade absoluta. Partem do princípio (falacioso) de que descrer no absoluto é o mesmo que afirmar que ele não existe. Só que, como ressalta Rorty (2007, p. 33), “dizer que abandonamos a idéia de verdade como algo que está aí, à espera de ser descoberto, não é dizer que descobrimos que não existe verdade alguma”. Afinal, quem seria capaz de sustentar, sem sombra de dúvidas, tal descoberta?

Outra falácia relativista pode ser esta de dizer que verdade é o que eu considero ser verdade: “pode ser falso para você, mas para mim é verdade”. Onde está a falácia aqui? Segundo Stephen Law (2009, p. 199), comete-se esta falácia quando não se consegue demonstrar que a verdade em questão, que se afirma ser relativa, é mesmo relativa. Do contrário, como diz Law, “eu poderia tornar qualquer afirmação verdadeira crendo nela: ‘Posso voar’, por exemplo. Obviamente a maioria das verdades não é relativa desse modo”. De que modo então elas são relativas? Na medida em que se assume que não as possuímos em si, a não ser na forma de descrições ou representações, que são relativas na medida em que são fragmentárias ou que não abarcam o todo.

Afirmar a relatividade de nossos pressupostos não é o mesmo que endossar o relativismo. Neste caso, embora não haja um critério universal de julgamento (para dizer o que é válido e ou que não é), isto também não significa que seja plausível afirmar qualquer coisa que se queira. É preciso afirmar e sustentar (não confunda com “comprovar”) a afirmação dentro de certos limites e deixar que os pares ou a comunidade julguem ser razoável ou não. A contingência não nos impede de defender nossas convicções, apenas nos alerta quanto a seus limites, tanto na abrangência quanto no respeito às convicções do outro. Endossando o que disse Isaiah Berlin (apud. Rorty, 2007, p. 92): “Reconhecer a validade relativa das próprias convicções, mas ainda assim defendê-las resolutamente, é o que distingue o homem civilizado do bárbaro”.

E, acrescento, não deveria ser esta também uma distinção do cristão (pós-moderno ou não)?

(Continua...)

Jonathan

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Sobre verdade em um sentido (cristão) pós-moderno (2)

Os próximos dois posts são continuações do texto anterior, em resposta aos questionamentos de meu amigo Robinson Souza (vide comentários ao post anterior). Farei isso tematicamente. Eis o primeiro tema...

Verdade na filosofia e na teologia

Quando falo sobre “verdade” em um sentido (cristão) pós-moderno implica em uma tentativa de dialogar com os discursos, filosóficos sobretudo, ditos pós-modernos sobre o assunto. Nesse sentido, não faço diferenciação aqui entre uma verdade “teológica” e uma verdade “filosófica”. Isto, pois a questão da verdade permanece sendo, no fundo, uma questão filosófica, ainda que tenha implicações teológicas profundas e envolva diretamente a profissão de fé e o testemunho cristãos – bem como o de outras religiões e crenças.

Se tomarmos, por exemplo, a discussão entre Pilatos e Jesus retratada por João (18.33-38) – aliás, o único que investe neste encontro, e não por acaso, na forma de diálogo retomando temas transversais de seu evangelho (verbo, testemunho, reino, verdade) – a teologia e a filosofia estão em intercâmbio. O tema (teológico) do reino surge de uma pergunta objetiva de Pilatos: “Você é o rei dos judeus?”. No que Jesus aprofunda a questão, dizendo que seu reino não é deste mundo, pois se fosse seus servos lutariam para que os judeus não o prendessem. Assim, Pilatos replica: “Então você é rei?”. E Jesus se esquiva outra vez de uma resposta objetiva, alegando que foi Pilatos quem disse isso, mas reforçando o sentido de sua missão (envio – “para isso eu vim”), que é a de dar testemunho da verdade. O tema da verdade, portanto, surge na fala de Jesus ligado ao testemunho de vida, de modo que aqueles que “são” da verdade, segundo ele, o ouvem.

O diálogo, contudo, se encerra com a pergunta (a que não quer calar) filosófica de Pilatos: “O que é a verdade?”. E depois, silêncio... Silêncio que diz sem dizer, que afirma sem afirmar, que significa. E dentre muitas coisas que ele pode estar significando, é que a verdade não pode ser definida, expressa em linguagem; quando isso acontece, ela deixa de ser “a verdade”. Além disso, uma resposta eliminaria qualquer sentido para a “busca”.

E esse é o problema de tantos que tentam responder objetivamente à pergunta. Diante dela, Jacques Ellul, em seu livro A palavra humilhada (1984, p. 29), disse: “Certamente não responderei, dando-lhe um conteúdo, porque seria contestado, obrigar-me-ia a fazer um imenso desvio, excederia às minhas forças”. É nisso, portanto, que se transformam tentativas de conter, definir: em imensos desvios, desvios tremendamente contestáveis. Por isso, Ellul completa dizendo que não podemos confundir a “questão da verdade” com a própria verdade:
A questão da Verdade não é a verdade. Não apelo para a metafísica. Não é a verdade porque não é o questionamento que o homem faz a si mesmo sobre sua vida. É ainda um jogo intelectual e uma maneira de estar fora da verdade. Portanto, que depois de tudo, possa ele dar uma resposta, pouco importa; que a resposta venha dele ou seja objetivada, enquanto filosofia ou revelação, também pouco importa. Mas quando o homem questiona sobre sua vida (consciente ou inconscientemente), então fica formulada a questão da verdade, e quando o homem afirma tê-la resolvido, mente (Ellul, 1984, p. 30).
Concordo com Ellul. A meu ver também não importa, se é filosofia ou se é a matéria da revelação (teologia), pois ambas acabam caindo no mesmo beco sem saída quando tentam transformar a questão (antiga e legítima) da verdade na própria verdade, afirmando tê-la resolvido. Isto é o que Nietzsche chamou de “igualação do não igual”; reduzir a verdade a conceitos ou proposições é igualar aquilo que não pode ser igualado. Assim, não vejo como posso estar “misturando as coisas”, uma vez que, a meu ver, tratar da questão da verdade é ter de pensar tanto teológica quanto filosoficamente, caso se queira problematizar a questão, e não apenas afirmar a correspondência entre palavras e coisas, dizendo “isto é verdade” e pronto, ou se resignando ao modo (dogmático) de que a minha verdade é “a verdade”, já a sua é menos verdade.

Ser cristão significa viver no limear entre o anseio pela dádiva de ser cada vez mais possuído pela verdade na vida e a boa-nova libertadora de não poder apreendê-la ou possuí-la no discurso.

(Continua...)

Jonathan

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Sobre verdade em um sentido (cristão) pós-moderno

Afirmar que nosso conhecimento não é capaz de “dar conta”, de deter a verdade ou alcançar a verdade objetiva, não significa dizer que “não existe mais uma verdade absoluta”, e sim que não pode haver uma visão (humana) absoluta da verdade. Alguns dirão que sim, ela existe, outros dirão que não, porém, não está na boca do pós-moderno (se está, ele não pode ser assim considerado) o determinar se há ou não há uma verdade “lá fora”.

Alguém que se autodenomina pós-moderno pode, por exemplo, não crer na existência de Deus, porém não poderá dizer (porque é incapaz de provar, e nem estaria preocupado em “provar” coisa alguma) que Deus não existe (isso é coisa dos modernos ateus). Se há uma virtude nos pós-modernos, pelo menos assim vejo, é o não julgar ou achincalhar a experiência e crenças alheias em detrimento das suas. Acho que isso é algo que podemos aprender com eles (ou alguns deles), sem deixar de crer e viver o Cristo-verdade, nem tentar impor isto aos outros como alguns de nossos irmãos ainda o fazem, consciente ou inconscientemente.

Vivemos, penso eu, em uma tensão: a de afirmar com a vida e com o discurso que “Cristo é a verdade” e, ao mesmo tempo, não sermos capazes de conter essa verdade em nossas declarações. Isto significa que, uma coisa é a Verdade (Cristo), outra é o que falamos sobre ela e como a entendemos. Tentar igualar as duas é render-se a uma das mais comuns tentações do saber, que Friedrich Nietzsche chamou de “igualação do não igual” ou identificação do não idêntico. Significa assassinar a própria verdade – e aí sou obrigado a concordar com Nietzsche: muitas vezes, “nós matamos Deus”.

Assumir, por outro lado, as limitações de nossa “fala sobre a verdade” não significa abrir mão dela ou dizer que ela não existe, mas implica em assumir, como Paulo o fez, que “em parte conhecemos e em parte profetizamos”. E é uma benção que sejamos, pensemos e saibamos assim, parcialmente. Precisamos, sem medo, mas com “temor e tremor”, assumir a coragem de ser como somos e de ser “como uma parte”, sobre a qual falou Paul Tillich em seu livro “A coragem de ser”. Para tanto, porém, é necessário abrir mão de algumas coisas, a começar pelo “orgulho de ser”, de saber, de possuir a verdade. Não contenho (e nem poderia possuir) a verdade. Quero, pela graça de Deus, estar contido nela...

Jonathan