sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Vivendo na encruzilhada

Young Cross Roads

É inegável que William Young, escritor canadense, há pouco tempo entrou para o hall de notáveis autores da literatura contemporânea. De mero desconhecido, Young saltou para o status de um dos autores mais lidos nos últimos tempos, com o lançamento de seu primeiro livro, e também primeiro best-seller, A cabana (Sextante, 2008). Neste primeiro livro ele já demonstrou a habilidade rara de fundir em uma mesma história uma narrativa cativante e uma reflexão (existencial e teológica) provocativa, inovadora. O “problema” do livro – para alguns, é claro – é o mesmo que se pode encontrar em inovadores por natureza: eles incomodam muita gente, especialmente aos guardiões da ortodoxia de plantão. 

E começo então a falar sobre esse mais recente lançamento de Young, A travessia (2012) pontuando que ele tem algumas semelhanças com A Cabana. Em primeiro lugar, porque os temas teológicos de fundo são quase os mesmos: o problema do sofrimento humano, religião, liberdade e graça, comunidade trinitária, etc. Em segundo lugar, porque a dinâmica em que esses temas aparecem na nova trama também é bastante parecida, em que o protagonista, um homem beirando a meia-idade, vivenciando uma situação extrema, é conduzido a um encontro com a Trindade, que, assim como na obra anterior, assume formas humanas típicas: o Espírito Santo é uma mulher idosa da tribo Lakota, carinhosamente apelidada de “Vovó”; Jesus aparece como um homem de olhos castanhos e vestimentas rústicas, e Papai tem uma aparição rápida na figura de uma garotinha de vestido azul e verde, embora o autor tenha dito na narrativa que, através de Jesus e de Vovó, “Papai nunca deixou de estar presente” (p. 235). Impossível esquecer-se de outro ilustre personagem, chamado de “Jack da Irlanda”. Logo fica claro, pela influência que teve na vida do autor e na construção de sua obra, que se trata de uma homenagem a C. S. Lewis (que era conhecido por seus amigos como “Jack”). Por fim, pode-se dizer que a mesma tenacidade da união entre narrativa e reflexão, tão habituais no estilo do autor em A Cabana, continuam presentes, embora menos intensamente, em A travessia – título, aliás, que, a meu ver, não traduz a ideia do original em inglês, Cross Roads, que significa encruzilhada, cruzamento ou trincheira. Esse título, ademais, como comentou um amigo meu, dá uma cara meio “espírita” ao livro.

Agora aponto alguns aspectos singulares deste livro. Sua história é revestida de uma complexidade ainda maior que a de A Cabana, com muitos outros personagens coadjuvantes, vários cenários diferentes, e o elemento “místico”, por assim dizer, é ainda mais forte que o que vimos no livro anterior, de arrepiar os cabelos dos mais conservadores, acostumados a se ligar mais em detalhes legais e possíveis em termos de realidade, e menos no princípio que rege a história, que neste caso, é preciso lembrar, trata-se de uma ficção, recheada de aspectos arrolados para mexer com a imaginação e despertar o interesse no leitor – bem, nada de mal nisso, certo? Como diz a epígrafe do capítulo, atribuída a C. S. Lewis. “Um dia você será velho o bastante para voltar a ler contos de fadas” (p. 31).

Então, é preciso adiantar que, assim como (e até mais que A Cabana), a obra em questão deve ser lida com a fluidez livre de uma estória, como tal altamente metafórica e sem compromisso de ser precisa na forma como insere os saberes teológicos em questão. Essa é uma ressalva necessária contra possíveis buscas de “erros e heresias” no livro, desqualificando-o como “obra teológica”, como fizeram alguns em relação ao livro anterior deste autor, até porque não se trata de uma “obra teológica”, pelo menos não no sentido estrito e hermético do termo, mas pode ser classificada dentro de um gênero mais amplo, que une características típicas de um romance, mas com inserções de questões teológicas explícitas. Naturalmente, o autor teve a intenção de apresentar uma determinada visão sobre Deus, em sua relação com a humanidade, em oposição a outra, mais “religiosa” talvez. Aliás, como havia feito em seu romance anterior, Young também reconhece nesta obra que imagens de Deus não são o próprio Deus; podem ser relances inacabados apenas, como Vovó afirma a Tony, o personagem central, já no fim da história: “Imagens... nunca foram capazes de definir Deus, mas como desejamos ser conhecidos, cada vislumbre, por menor que seja, é uma pequena janela para uma das facetas de nossa natureza” (p. 235). Mas um romance que reúne aspectos teológicos não equivale a um livro de teologia sistemática, por exemplo. Dessa forma, este livro deve ser lido com espírito mais poético que cartesiano, embora seja perfeitamente possível discordar de uma ou outra visão teológica expressa pelo autor. 

A natureza imaginativa permite ao autor pensar em um caso de como alguém profundamente ferido pelas contingências da vida, e que, com isso, feriu a muitos outros também – no caso de Tony, os feridos foram seu irmão, ex-esposa, filha, sócios, funcionários e, assim, conseguiu afastar todo mundo para longe de si – pôde, num contexto de sofrimento extremo, como a morte, ter um reencontro tal com a vida e perceber que tudo o que antes chamava de liberdade, vida e sucesso, era na verdade sinônimo de escravidão, morte e fracasso. Essa vida ele reencontra através do terno amor de Jesus, o mesmo Jesus que sua mãe havia dito em sua infância que nunca deixaria de o abraçar. O personagem, em decorrência de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) que o deixou em coma profundo, encontra-se com Jesus, Vovó e Papai em uma realidade intermediária, cujo cenário é um retrato da própria vida dele até então, e é convidado a uma dupla experiência de cura e “conversão”: a cura de si mesmo através da cura e conversão a outra pessoa que ele, Tony, deveria escolher. A partir de então, começa a aventura de Anthony Spencer, em busca de respostas a perguntas como: Quem é Deus? Quem sou eu? A quem devo curar? Como posso curar alguém estando eu ainda, de múltiplas formas, ferido e à beira da morte? Se não posso apagar o passado, será é possível lidar de modo diferente com ele? Como superar a perda do filho de 5 anos, que desde então o transformara em uma pessoa fria, fechada e egoísta? 

Assim, através da história de Tony, Young demonstra que não é de um dia pro outro que o mal se instala silenciosamente no coração humano, o que torna também a conversão – esse gradativo arrancar, com a ajuda do Espírito, das ervas daninhas do jardim da existência, com o cuidado de não jogar fora com elas rosas e outros espécimes preciosos – é de fato um processo, que pode até ter marcos ou viradas bem definidas, mas que dura a vida inteira.

Uma passagem emblemática que ilustra bem essa ideia é quando Jesus, falando a Tony sobre esse gradativo projeto de (re)construção conjunta (Deus e a pessoa) de uma vida – que, para ele (Tony) estava “demorando demais” – explica que aquele terreno sobre o qual operava (que visualmente tinha a forma concreta de uma propriedade) era:

Um terreno vivo e não um canteiro de obras. Algo real, que respira, não uma construção que pode ser erguida à força. Sempre que você dá mais valor à técnica do que ao relacionamento e ao processo, sempre que tenta acelerar o desenvolvimento da consciência e forçar a compreensão e a maturidade a crescerem antes do tempo, é nisto – disse ele apontando para todos os lados da propriedade – que você se transforma (p. 56).

É óbvio que Jesus estava falando de Tony e não de qualquer pessoa em geral. Mas também é claro que esse princípio não se aplica ao personagem apenas, mas a qualquer pessoa que leia isso mais atentamente. Se nossa vida é um canteiro, certamente é um canteiro constantemente sinalizado com a placa “em obras”. E que a obra de Deus na vida de alguém pode ser lenta sob o olhar desse mesmo ou de outro alguém, mas há de ser completa até o dia de Cristo Jesus. Até lá, seremos seres inacabados e em processo. Gosto sempre de pensar que a música “In repair”, de John Mayer, é uma excelente descrição de como vejo minha própria vida, especialmente quando diz: “Eu estou em reparo, não estou pronto ainda, mas estou chegando lá”.[1]

Essa, portanto, é uma história sobre o poder de Deus de mudar uma vida – se e quando nesta vida há lugar para a morada de Deus – e, através dela, revolucionar e surpreender tantas outras com um amor incompreensível. Carrega a mensagem de que quando Deus (Pai, Filho e Espírito), passa a viver em nós, mais que religiosos, nos tornamos caminhantes da encruzilhada, sempre sendo colocados na posição de ter de escolher a vida, sendo impelidos pela graça, mas não obrigados. Costumo dizer que ser seguidor do Cristo é, de fato, estar numa posição de encruzilhada, em que nada mais é fácil, simples e nem confortável, e até por isso é tão fascinante.

Outra citação de C. S. Lewis, que aparece na última página do livro referindo-se, sobretudo, à vida cristã, é cabível aqui: “Se você buscar a verdade poderá encontrar conforto no fim. Se buscar conforto, não o alcançará, e tampouco a verdade, mas apenas bajulação e ilusões no começo e desespero no fim” (p. 239).

Finalizando, não recomendo a leitura desse livro para aqueles que, porventura, estejam ansiosos por encontrar o que já viram em A cabana. Não leia, porque, no final, provavelmente se sentirá frustrado(a). É um livro parecido em alguns aspectos, mas inteiramente diferente em outros. Recomendo sua leitura aos amantes de estórias, dramáticas, complexas, paradoxais, como a vida muitas vezes é, e que estejam dispostos a refletir e repensar sua visão sobre si, sobre Deus e sobre as pessoas que dão significado especial à sua, minha, nossa existência.

Jonathan


[*] Resenha de: YOUNG, William Paul. A travessia. São Paulo: Arqueiro, 2012, 240p.

[1] No original: “I’m in repair, I’m not together but I’m getting there”. John MAYER. Álbum: Continuum. Columbia Records, 2006, faixa 11.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Rob Bell, os evangélicos e suas representações de céu e inferno



Por Jonathan Menezes
Toda a dificuldade em entender o inferno é que a coisa a ser entendida é quase Nada.
– C. S. Lewis
Quem conhecia o pastor norte-americano Rob Bell apenas por suas obras anteriormente publicadas, nomeadamente: Repintando a Igreja (2005, Editora Vida, Velvet Elvis), Deus e sexo (2007, Editora Vida, Sex God), ou Jesus wants to save Christians (2008, Zondervan), ou até mesmo pela série Nooma, composta de vários vídeos em que Bell atua e ensina de modo criativo, certamente foi surpreendido pela repercussão e pelo teor para lá de polêmico de seu mais recente livro, O amor vence (2012, Editora Sextante, Love Wins).
A habilidade na comunicação clara, inteligente e atraente — quem lê Bell sente como se tivesse ouvindo ele falar ao vivo — continua como marca registrada nesta obra. Certamente Bell é um dos principais comunicadores desta e para esta geração. O problema, para muitos, está no conteúdo, que parte do questionamento de uma teologia de céu e inferno que há séculos vem sendo aceita e reproduzida como “Verdade” pelos cristãos, e uma versão especial dela, pelos cristãos evangélicos norte-americanos de vertente fundamentalista, a qual o autor mesmo assim descreve:
Fizeram-nos crer que um seleto grupo de cristãos viverá eternamente em um lugar de paz e alegria chamado céu, enquanto o resto da humanidade será deixado para sempre no tormento do inferno. Muita gente aprendeu que esta é uma verdade imutável da fé cristã e que rejeitá-la é o mesmo que rejeitar Jesus. Isso é um equívoco. Além do mais, essa ideia não ajuda a propagação da mensagem de amor, alegria, perdão e paz que o Senhor nos trouxe e que precisamos desesperadamente ouvir (1).
Desde que o livro foi publicado nos Estados Unidos, há pouco mais de 1 ano, as repercussões que aconteciam lá reverberavam aqui no Brasil com um teor negativo maiormente, em que Bell recebia acusações que o colocavam no posto de “herege da vez”. A mais comum foi a de que, com este livro, Bell se autoiniciou em uma nova fase “universalista” — isto é, segundo o senso comum, como quem crê que a salvação em Cristo é universal e que, a despeito do que na terra aconteça, no final Deus irá salvar a todos, porque no fim, como diz o bordão do livro, “o amor vence”. Com a tradução do livro para o português e sua publicação no Brasil neste ano de 2012 (pela editora Sextante), o assunto voltou à tona entre os brasileiros. Mais ainda agora, a partir da entrevista concedida por Bell à André Petry, para a Revista Veja (Edição 2297, de 28 de novembro de 2012). Gostaria de concentrar meus comentários na entrevista, fazendo breves correlações com o livro.
Em primeiro lugar, uma das ênfases de Bell na entrevista, que bem resume a principal tese defendida no livro, é a de que céu e inferno são dimensões de nossa existência aqui e agora, que “se estendem para a dimensão para a qual vamos ao morrer...”, e que “as pessoas mais interessadas em discutir o inferno depois da morte são menos interessadas em discutir o inferno sobre a terra. E vice-versa” (2). Não poderia concordar mais e não vejo nada de exagerado nestas afirmaçôes. Como ele mesmo diz, basta olhar ao redor, em nosso país e no mundo, para perceber que muitas pessoas, de fato, têm enfrentado infernos de infinitas naturezas neste momento. De igual modo, é possível dizer que o céu — ou a vida eterna — é algo que se pode experimentar, pela fé, de modo parcial já-aqui no tempo. Contudo, este ponto de seu argumento — de que céu e inferno não são “lugares” propriamente, mas estados existenciais —, Bell não foi o primeiro a apresentar, e nem eu saberia precisar com certeza se há um único “pai” para esta ideia. O próprio Bell reconhece isso quando diz: “Eu não criei nenhuma linha de pensamento inovadora que vá de encontro a tudo o que já foi dito inúmeras vezes. Esta é a beleza da fé cristã, histórica e tradicional: ela é um rio largo e profundo que vem correndo há milhares de anos, transmitindo uma incrível variedade de vozes, pontos de vista e experiências” (3).
Deixe-me citar um exemplo disso. Num livro de ficção (não menos teológico por isso) escrito em 1946, chamado The great divorce [O grande abismo], C. S. Lewis fez afirmações semelhantes e, em minha avaliação, de maneira um pouco mais criteriosa que Bell em seu O amor vence. A assunção básica de Lewis, logo no prefácio, é a de que será verdade, para aqueles que completarem a jornada (ou a “carreira da fé”, na linguagem paulina), que “o bem é tudo e que o céu está em toda parte”, embora disto não implique, segundo ele, na “falsa e desastrosa ideia de que tudo é bom e de que qualquer lugar é o céu” (4). Também afirmou acreditar que, se a Terra fosse escolhida em lugar do Céu, acabaria tendo sido, todo o tempo, “apenas uma região no inferno”, mas se estivesse subordinada ao Céu, teria sido, desde sempre, “uma parte do próprio Céu” (5). Decorre disso que, para Lewis, o Céu é algo que permeia a realidade de tudo aquilo que é “bom” e “verdadeiro”, e o inferno pode ser mais bem entendido como um “estado de mente”, resultante do isolamento da criatura, em sua própria mente, da vontade de seu Criador (6) — e aqui estão inclusas todas as incontroláveis implicações disso. Isto se funde bem com a ideia de Bell de que o inferno pode ser descrito como nossa recusa em permitir que Deus reconte nossa história (7).
Em outras palavras, o inferno seria fruto, também, da escolha do ser humano — ou sua “rejeição” e “resistência”, como enfatiza Bell numa parte da entrevista — por viver de modo alheio, e até mesmo oposto, ao amor de Deus em sua vida na terra. Se é impossível afirmar que o destino deste ser humano será a condenação eterna, é também muito difícil (e tão “especulativo” quanto) afirmar que, porque Deus é bom e é amor, ele/ela está, por derivação natural e largamente extendida do amor divino, livre de qualquer condenação. Lembrando do que disse Paulo, “já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte” (Rm 8.1, 2). A libertação da condenação, desta forma, é consequência do “estar em Cristo”, conforme Paulo. Quem está, como chegou a estar e de que modo permanece “estando” é outra discussão. Só sei que, de modo algum, propagaria aqui a confusão entre as afirmações “não há salvação fora de Cristo” e “não há salvação fora da Igreja” ou “do Cristianismo”. Essa é uma pretensão tola da qual precisamos, urgentemente, nos livrar.
Em segundo lugar, um dos equívocos de Bell está em rejeitar com veemência o que ele chama de teologia concernente ao campo da “pura especulação” sobre céu e inferno. Não pela razão — correta a meu ver — de que nada podemos falar sobre céu e inferno como se tivéssemos “lá” estado ou como se possuíssemos “uma fotografia” de como será quando passarmos “desta para melhor” (ou para pior, quem sabe). Se estudarmos com um pouco mais de atenção o que as Escrituras falam sobre céu e inferno, veremos que estes são representados de modo figurativo, e não literal, isto é, não pretendem apresentar uma pintura ou foto da coisa em si, mas oferecer vislumbres simbólicos de como é ou como será — o livro de Apocalipse é, para mim, o melhor exemplo. Desse modo, de fato, é no mínimo estranha a “autoridade” com que alguns reclamam afirmar que “lá será assim” ou “lá será assado”. Mas, quando digo que ele se equivoca, é porque deixa inúmeras questões em aberto em suas afirmações, tornando-as tão especulativas quanto as que ele mesmo ora critica, tanto no livro quanto na entrevista. Um exemplo está em quando ele diz ser possível encontrar hoje um número grande de cristãos que acreditam que “Deus conquistará todos nós, ganhará todos os corações. Não sei se isso vai acontecer, também não sei o que acontece quando morremos, mas acho que essa é a melhor história possível. Portanto, por que não torcer por ela?” (8).
O uso da palavra “não sei” por Bell me lembra daquele personagem, o Chicó, do filme O auto da compadecida(Guel Arraes, 2000), que dizia não saber explicar as coisas, e repetia constantemente o bordão: “Não sei, só sei que foi assim”. O problema não está em não saber, está, antes, em confundir a natureza dos saberes, os de ordem científica — como o evolucionismo, citado por ele — e especulativa, e os de ordem de fé. Não estou dizendo que não possa haver, em nenhuma hipótese, conciliação entre eles, mas que há diferenças óbvias entre o que um saber científico reivindica e o que um saber de fé reivindica, e entre as respostas que ambos podem e se propõem a dar. O cientista, que estuda fenômenos, nada pode dizer sobre céu e inferno, pois não pode dizê-lo “objetivamente”. Já a pessoa de fé, é capaz de dizer: “sei que o inferno e o céu estão aqui presentes, e também lá”, mas logo reconhecerá que este saber só tem sentido se concebido e experienciado na fé. Ele/ela não apenas “torce” para que assim seja, como quem torce para que chova amanhã, mas espera — no sentido da esperança que se conjuga entre paciência e luta — que assim seja. A fé, já diria o autor de Hebreus (11.1), “é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se veem”.
Em outras palavras, a fé pode ser entendida como uma certeza sustentada pelo Espírito — já que não vejo, mas espero — em meio às muitas incertezas humanas. É resultado do encontro entre o que há de mais sublime e verdadeiro na existência para os que “estão na fé” — o conhecimento de Deus — com aquilo que há de mais frágil e incerto — conhecimento e experiência humanos. Na definição de Brennan Manning, “fé é um compromisso com a verdade, que é Jesus Cristo. Fé é dedicação à realidade, que é Jesus Cristo” (9). Portanto, Cristo é o centro tanto da fé nele, como da salvação que somente nele obtemos. E isto me conduz ao meu terceiro e penúltimo ponto: a intrincada questão da “salvação universal”.
É preciso dizer que concordo com a defesa de Bell que, ao invés de céu e inferno, o amor de Deus está no centro da mensagem do evangelho e que este amor se destina à toda a humanidade e não somente a uma parcela dela — basta aqui lembrar de João 3.16. Em seu primeiro livro, Velvet Elvis, Bell disse que “se o evangelho não é a boa-nova para todo mundo, então não é boa nova para ninguém” (10). A salvação de Cristo pode ser considerada, nesse sentido, “universal” quando se tem em mente que a intenção seja a salvação de todo ser humano na face da terra. A crença de Bell numa “salvação universal” em que todos serão alcançados — que rejeita a noção de condenação e barateia a noção de graça — me parece, porém, uma banalização da ideia. Sobretudo, porque ele mesmo afirma que a salvação precisa ser concebida em um “contexto holístico”. O que ele omite, talvez pelos limites próprios da edição, são as implicações disso. O que significa, afinal, “ser salvo”? Salvo de quê e para quê? Ser salvo, num contexto holístico, não implica que as pessoas estejam sendo transformadas, paulatinamente, na totalidade de seu ser? Talvez na tentativa de combater a ideia da presença ou ausência de uma salvação que determina se a pessoa vai para o céu ou para o inferno, Bell tenha se perdido um pouco quanto a outros aspectos, não menos importantes, de “ser salvo”, ou mesmo em esclarecer quais seriam os reflexos do “céu aqui” na vida concreta de pessoas.
Em minha percepção, essa entrevista apresenta um Rob Bell um pouco mais “irresponsável” na maneira de se posicionar do que demonstrou ser em O amor vence. Se isso tem a ver com o fato de ele ter saído da Mars Hill, sua antiga igreja, se mudado para Laguna Beach, na Califórnia, e agora atuar como palestrante e escritor mais “livre”, nada posso dizer para além de especulação. Não importa. No livro, pelo menos, não vejo Rob Bell abrindo mão da ideia de um céu ou inferno “depois”. Pelo contrário, no capítulo 3, em que fala do Inferno (e aqui tomo o livro em sua versão original) ele diz que “existem infernos individuais, infernos comunitários, infernos de uma sociedade mais ampla... há inferno agora, e há inferno depois, e Jesus nos ensina a tomá-los, ambos, seriamente” (11). Então confesso ter ficado um tanto quanto confuso pela falta de clareza da posição de Bell acerca disso. A princípio, parece-me que a ideia de céu e inferno “aqui”, prevalecem diante da ideia do que vai acontecer no pós-morte, sobre o que ele se recusa a falar. Ele tem ideias interessantes neste livro, mas se aprofunda pouco nelas, deixando uma série de questões muito mal resolvidas. Não pode reclamar, neste sentido e ao todo, da polissemia interpretativa de seus críticos.
Em quarto lugar, e aqui vai talvez meu maior ponto de desapontamento e desacordo com o que Rob Bell disse na entrevista, ele patina muito ao tentar pintar um Deus “bonzinho”, de boa reputação, que não fere ninguém, não magoa ninguém, não desaponta ninguém — coisas que nem o próprio Deus, em minha percepção de sua Palavra, pretendeu ser. É quase como que uma postura de “guarda-costas” da bondade divina, seja contra a postura da “liga da justiça” fundamentalista norte-americana, ou a favor de um mundo ferido “em nome de Deus”. Isto fica explícito na resposta à pergunta: “Faz sentido que um ateu seja salvo por uma divindade na qual ele não acredita?”. Ao que Bell responde: “As pessoas de fé acreditam que Deus ama a todos, dá vida a todos. O Deus sobre o qual Jesus falou não seria capaz de ferir ninguém”(12). Afinal, a quem Bell quer convencer (ou contentar) com declarações como essa? Teologia preocupada em salvar a reputação de Deus soa menos como teologia e mais como marketing divino. E o evangelho me parece ser o “produto” mais antimarketing que existe na terra. Nele vejo a imagem de um Deus amoroso e terno, mas que não omite sua fúria em certos momentos e não aceita passivamente a rebelião de suas criaturas contra si mesmas e contra seu criador. Ama incondicionalmente, sem perder seu “anseio furioso” (Brennan Manning) pela reconciliação da Criação, sem, porém, ofertá-la a “preço de banana” na esquina mais próxima. Um Deus incapaz de se enfurecer é um Deus indiferente e, como tal, incapaz de amar.
Para encerrar, quero enfatizar que sou contra qualquer um que, em qualquer posição que esteja, julgue-se no direito de condenar outra pessoa como “herege” (um cristão menos qualificado neste sentido), como muitos estão fazendo com Rob Bell neste momento. E tenho, inclusive, um entendimento mais empático em relação a ideia de “herege” do que negativo, pois se trata da figura do contestador, e sem dúvida precisamos de contestadores no mundo de hoje. Contestadores que não sejam impossibilitados de contestar, mas que também aceitem jubilosamente ser contestados, desde que em um nível dialogal e respeitoso. Fora isso, o “lado bom” de se conhecer um “herege” é que você acaba conhecendo também muitos inquisidores, que estavam à espera dele aparecer, e acaba se dando conta de que a “Santa Inquisição” pode ter morrido com o passado, mas permanece viva “em espírito” numa miríade de sentidos. Como oro a Deus para que me livre da pretensão maligna de ser inquisidor ou (no campo da teologia) “legislador”, minhas críticas a Rob Bell são críticas às ideias dele — como leitor e admirador de seus escritos — e não à sua pessoa (me sinto ridículo tendo que esclarecer esse tipo de coisa em pleno século 21!). Quanto à pessoa, continuo crendo de bom grado, pelo que vejo, que Bell permanece sendo um homem de fé comprometido com Jesus Cristo. Não será este livro ou essa entrevista à Veja que irão romper com isso. É preciso bem mais que isso, e nem caberia a mim dizer que está “dentro” ou “fora”. Deixemos Deus fazer o trabalho de Deus.
Na tarefa de teologizar limito-me a pensá-la como uma resposta ocasional. Se ela é válida ou não, não me cabe determinar, apenas me esforçar para que assim seja. E que seja também uma resposta que, antes de tudo, esteja conectada não apenas com meu modo de pensar as coisas, mas de vivê-las (minha experiência). Não vejo nesse empreendimento a que Bell e tantos outros têm se dedicado, de “provar” no balcão das liquidações pós-modernas que Deus é amor e salvar a reputação de sua existência, algo salutar. Não se prova, no sentido cabal de comprovação, o amor de Deus. Ou se experimenta, ou não. Do contrário, estarei bastante sujeito a cair no que Lewis chama de a “mais sutil de todas as armadilhas”: a de falar tanto ou defender tanto algo, e acabar perdendo de vista sua dimensão encarnacional ou prática.
Em suas próprias palavras, com as quais termino:
Houve homens que se interessaram de tal forma em provar a existência de Deus que acabaram desinteressando-se por completo do próprio Deus... como se o bom Deus nada tivesse a fazer além de existir! Houve alguns tão ocupados em tornar o Cristianismo conhecido que jamais pensaram em Cristo. Nossa! E é possível ver isso nas mínimas coisas. Já conheceu um amante de livros que, a despeito de todas as suas primeiras edições e obras autografadas, tivesse perdido a capacidade de lê-los? Ou, quem sabe, um organizador de projetos de caridade que perdesse todo o amor pelos pobres? (13).
Notas 
(1) BELL, Rob. O amor vence. Rio de Janeiro: Sextante, 2012, p. 08. 
(2) “Quem falou em céu e inferno”. Entrevista de Rob Bell a André Petry. Veja, Edição 2297, de 28 de novembro de 2012, p. 19, 22. 
(3) BELL, op. cit.: 09. 
(4) LEWIS, C. S. O grande abismo. São Paulo: Editora Vida, 2006, p. 17. 
(5) Ibid.: 17 
(6) Ibid.: 84. 
(7) Ver: BELL, Rob. Love wins. New York: HarperOne, 2011, p. 170. 
(8) “Quem falou em céu e inferno”. Entrevista de Rob Bell a André Petry. Veja, Edição 2297, de 28 de novembro de 2012, p. 22. 
(9) MANNING, Brennan. A implacável ternura de Jesus. São Paulo: Naós, 2010, p. 126. 
(10) BELL, Rob. Velvet Elvis. Repainting the Christian Faith. Grand. Rapids: Zondervan, 2005, p. 166. 
(11) BELL, 2011: 79. Minha tradução. 
(12) “Quem falou em céu e inferno”. Entrevista de Rob Bell a André Petry. Veja, Edição 2297, de 28 de novembro de 2012, p. 23. 
(13) LEWIS, op. cit.: 87.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Antes… (Parte II)

Esperança-caos

2. Antes

Essa é uma palavra-chave para o autor de Eclesiastes. É preciso viver intensamente, lembrando do Criador, "antes"... Antes do quê? Antes que chegue o inevitável momento da vida em que (o que segue é uma paráfrase dos versos 2-7):

... Não tenhamos mais prazer

... A luz da vida perca seu brilho e seja tomada por uma escuridão sem fim, e nossos olhos já não vejam mais

... Na velhice, nossos corpos já não nos sirvam como antes

... Não tenhamos mais força, e até mesmo aquilo que é relativamente fraco (como um gafanhoto) seja peso para nós

... Que toda aquela potência de antes se transforme em impotência e fragilidade

... E nossos amigos e família comecem a fazer planos para nosso funeral, e os "zés" e "marias" velório da vida comecem a chorar pela nossa partida "desta para melhor" (ou pior, quem sabe?).

É bom ressaltar que a velhice aqui é uma metáfora da decadência, do fim. Alguns têm essa experiência bem antes da velhice. Um acidente ou uma doença podem provocar isso. E como teremos vivido? Então, o que há para viver, o que é possível viver – ou o que o Criador espera que a gente viva – que se decida viver hoje, de preferência , porque o amanhã não existe ainda e nem sabemos se existirá (para cada um dos viventes). Como já disse o poeta Renato Russo, "é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque se você parar pra pensar, na verdade não há". O que há depois de hoje? Ora, o amanhã. A pergunta é: para quem?

3. Vaidade

Por isso, assim ele resume a nossa vida debaixo do sol: "Tudo é vaidade!". Ou seja, tudo é transitório, passageiro, superficial, futilidade pura! Há outras duas definições da vida, que se encaixam bem com essa: (a) somos um “punhado de pó” – do pós viemos, ao pó voltaremos; (b) somos como neblina, que vem e logo se dissipa (Tiago). Na mesma música antes citada, Renato Russo diz: "sou uma gota d'água, sou um grão de areia". Ou seja, somos bem menores que nossa pretensiosidade nos leva a acreditar (ou a nos auto-iludir) que somos.

Isto implica que a vida, não importa quanto tempo a gente viva, diante da eternidade, é incrivelmente curta e, como se costuma dizer, passa muito rápido. E aquilo que foi e o que passou não têm volta. Como diz outro poeta (Lulu Santos): "nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia, tudo passa, tudo sempre passará. A vida vem em ondas como o mar, num indo e vindo infinito". Nesse sentido, cabe aqui a frase de Ed René Kivitz, em seu O livro mais mal-humorado da Bíblia (2009): "Sábio não é aquele que busca a novidade para se saciar: sábio é aquele que consegue entrar na rotina da vida e fazer as coisas repetidas como se as fizesse pela primeira vez".

Como eu leio isso tudo? A partir da perspectiva de que “sei que nada será como antes amanhã” (Milton Nascimento). Não haverá uma segunda vez para amar como eu posso fazer hoje (pelo menos não igual a esta): para perdoar, para me reconciliar, para dar atenção ao meu filho, para beijar minha esposa, para dizer e demonstrar a minha família, ao meu irmão, ao meu amigo, que eu o amo... Então, eu preciso me lembrar de fazer, na oportunidade que tiver, todas essas coisas (e outras) como se fosse a primeira vez, considerando ainda que não sei (e ninguém sabe, exceto o Criador) se, na verdade, não será a última...

Não sei quantas oportunidades Deus ainda vai me dar para eu viver me lembrando Dele, quantas “segundas chances” terei na vida. Assim, tudo o que tenho é o hoje, é o agora; o presente é o tempo da oportunidade. Portanto, há sim algo do presentismo e imediatismo de nosso tempo que precisa ser celebrado (ou reorientado). Pois, no que concerne ao futuro, não sei se será um tempo para mim, porque o futuro não pertence a mim, mas a Deus e somente a Ele. E o futuro além-do-tempo que temos em Deus (vida eterna), só tem sentido se experimentado, mesmo que em parte, já-no-tempo. E aí, o que temos para hoje?

Jonathan

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Antes... (Parte I)


A música "epitáfio", dos Titãs (2001) é apropriada pra uma reflexão sobre o sentido da vida. "Epitáfio" nada mais é que aquela inscrição da lapide do túmulo no cemitério. Geralmente ali se escreve aquilo que a pessoa foi, uma qualidade dela. Ex: 'Ana, esposa fiel, mãe dedicada, mulher irrepreensível'.
A música, porém, inverte isso e apresenta uma lista de coisas que a pessoa queria ter feito, mas não fez. Em suma, é como se ela dissesse: "eu queria ter vivido melhor, curtido intensamente os momentos singulares da vida... mas não fiz". É uma linda canção, que fala de ideais de vida possíveis, mas de um lugar de impossibilidade: o instante da morte. Embora tratemos a morte com extrema recusa, estranhamento e medo muitas vezes, ela tem uma função pedagógica: lembrar-nos sobre como temos vivido e que valor damos à vida, às pessoas que amamos. Podemos dizer que ela é uma espécie de companheira onipresente, que a gente tem certeza que mais hora, menos hora, vai dar as caras. Que ela vem é algo certo, quando ela vem é que não sabemos.
A poesia dos Titãs, porém, chama atenção a dois problemas pelo menos. Primeiro, mostra que, nos últimos instantes de vida, quando não há mais nada a ser feito, alguém lamenta o que poderia ter sido feito, mas não foi ou não fez. Segundo, afirma que "o acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído". O acaso – que diz respeito a coisas que acontecem sem causa, sem razão aparente – não escolhe a quem vai atingir, nem tampouco tem protegidos. Se tudo depender do acaso, então minha vida está nas mãos daquilo que há de mais incerto e implacável. É isso que a gente quer: deixar para que, no Epitáfio, lamentemos a decisão que podemos tomar hoje – de viver e tentar fazer a coisa certa? Entregaremos nosso destino ao acaso e deixaremos “a vida nos levar”?
Agora vamos a Eclesiastes (12:1-7) para ver o que mais pode ser dito sobre isso. Gostaria de destacar algumas máximas que sobressaem neste texto:
1. Lembrar
Lembre-se do seu Criador nos dias da sua juventude, antes que venham os dias difíceis e se aproximem os anos em que você dirá: ‘Não tenho satisfação neles” (12.1).
Em outra tradução se diz "honre e aproveite" seu criador enquanto se é jovem... Por que a juventude? Talvez porque seja uma fase em que mais avulta a pretensão a auto-suficiência do ser humano. Pense em um jovem adolescente, descobrindo um universo de coisas novas sobre si, sobre o mundo... Mas pense também em um jovem adulto, entre seus 25-35 anos, sentindo-se dono de sua vida, vivendo como se aquele vigor fosse durar para sempre, gozando de sua própria produção, como quem faz tudo acontecer por si mesmo. O que ele poderia querer com o Criador?
Mas, a dura realidade (ou a boa notícia, exceto para a geração “Peter Pan” da vida) é que ninguém será jovem para sempre. A juventude e a primavera da vida são vaidade (passageiras/ transitórias/ passam como um vento), diz o questionador de Eclesiastes. Então o conselho é: “Aproveite o máximo dessa vida, viva intensamente, siga os impulsos do teu coração. Mas saiba que não vai passar batido, e você vai prestar contas ao Criador sobre cada pedacinho do que viveu” (ver Ec 11.9-10). Vejam que o autor não é contra o prazer e a felicidade. Não é contra aproveitar a vida – afinal, Deus é o inventor e mantenedor disso tudo, não é? A questão me parece ser a de como aproveitamos a vida? E sem uma relação de amor ao Criador e tudo o que Ele fez, resta perguntar: o que fica disso tudo que temos vivido?

(Continua...)

Jonathan

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Uma rápida sobre a experiência da escrita

Escrever Lispector

Um historiador é tanto mais útil quanto mais livre -- Peter Gay

A escrita, associada a esse campo de possibilidades, que é a pesquisa, é uma aventura fascinante cujo fim é indeterminado e imprevisível. Tentar eliminar um certo grau de indeterminação intrínseco à natureza da escrita, é uma forma de empobrecê-la, de retirar-lhe a liberdade. É isto que a academia faz, muitas vezes, ao impor o lado metódico (“científico”) sobre a criatividade. A metodologia deve estar à serviço da criatividade do escritor/pesquisador, e não o contrário.

No "academicismo", o problema não é a falta de critérios de interpretação, é o transbordamento e a canonização dos critérios (ou seja, a presença excessiva ou obsessiva deles). A solução não está, a meu ver, na abolição de todo e qualquer critério no empreendimento da escrita ou nos empreendimentos científicos. Todos adotam algum critério para representar a realidade pretendida (mesmo que inconscientemente). Uma solução, talvez, seja a des-mecanização da metodologia da pesquisa  e da escrita - o que implica não em ser menos criterioso (cuidadoso com o que e como fala), mas menos bitolado na aplicação exagerada de certos critérios. Isso mata a liberdade de pensar e, como tal, de escrever, ao mesmo tempo em que aniquila a fome pela leitura.

A escrita que se resume à terceirização – notas de rodapé técnicas sobre o que outros já fizeram e como aplicaram as regras consagradas que sua ciência celebra – é, no mínimo, entediante e desinteressante. Textos que "arrastam" leitores, em geral, são aqueles permeados pela personalidade e pensamento próprios de seu escritor, e de uma experiência com a qual o leitor possa se identificar. A objetividade é uma pretensão cansativa.

Jonathan

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Feridos pela igreja, sarados na igreja

church-after-christendom

Por Henri J. M. Nouwen

A Igreja com frequência nos fere profundamente. Pessoas com autoridade religiosa normalmente nos ferem através de suas palavras, atitudes e exigências. Precisamente porque nossa religião nos coloca em contato com questões de vida e morte, nossa sensibilidade religiosa pode ser facilmente ferida. Ministros e pastores raramente se dão conta de como um comentário crítico, um gesto de rejeição, ou um ato de impaciência pode ser relembrado durante uma vida inteira por aqueles a quem eles foram direcionados.

Existe uma fome tão grande por significado na vida, por conforto e consolação, por perdão e reconciliação, por restauração e cura, que qualquer pessoa com alguma autoridade na Igreja deveria constantemente ser lembrada que a melhor palavra para caracterizar a autoridade religiosa é compaixão. Continuemos a olhar para Jesus, cuja autoridade foi expressa em compaixão.

[…] Quando somos feridos pela Igreja, nossa tentação é rejeitá-la. mas quando rejeitamos a Igreja, torna-se muito difícil permanecer em contato com o Cristo vivo. Quando dizemos: “Eu amo a Jesus, mas odeio a Igreja”, acabamos não apenas perdendo a Igreja, mas também a Jesus. O desafio é o de perdoar a Igreja. Este desafio é especialmente grande porque a Igreja frequentemente nos pede perdão, ainda que extra-oficialmente. Mas a Igreja, como uma organização humana e falível, precisa de nosso perdão na mesma medida em que a Igreja, na forma do Cristo vivo entre nós, continua a nos oferecer perdão.

É importante pensar na Igreja não como algo que se encontra “lá fora”, mas como uma comunidade de pessoas fracas, cheias de conflitos, da qual somos parte e na qual nos encontramos mutuamente com nosso Senhor e Redentor.

[Tradução: Jonathan Menezes. Trechos de: NOUWEN, Henri J. M. Bread for the journey. São Francisco: Harper Collins, 1997].

domingo, 9 de setembro de 2012

Palavras também dão sentido ao mundo

Poder da fala

É conhecida a ênfase de Tiago sobre a ação na vida cristã. Para ele, a ação dá vida à fé que move o mundo. Mas ele também mostra um complemento disso: palavras também dão sentido ao mundo... Os versos abaixo lançam mão de todo o problema a ser explorado no capítulo 3 (1-12) de sua carta: “Não tenham pressa alguma para se tornarem professores. Ensinar é um trabalho de alta responsabilidade. Professores são avaliados pelos mais estritos padrões. E nenhum de nós é perfeitamente qualificado. Nós agimos mal quase sempre que abrimos nossa boca. Se você conseguir achar alguém cuja fala seja perfeitamente verdadeira, você tem uma pessoa perfeita, no perfeito controle sobre sua vida” (Tg 3.1-2 – The Message).

Isso significa que, quando eu abro a boca, estou mais perto de errar do que em qualquer outro instante da vida. E só um ser perfeito é capaz de controlar a língua ou a fala totalmente. Ou seja, este pleno domínio simplesmente não existe, especialmente fora dos domínios da ação do Espírito.

A questão que me encabula é: como um órgão tão pequeno pode ter um poder tão grande sobre a vida e os relacionamentos humanos?

Comecemos analisando, por exemplo, a frase: “O que a gente fala tem poder”. Que poder é esse? Até onde ele atinge? Certamente a visão espiritualizada e superficial desse negócio não consegue captar o que isso significa. Não se trata nem de fetichizar, nem de demonizar a fala, e dar maior poder do que ela realmente tem. Mas de pensar no que, de fato, ela é capaz...

O texto de Tiago nos ajuda a aprofundar a questão, quando compara a língua a uma faísca, que pode atear fogo numa floresta inteira. Estando no meio dos demais órgãos, a língua é “um mundo de iniquidade”, que tem a potência para contaminar o corpo inteiro, e mais, todo o caminho de uma existência humana. Isso ajuda a entender melhor o exemplo do professor, por ele dado, e o peso da responsabilidade sobre o que alguém nessa posição diz.

Nós domesticamos todo tipo de animal, mas, segundo Tiago, somos incapazes de domesticar a nossa própria língua. Todavia, Tiago não está dizendo que a língua é o demônio, e sim que ela pode até transformar supostos “anjos” em pequenos demônios, exagerando um pouco. Seres humanos, porém, não são nem anjos nem demônios, são apenas humanos, e urge que reconheçam a si mesmos e do que são capazes em sua humanidade, seja para o bem ou para o mal.

E essa é a sacada que nos leva de volta à tese do começo – de que palavras também dão sentido ao mundo: tanto quando usada para fazer bem como para fazer mal. E Tiago não dicotomiza a questão da fala no binômio bem-mal, pois lembra que da mesma boca de onde procedem louvores a Deus, o Pai, procedem maldizeres às pessoas, criadas à sua imagem e semelhança. Com o ser humano é assim, paradoxal, tudo junto e misturado. Daí, é possível perceber que quando dizemos coisas que fazem mal ou bem a alguém, afetamos a saúde integral do corpo, o nosso e o do outro.

Uma frase que talvez Luiz Felipe Pondé diria ser “filha do politicamente correto”, é aquela em que alegamos ter dito algo estando “fora de nós mesmos”, ou “da boca para fora”. Bem, a menos que estivéssemos sob efeito de entorpecentes, sou obrigado a dizer que isso é uma grande balela. Ninguém fala nada “da boca pra fora”. Quando saímos com isso, portanto, ou é para sair menos “mal na fita”, ou para se justificar de um jeito aparentemente humilde, ou porque não nos conhecemos o bastante pra saber “o que é que há, o que é que está se passando com essa cabeça”, ou porque mentimos descaradamente mesmo, e... (complete você). Como se diz, a boca fala do que está cheio o coração. Ou, como disse Jesus, “o que sai do homem é o que o torna impuro” (Mc 7.20).

Mas Tiago não pára por aí. Ele não diz que está bom desse jeito. Pelo contrário. Ele defende que isso não pode continuar assim. Não podemos prosseguir dizendo por aí frases como “eu sou de Deus, eu sou de Cristo”, enquanto normalizamos a maledicência. Também não dá pra afirmar categoricamente que não compactuamos muitas vezes com ela. É preciso sempre desconfiar da fala, não dar todo o crédito pra ela, e nem tirá-lo totalmente. É preciso constantemente se perguntar: Do que a fala está carregada? A quem ela pode estar atingindo destrutivamente? Em que e a quem este “dizer” possivelmente edifica? O quanto posso estar dizendo isso apenas para agradar ou provocar desgosto?

Acredito que a palavra também dá significado ao mundo, e mais, que pode ajudar em sua transformação. A existência e o uso da palavra é, portanto, parte do propósito de Deus para a humanidade. Mas, como bem advertiu Eclesiastes, “há tempo para todo propósito debaixo do céu”. Há tempo de falar – e que a gente aprenda a moderar e liberar nossa fala no tempo adequado, em favor da vida e para gerar vida. Há tempo também de calar – tempo em que o falar atrapalha, tempo necessário para repensar o dizer e para desconfiar do que se tem dito, tempo para deixar um pouco de lado a fala e, quem sabe, começar a agir. Pois palavra sem vivência é palavra sem sentido: pode até causar rebuliços e prazeres mentais, mas não fecunda mais que o exemplo e a integridade de quem nem precisa dizer muita coisa para significar muito.

Jonathan

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Uma fé “fora da caixa”

fora da caixa

Escrevi estas linhas, motivado pela pergunta feita por amigos-irmãos de uma comunidade nascente em São Paulo, chamada “COLETIVObeta”. Na ocasião de minha fala e participação em uma das reuniões do grupo, iniciei considerando que a fé cristã não existe à parte do contexto histórico e cultural em que é concebida. Antes, é permeada, influenciada e modificada por ele. Logo, não existe fé “pura”, no sentido de incontaminada em relação ao ambiente, as pessoas, os coletivos, suas práticas, suas ideias, seus costumes, etc. De modo que esse negócio de “fé fora da caixa” pode não passar de uma perspectiva ingênua – já que todos nos encaixamos em algum esquema, quer admitamos ou não (como bem observou na ocasião meu amigo Hilton Isleb) – mas também (e penso que assim deve ser) uma tentativa de constantemente repensar e de novo situar a fé, de acordo com as transformações pelas quais o mundo passa e nós, mundanos, também passamos.

Assentindo positivamente com a proposta de meus amigos, traço aqui, em breves, algumas ideias sobre o que seria essa tal “fé fora da caixa”.

1. É aquela que se reconhece como dádiva e, portanto, que diz: Eu “estou na fé”. Não trata a fé como posse, porque se é posse a gente guarda na caixa, no armário ou embaixo da cama e a luz (de Cristo) não pode brilhar ali... A fé, definitivamente, não existe para ser “guardada”, mas para ser expressa, para brilhar e salgar.

2. É a fé que abandona a linguagem que diz “minha fé”, por entender que fé cristã se gesta comunitariamente. A conversão pode ser a razão pela qual passamos a viver na e pela fé, mas a comunidade é o que sustenta, desafia e impulsiona a fé a outras possíveis conversões. Ademais, fé que não se converte ao outro não pode ser chamada “cristã”. No máximo se traduz por uma crença, como uma opinião: você crê daquela forma, você crê em Deus, mas sua vida não se move do jeito de Deus. Ao modo como Tiago já dizia: Você acredita em Deus? Beleza! Mas deixa eu te avisar: até os demônios crêem e temem. No final das contas, se nada opera ou transforma, a fé é como um cadáver, uma fé necrófila – amiga da morte, não da vida.

3. É aquela que não pode simplesmente se perder, num vaivém de “tinha e agora perdeu” – pois se não é propriamente minha, vai se perder como? A fé que se perde é aquela que nem bem se achou, e é preciso então perguntar se o que se perdeu não pode ser essencial ao ser verdadeiramente achado na fé. Ser achado na fé é ser achado livre, aceito pela graça e amado como filho de Deus e firmado na esperança da consumação no reino.

4. É ainda uma fé que não teme os riscos, que não tenta se blindar contra o mundo nem contra a humanidade, a começar pela própria. É, portanto, uma fé frágil, tanto por habitar em “vasos” quebráveis, como porque está fora e não se furta de se expressar ao mundo, porque não se envergonha daquele que é a razão própria de sua existência: Jesus! A fé que não tem vergonha de Jesus não cria adornos para ele. Ela assume sua identidade radical como necessariamente mansa e humilde de coração, de um fardo que é leve e suave, mas também de uma atitude rebelde e causadora de problemas, pois veio trazer espada e não “paz” ao mundo – pelo menos não essa paz artificial e sem justiça que ele almeja muitas vezes.

5. Por fim, porque não “se ganha” e, assim, não teme “se perder”, a fé fora da caixa é uma fé chamada a pensar, discernir e, diariamente, reinventar a si mesma diante de Deus e de seu contexto. Isso significa que a fé fora da caixa é uma fé que, apesar do firme alicerce espiritual que tem em Jesus, não se despe da dúvida, da incerteza e da indeterminação próprias do viver humano, especialmente no tempo atualmente vivido. Antes, a fortaleza da fé é que ela é uma certeza em meio a incertezas (cf. Hb 11.1). Enfim, a natureza da própria fé a conduz para fora da caixa, pois não se pode aprisionar o Espírito, que é quem a vivifica. Esse é o grande problema que o Espírito gera para a pessoa de fé: é que ele é livre e atua em liberdade. Uma fé escrava, comodamente encaixotada, não se deixa orientar pelo vento do Espírito, pois é o Espírito quem promove a liberdade para se viver a vida de Cristo de modo autêntico no mundo. Quem tem ouvidos, ouça...

Jonathan

(Imagem: ideiaseacao.com)

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A revolução do Espírito e a involução dos espíritos

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Caro Fernando,

Obrigado por escrever seu email-carta. Muito me agradou, intrigou e arrancou um bocado de riso. É sempre bom saber que aquilo que a gente escreve tem algum impacto sobre as pessoas, mesmo quando negativamente. E é muito interessante o processo pelo qual somos lidos e avaliados pelo outro. E isso você faz muito bem em sua carta, ora falando de mim, ora de si mesmo, aportando encontros e desencontros. Um trecho, porém, em particular, me fez parar pra pensar mais detidamente (na verdade, é o que mais me motivou a escrever essa resposta), e é o seguinte:

Acredito que em grande parte, sua demanda pelo seu trabalho/vida, faz com que continue produzindo des-tratados teológicos e teologias narrativas assitemáticas. Momento em que nossos rios se separam e nascem as saudades, ou melhor as dúvidas:

De onde nasce sua vontade de ser a própria linha de fuga do território teológico, ser um nômade-emigrante da nação-estatal cristã? Porém, ainda carregar consigo penduricalhos e souveniers. Qual é a força para retornar sempre de onde tenta sair?

Em primeiro lugar, quero dizer que seu texto é para mim mais um sinal de que existe esperança, de que o Espírito se move e sopra onde quer e esse, como diria Miguel de Unamuno, é “o grande problema do Espírito”, é que Ele é livre! E, portanto, jamais deixará de causar seus rebuliços na história, com, sem ou apesar das igrejas que tanto invocam sua presença, às vezes desejando que em seu meio Ele seja “Ele mesmo” (livre, desimpedido e revolucionário), às vezes tentando tratá-lo como monopólio ou patente. O grande lance é que, por não se deixar aprisionar dessa forma, não será o Espírito quem morrerá, e sim aqueles(as) que pensam poder contê-lo. E isso, de variadas formas, já vem acontecendo na história da igreja – quem tem olhos para ver, veja, e quem tem ouvidos para ouvir, ouça!

De fato, escrever para mim é mais um ato de transgredir a mim mesmo – expor necessidades, expressar descontentamentos, extravasar pensamentos, etc. Isso, aliado a um esforço de encarnação, desejando que minhas palavras estejam coladas com a minha vida, e assumindo doses moderadas ou altas de risco, de que esse esforço também revele minhas deficiências, vulnerabilidades e inadequações, e mostre o quanto disso tudo é concebido no olho do furacão do paradoxo, embora não sem temor e tremor. Isso, como você disse, pode gerar risos no canto da boca, ou provocar raiva, ser uma “maquina de guerra” ou “linha de fuga”. Não sou a favor do escapismo, mas não posso ignorar a possibilidade de que a escrita seja também uma espécie de “válvula de escape”. Por outro lado, não pretendo deixar de dizer o que preciso dizer, com alguma medida de coragem e liberdade, para quem quer que seja. Se se retirar esse elemento da pena do escritor, o resultado será menos que medíocre.

Até pelas razões acima, e também pelo que você mencionou (minhas muitas “demandas”), acabo produzindo “des-tratados” teológicos, com pouca pretensão de veracidade (no sentido metafísico) e até mesmo de aceitação por um grande público. Se há algum teor de “verdade” naquilo que escrevo, é sempre por vias de aproximação e jamais por correspondências. Acho que nunca acreditei nisso, na capacidade do discurso, seja ele de que ordem ou matiz científica for, “corresponder” à realidade, à verdade ou mesmo a Deus. Tudo o que falamos, é como quem balbucia ecos do abismo, tendo uma enorme escuridão à nossa frente e apenas uma luz no fim do túnel. Nossa enorma ânsia pela verdade (por agarrá-la, possuí-la) faz com que nos agarremos a esse faixo de luz, achando que conseguimos refletir o luzeiro. Isso é o que chamo de “involução dos espíritos”, bem capaz de co-existir sem nenhuma relação direta com as intermináveis revoluções do Espírito da Liberdade, o Espírito de Deus.

A razão, eu acho, que me leva a viver numa espécie de limbo teológico, como “nômade-emigrante da nação cristã”, me afastando sem deixar de pisar no território religioso, em grande parte é por força da profissão – sou professor de teologia – e da vocação – pode não parecer, mas sou pastor. Um pastor meio “cavaleiro das trevas”, às vezes, mas ainda assim um pastor. E enquanto Deus quiser, não pretendo deixar de colocar meus escritos, ideias e, mais do que eles, minha vida, na linha de frente da luta em prol do reino de vida do Deus de amor. Um reino que é feito de/para todo tipo de gente – desde o fariseu ao simples varredor, desde o que se senta na coletoria, até mulheres retirando água à beira de poços, desde doutores diplomados e engravatados, à gente simples que mal sabe ler ou escrever. Para cada uma das pessoas, há uma forma de abordagem, um jeito de aproximação. Com meus textos, atinjo quem quer que se interesse por leituras variadas sobre teologia, filosofia, história, Deus, religião, vida, espiritualidade, etc. Com minha vida, preciso fazer um esforço para me encontrar com quem quer que seja “próximo”. E “o meu próximo”, como diria Segundo Galiléia, não é exatamente aquele(a) que compartilha de minhas ideias, valores, cultura ou religião; meu próximo é aquele com quem me comprometo.

Se meus textos e minha vida não expressarem, ainda que de modo torto, inacabado e nem sempre feliz ou assertivo, esse compromisso, creio que eles não têm razão de existir. Talvez seja esse o espírito da coisa toda, talvez seja por isso que, mesmo que contra a vontade tantas vezes, tenho tido coragem de bater, mas não de virar as costas.

Um grande abraço,

Jonathan

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Sobre apologetas e apolo-jecas

Paladinos

Pensando e lendo algumas coisas pela internet nos últimos dias, percebi que, além dos neo-apologetas, existem também os “apolo-jecas”. Neo-apologetas são aqueles que ainda pretendem, pelas vias do método teológico moderno, altamente sustentado na argumentação e na objetividade, “defender” Deus. Os apolo-jecas (desculpem a brincadeira), por sua vez, podem ser os fieis seguidores dos apologetas, que batem palma pra tudo o que eles dizem e defendem suas ideias com unhas e dentes. Não estão abertos para o diálogo, pois se recusam a pensar além daquilo que emana “do interior” do discurso já amplamente aceito, discutido (pela liga da justiça apologética), comprovado e aprovado por sua alta ciência teológica e pela cúpula eclesiojeca. Para eles, qualquer coisa que fuja à pretensa argumentação objetiva, da qual tanto se orgulham, acaba soando como tergiversação – pois não vai direto ao ponto, não atinge a questão, portanto, não está de acordo com “a verdade”. Afinal, só existe uma maneira de pensar e fazer ciência válida: a deles.

O modo apologético sustenta-se sob a pretensão não apenas de “falar de Deus” (o que já seria um hercúleo desafio), mas de “falar por Deus”. Muitas vezes ainda cede ao que C. S. Lewis chamou de “oferta do bruxo”, ao trocar sua vocação (teológica) para ser a mais modesta dentre as ciências, pelo conhecimento como poder: para legislar, dominar e condenar. Lutou contra seu próprio princípio de sustentação, de que a força de seu discurso e vida reside precisamente em sua fraqueza. Tantas vezes tem cedido à tentação de não questionar seus próprios pressupostos, lidar mal com os questionamentos alheios e, se isso não bastasse, de decretar como “herege”, “liberal” ou coisa que o valha quem ousa os questionar.

Um jeito “não jeca” de ser apologeta (se é que é possível continuar sendo assim chamado, caso isso aconteça) talvez seja o de deixar de lado essa faceta unívoca (que só tem e só admite “uma voz”), e aceitar a pluralidade, a plurivocidade e a diferença, não para baratear ou negar convicções, mas para enriquecê-las, colocando-as em seu devido lugar, como mais um discurso possível entre outros. Parafraseando o que disse Barth, a teologia só pode ser um discurso possível porque Deus disse “Sim”, e não porque alguém sacramentou e popularizou a fórmula do “é assim e pronto”.

Ademais, esse apego ferrenho ao poder do argumento que convence, em nosso tempo, não convence mais que o poder da vivência. Lembrando do que disse Lewis em A abolição do homem: “Numa batalha, não são os silogismos que vão manter os relutantes nervos e músculos em seus postos na terceira hora de bombardeio. O mais rude sentimentalismo... em relação a uma bandeira, país ou regimento será bem mais útil” (p. 22). Enfim, para Lewis, além de “cerebrais” (racionais) e “viscerais” (passionais), precisamos de “homens de peito” (íntegros, magnânimos na atitude, no sentimento), pois “o peito” é o elemento intermediário que transforma o homem em homem, enquanto, “pelo intelecto ele é apenas espírito, e pelo seu apetite ele é apenas animal” (p. 23).

O que tudo isso me leva a pensar? As “ideias boas” e bem articuladas, em si, podem convencer, mas não transformam, não geram “homens de peito”, na acepção de Lewis, no máximo, homens que, para fins mais “sublimes”, correm o risco de ignorar a parte do meio, pois, como reitera Lewis (ora se referindo a certos racionalistas de sua época), “não é o excesso de pensamento que os caracteriza, mas uma carência de emoções férteis e generosas. Suas cabeças não são maiores que as comuns: é a atrofia do peito logo abaixo que faz com que pareçam assim” (p. 23). Exemplos de vida, por sua vez, atrelados a ideias boas, bem articuladas e bem fundamentadas, convencem e transformam. Jesus é o maior exemplo de que as palavras não são tão convincentes quando ou se descoladas da vida. Ou como se diz por aí, palavras convencem, exemplos arrastam... Talvez aí esteja um mote para pensarmos num discipulado pós-moderno.

Jonathan

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Manifesto pela abolição do politicamente correto em teologia

Politicamente correto

Começo avisando aos desavisados, caçadores da heresia alheia e paladinos da retidão, que não sou a favor do mau-caratismo, da indiferença e da falta de educação ou consideração pelo outro. Tento seguir a palavra de Paulo, que diz que, no que for possível a nós, tenhamos paz com todos os homens, sem ignorar a de Jesus, que afirmou não ter vindo para trazer paz, mas espada. Então, por favor, não confundam o papel exercido pelos pacificadores, com o dos pacifistas (que querem paz a qualquer preço), dos passivos (que aceitam irrestritamente a paz ou a espada que lhe oferecem) ou dos politicamente corretos – que negociam, encenam, proclamam, associam, brindam, celebram "paz", mesmo não havendo paz, o que implica em haver justiça, harmonia, reconciliação. A paz do politicamente correto, em especial, é a paz "que eu não quero conservar pra tentar ser feliz", parafraseando "O Rappa".

Por que não? Porque o politicamente correto é uma invenção do impostor, do manipulador e do religioso, propagada e aceita em rebanho, a fim de manter um efemêro, superficial e ilusório senso comum de qualquer coisa: uma falsa hamonia, uma falsa preocupação e comprometimento com os "altos valores" humanos, uma falsa posição favorável aos direitos de grupos minoritários, uma falsa e patética defesa do interesse geral de sei lá o quê, quando o que está em jogo é, na maioria das vezes, o interesse de um (indivíduo, grupo, classe) só. Acho que o coisa-ruim, quando maquinava sobre como poderia persuadir sem ser notado, resolveu dar uma "ajudinha" pra que se criassem duas coisas: uma se chama propaganda – uma apreciada e bem-sucedida forma de se contar mentiras, e ainda receber aplausos e dividendos por isso – a outra tem sido nominada de “politicamente correto”.

Então, minha definição (simplista) de politicamente correto, é: a vitória parcial do coisa-ruim contra a possibilidade da integridade e honestidade humanas e uma forma de nos manter parecendo ou querendo ser o que, no fundo, não somos, não pensamos, nem acreditamos, mas que, em nome da preservação de uma imagem e reputação, afirmamos ser-parecer-crer, com óleo de peroba bem passado na face.

Por que isso é um problema particular para o fazer teológico?

Simples, porque o fazer teológico é, antes de tudo, um fazer profético, tanto no conteúdo quanto na forma. E o compromisso primeiro do profetismo é com a mensagem a ser proferida e com Aquele que a confere: Deus. Não está à serviço nem de sistemas, instituições ou do poder temporal onde quer que ele apareça. Pelo contrário, fala precisamente para denunciar os desvios e transgressões provocados por estes, contra Deus e contra a vida. Dessarte, o profeta não pode se ativer ao que é politicamente (ou religiosamente) correto, mas se atém a todo o conselho de Deus, de acordo com o discernimento provido pelo Espírito à luz da Palavra. Se chegar a desagradar A, B ou C é porque foi fiel à sua vocação. Se passar a se preocupar com o que pensam, com o que dizem, com o pescoço e reputação próprios, perde sua razão de existir, e já não pode mais ser chamado “profético”.

Não estou dizendo que a palavra profética é destrutiva. É claro que ela pressupõe a palavra de encorajamento e motivadora de esperança, mas também pressupõe correção de rota, denúncia, vaticínio, que nem sempre – ou quase nunca – soam assim tão agradáveis, sobretudo para a pessoa, grupo, governo ou instituição a quem ela se dirige propriamente.

Daí, insisto que a teologia, profética por natureza, não está primariamente a serviço das igrejas ou qualquer outra organização. Ela está a serviço da missão de Deus, na qual a Igreja se insere, como meio e agente e não com um fim em si mesmo. A concepção da Igreja como um fim (finalidade) em si representa, de inúmeras formas, o fim (extinção) dela em sua razão de existir: servir à missão do Reino. Se a teologia, portanto, serve à Igreja é por sua conexão e fidelidade à missão. Até aí tudo bem, creio. O problema é que é muito difícil separar, na prática, a Igreja de suas expressões históricas e interesses institucionais. E a teologia como profissão e forma de sobrevivência no Brasil depende, infelizmente, de uma estreita relação com essas expressões que aqui são, em sua esmagadora maioria, sua fonte de subsistência. Logo, a teologia se vê à mercê dos interesses institucionais e mercadológicos das igrejas e seus departamentos, e tende por isso a pautar sua prática e discurso mais pelo que é conveniente e politicamente correto que pela liberdade no exercício da vocação que lhe é própria. Se admitirmos, por força das condições históricas e contextuais dadas, que essa relação de prestação de serviços e quase subserviência é necessária e inevitável, pelas razões já arroladas, então não há como falar na abolição ora pretendida, nem em fazer valer o que chamo aqui de vocação primária da teologia. E diante de tal realidade, longe estamos de falar em uma teologia que, na sua relação com as instituições, grupos e pessoas, seja livre e libertadora.

O que proponho, afinal, torna-se, para fins práticos e pragmáticos, algo utópico, quase irrealizável em sua amplitude, especialmente dentro de uma instituição de educação teológica. Isso é o que provavelmente dirão meus colegas diretores e administradores envolvidos com ET. A não ser que:

1. A instituição não dependa do estado ou da igreja para sobreviver, o que no Brasil só se tem feito possível em universidades que abrigam e sustentam a pobre teologia, por meios de seus outros (ricos) cursos;

2. As instituições isoladas não vendam suas convicções no altar das matrículas de cada semestre, feitas por estudantes que as igrejas mandam – o que pode (e provavelmente irá) resultar em sua bancarrota;

3. O teólogo não se preocupe com as possíveis retaliações a que venha sofrer – incluindo a perda do emprego, por manter-se mais fiel às convicções que ao bolso; ou

4. Que construa uma carreira profissional paralela a teologia, podendo assim “sustentar” sua vocação sem dependência de relações institucionais e seus posicionamentos orquestrados, especialmente no que toca à arte de escrever.

Escrever sem liberdade é como navegar em um lago: você tem todos os instrumentos para viajar muito longe (far away), mas não consegue sair dos limites da extensão do lago, já bem pré-definidos. Ou seja, nos tornamos teólogos de segunda ou terceira mão, entregadores de pizza e não pizzaiolos, escriturários ou amanuenses do discurso alheio e não escritores de pulso, transgressores, espíritos livres.

Jonathan

terça-feira, 26 de junho de 2012

Meu problema com as apologéticas

Apologética

Apologética é má teologia, como disse certa vez meu ex-professor Júlio Zabatiero. Primeiro, porque parte do princípio de “defesa da fé”. E desde quando urge que a fé seja defendida? Ora, desde quando ela tem sido “atacada”, diria alguém. Entendo, porém, que precisamos, sim, responder às interpelações feitas a fé, mas sem a preocupação em fazer do diálogo um tribunal onde ela possa ser defendida e, no fim das contas, quando “ganharmos a causa”, ser absolvida de suas acusações – o que já não poderia ser chamado de “diálogo”. Dar razão da esperança que há em nós, como diz Pedro, é diferente de defender a fé, que em si, existe para ser indefesa, frágil, e sujeita a retaliações, como foi Jesus. Ele não defendeu a fé, a causa, a missão, mas procurou integrá-las com divina coragem e discernimento a sua vivência e prática diárias.

Segundo, porque a defesa precisa se assemelhar ao ataque para poder partir para o contra-ataque. Nesse aspecto, a apologética peca, pois ainda persiste num diálogo de surdos com a linguagem científica do século XIX, em pleno século XXI, afirmando “certezas” onde só temos “impressões”, “linguagens”, “interpretações”. A certeza e a verdade que afirmamos, pela fé, afirmamos mais com a vida, e menos com o discurso ou de modo proposicional. O discurso, por sua vez, é recheado de incertezas, de imprecisão, de subjetividades. E assim precisa ser, pois se configura como discurso humano sobre o divino, a parcela falando sobre o todo, ou, parafraseando Ellul, aquilo que há de mais imperfeito e temporal falando sobre o perfeito e eterno. Que conseguiríamos nós com nossa “fala sobre Deus”, senão, expressar uma parte? Ora, o próprio Paulo foi quem disse que hoje conhecemos apenas uma parcela da verdade, e então, quando vier o que é perfeito, conheceremos como também somos conhecidos.

Terceiro, se nossa teologia é, por natureza, recheada de proposições sobre Deus, defendo que estas sejam modestas e assumam-se como um discurso em meio aos outros, e não “O Discurso” e “A verdade”, como a maioria das apologéticas acaba se colocando quando apresenta o Cristo travestido de sua roupagem teológica, sem, porém, que se reconheça as limitações óbvias dessa roupagem. O Cristo Verdade-Caminho-Vida é absoluto como ser, mas acaba sendo (e precisa ser) relativizado quando passa pela via dos conceitos humanos. E todo conceito, como diria Nietzsche, nasce por igualação do não igual. Nesse sentido, igualar Cristo a nossas ideias sobre Ele é uma pretensão para lá de funesta, e é onde pecam muitas das apologéticas, do passado e do presente.

Doutrinas não são absolutas; podem ser, sim, percepções relativas, ainda que fiéis, de um princípio absoluto. A relatividade ou provisoriedade da doutrina não é uma negação ou diminuição do absoluto, mas é a assunção de nossa incapacidade de compreendê-lo. Se for absoluto não pode ser reduzido – e em grande medida isso é o que são nossos conceitos ou percepções de Deus: reduções. Que falham ainda mais quando não se assumem como tais, e ainda se vêem no direito de dizer quem está e quem não está do lado “da verdade”. Mas a questão é: se é absoluta, como pode ser expressa? Pode ser expressa por meio da parcialidade imperfeita do discurso – ou da vida. Afirmar que expressamos ou vivemos em parte, é a maneira como Paulo em 1Co 13 nos ensinou a viver na casa do conhecimento sem abandonar a casa do amor.

Mas antes que confundam o que estou dizendo com relativismo, reitero o que já disse em outro lugar: afirmar que nosso conhecimento não é capaz de “dar conta”, de deter a verdade ou alcançar a verdade objetiva, não significa dizer que “não existe mais uma verdade absoluta”, e sim que não pode haver uma visão (humana) absoluta da verdade. Posiciono-me, portanto, a favor assunção da condição relativa de nossas percepções, e não do relativismo (a ideia de que “tudo é relativo”). Se tudo é relativo, então nada é relativo (?), pois o “tudo” se transforma em “absoluto” no dizer do relativista. No fim, o relativismo acaba sendo outra forma de apologética, tão tacanho e sem sentido quanto esta no tempo em que vivemos. Como disse Elienai Cabral Jr. (@elienaijr), há pouco no Twitter: “Não creio em verdades maleáveis, porque narrativas ou poéticas, e verdades duras, porque racionais ou científicas. Apenas descrições várias”.

Jonathan

terça-feira, 19 de junho de 2012

Não tenho vergonha de Jesus



E por que teria? Talvez porque o simples pronunciar desse nome já cause diferentes reações sociais, especialmente na cidade secularizada, onde o nome dele é tão usado, e às vezes com tanta banalidade, que já ficou desgastado. É como se cada vez que se pronunciasse “Jesus”, uma ideia esquisofrênica não diretamente associada ao Jesus dos evangelhos, mas ao Cristo vulgarizado do dia a dia, nos viesse à mente causando ligeiro desconforto. Será que as pessoas estão pensando que o Jesus sobre o qual falo é esse “Jesus genérico”? O que os diferencia?

Então percebo que meu incômodo é por causa do genérico, não do Cristo vivo. Mas será que tanta gente está tão envergonhada do genérico quanto eu me sinto? Quer dizer, o genérico é mais barato, manipulavel, fácil de comprar e propagar. Já o Jesus de Nazaré foi pregado numa cruz e o pessoal de hoje parece não querer se identificar com uma cruz, a não ser como credo e meio de salvação, e não como um caminho a se seguir. Apesar de tudo, o genérico sempre parece ser mais atraente...

Não tenho vergonha de Jesus... Vergonha tenho de seus detratores e caricaturistas. Tenho especial vergonha de mim mesmo, quando o Cristo que em mim transparece não passa de caricatura daquele que Paulo diz ser o “primogênito de toda criação” (Cl 1.15). Tenho vergonha de quando quando percebo que Jesus é mais objeto de minha fala do que visto em minha vida.

Não tenho vergonha de Jesus, mas tenho vergonha do que fizeram com o cristianismo. Transformaram-no em uma prateleira de ofertas das mais variadas possíveis, onde Jesus não passa apenas mais um artigo de decoração, que todo mundo quer ter em casa porque “é legal e faz bem”... Não me envergonho do Evangelho, como disse Paulo, porque é o poder de Deus alcançando não só o judeus, mas também gregos, mas me envergonho daquele “outro evangelho” e da “outra graça”, que são produto da adoração oferecida em altares de barganha religiosa. 

Não tenho vergonha de Jesus, especialmente porque ele é a expressão viva do amor de Deus pela humanidade, tendo ele mesmo encarnado, assumido forma e condição humanas e abraçado a vida na terra com tudo o que isso implica. Contudo, eu me envergonho do que fizeram com o Cristo ressurreto; tiraram dele a cruz e a coroa de espinhos, rejeitando todo o fracasso, dor e fragilidade por ele assumidos, e lhe deram uma coroa de rosas sem espinhos, celebrando uma vitória sem lutas, um sucesso sem falhas, e uma vida que tem ojeriza ao sofrimento . Esqueceram o sentido do que ele mesmo disse a Nicodemos em João 3: Quem nasce uma vez, morre duas, quem nasce duas, morre uma (releitura usada pela Aliança Bíblica do Brasil há certo tempo). Para não se envergonhar de e nem envergonhar a Jesus é preciso nascer de novo. 

Não tenho vergonha de Jesus, sobretudo, porque Ele escolheu dar o primeiro passo, me amando primeiro, não se envergonhando de mim. Mas como ele mesmo disse, se a gente se envergonhar dele ele também se envergonhará da gente diante do Pai; mas se o confessarmos diante dos homens, Ele também nos confessará perante seu Pai. Me envergonho, porém, da disfarçatez de um Pedro, que garatiu que o seguiria até o fim, mas no raiar do sol do medo, perigo e ultraje, negou-o não apenas uma, mas três vezes. Ruborizo diante da religiosa hipocrisia de quem grita, chora, se derrama com o nome de Jesus nos lábios em momentos de êxtase, mas que, no calor dos acontecimentos que requerem de nós posição, decisão e coragem, preferem o escombro sórdido do silêncio, da omissão e da covardia.  Por isso tenho insistido que precisamos urgentemente de uma teologia do saco roxo, que não se omita nem se envergonhe diante de sua inglória tarefa profética, e cuja preocupação principal não seja a de servir primáriamente a nenhum outro ser, senão a Deus. E suponho que Deus não se agrada de teólogo covarde e meia-boca, dividido entre a busca pela integridade e o desejo por adulação e popularidade.

Enfim (mas não finalmente), não me envergonho de Jesus, porque o Jesus a quem sirvo e por quem vivo não dá a mínima para o negócio da religião, ou para os louros da fama e da boa reputação. Ele não trocaria jamais a graça de ser chamado de “meu filho amado em quem tenho prazer” pela honra de ser profeta ou apóstolo das multidões. Ele não rechaçou as multidões, teve compaixão delas; mas rechaçou o cheiro de glória falsa que emana de sua empolgada aclamação e de seus elogios. Pois, profeta que é profeta, não pode se balizar pela boa, nem pela má fama, tampouco pode viver de amor ao próprio pescoço...  Quem, hoje, tem abraçado e abraçará o fardo desta vocação?

Jonathan

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Eclesiasticando

illuminated

A cada dia que passa tenho mais certeza de que manter a integridade - a coerência entre o que acreditamos, somos e vivemos - está acima de qualquer vantagem que essa vida debaixo do sol possa dar. Realmente não vale a pena ganhar o mundo todo perdendo a própria alma. Melhor é se contentar com um pequeno bocado e dormir em paz do que se fartar (de poder, prestígio, bens, etc.) - passando como trator sobre a honra e a dignidade alheias - e viver num pesadelo.

Portanto, não desperdice sua vida tentando controlar, prever ou prevalecer se tiver que desistir do principal, que é simplesmente viver: intensamente, generosamente e em paz, com gratidão a Deus e a vida, dando valor primário às pessoas as quais e com as quais se ama e se aprende a viver e amadurecer. "Carpe diem", amigos, mas com a consciência de que quase tudo nessa vida "é vaidade e correr atrás do vento"...

Jonathan - em livre parceria com O Pregador

(Imagem: Iluminated, de Vincent Van Gogh)

terça-feira, 5 de junho de 2012

O rosto poético da Teologia da Libertação



Todos os seres humanos nascem com uma vocação em comum: a vocação para a liberdade. Alguns entendem (ou simplesmente vivem, sem entender) que é possível realizar esta vocação em cativeiros. Outros, porém, muito cedo acordam para uma realidade mais ampla, complexa e difícil, de que esta vocação só pode ser concretizada à medida que o ser que a vive se indispõe contra os muitos condicionamentos a que está sujeito, se colocando como antítese de toda forma de cativeiro. Rubem Alves é um desses homens que, em nome de uma visão de liberdade, se rebelou contra os sistemas de clausura, seja do pensamento, da ação, da escolha e da vida humanas. 

Mas, para entender quem é Rubem Alves, talvez seja melhor começar por quem ele foi, mas não considera mais ser. 

Rubem Alves foi um militante protestante contra o que chamou de “protestantismo de reta doutrina” em busca do “princípio protestante”, que aponta para um protestantismo que um dia protestou, mas que se viu perdido em suas expressões teológicas, confessionais e eclesiásticas. Queria de volta um protestantismo do canto, pois dizia que “as pessoas comuns cantaram a Reforma antes de entendê-la”. Afirmava ter se tornado protestante por seu gosto pela diferença. Deixou de ser protestante quando nele não enxergava mais nem o canto, que “dá asas aos pés”, nem o gosto pela diferença. Foi também pastor presbiteriano, e teólogo. Inspirou-se no exemplo de Albert Schweitzer, que conseguia simultaneamente ser teólogo, organista, médico, e ainda ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Em tempos de ditadura, foi denunciado e perseguido pela própria Igreja Presbiteriana do Brasil em que servia, por causa de suas ideias consideradas liberais e subversivas demais. Teve que sair pela porta dos fundos, lotado entre os “hereges”. Para além da teologia, navegou pelos mares da filosofia, da literatura, da educação e da psiquiatria, cruzando com proficiência as fronteiras do saber, da escrita e do ensino. Por isso é respeitado muito mais fora do que dentro do apequenado universo teológico brasileiro.

Atualmente, Rubem Alves se considera um “teólogo livre e com alegria”, educador não-ortodoxo, amante de poesia e literatura. Os golpes duros que recebeu o conduziram a estes campos; respondeu aos inquisidores e seus tribunais com poesia e bom-humor. Há muito não se considera mais teólogo, nem religioso. Já havia dado indícios desse caminho nos idos de 1960-70, quando publicou ensaios como “O vento sopra onde quer... confissões de um protestante obstinado”, onde dizia: “Quem quer que se atreva a liquidar os dissidentes está possuído da ilusão de ser o detentor do monopólio divino e sucumbe à tentação e à crueldade da espada – eclesial ou secular, não importa”.  Um de seus últimos suspiros na esfera acadêmica da teologia se deu através de sua tese de doutorado em Princeton: “Towards a Theology of Liberation Corpus”, publicada primeiramente em inglês com o título “Theology of Human Hope” (1969), e depois em português já com título semelhante ao da obra em análise: “Por uma teologia da libertação” (relançada pela Fonte Editorial em 2012). Na ocasião desta obra, Alves já não era pastor, abraçava com avidez tanto o humanismo como o liberalismo, e dava início a uma linguagem que se popularizou, pela via do realismo, mais em seio católico (embora seja muito consumida por leitores-pesquisadores protestantes): a teologia da libertação.

Ao ler este livro (em seus seis capítulos), é possível, especialmente para um assíduo freqüentador das obras de teólogos da libertação, notar que a filiação de Alves com esta teologia, que amadureceu e cresceu especialmente entre teólogos católicos, é fundamentalmente nomenclatural. Esta pode ser uma tese básica sobre este livro. O propósito que o livro advoga, por sua vez, é o da entrada definitiva da teologia no campo do humano e do político, deixando para trás a linguagem da metafísica e as metanarrativas, buscando adotar uma nova linguagem, que deve ser expressão de sua condição histórica e relativa. 

A título de apreciação crítica mais pontual sobre esta obra, gostaria de falar apenas sobre uma importante contribuição e uma evidente lacuna que nela observo. 

Primeiro, ela contribui, especialmente para os estudiosos do tema da teologia da libertação e da temática da liberdade, a perceber as interpolações que se pode observar entre a linguagem (os termos, conceitos, ideias) utilizada por Alves e aquela que foi apropriada, recriada ou re-significada por teólogos da libertação na América Latina como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Juan Luís Segundo e outros em suas abordagens. A concepção de um sujeito da história, artífice de seu próprio destino, que emerge a partir de uma nova consciência e com uma nova linguagem, de libertação, me parece ser a mais significativa. A concepção de que, no caminho rumo à liberdade, existe sempre a possibilidade e o risco de se perder, mas nem por isso devemos abandoná-lo, uma vez que é da natureza da liberdade o arriscar, é outra ideia importante que este livro aponta, como subsídio a uma compreensão teológica da liberdade.

Segundo, ainda falando sobre esse sujeito da história, postulado por Alves, é evidente a lacuna que este autor não preenche – e que os teólogos da libertação o fazem com mais propriedade – que é a de conferir um rosto a este sujeito. Qual é a sua cor, nacionalidade, classe, contexto, particularidade, causa ou necessidade concreta? Simplesmente não há resposta para nada disso. Assim, embora Rubem Alves, ou seu livro (como uma espécie de canto do cisne), possa ser considerado um referencial teórico ou inspirador da linguagem da libertação, lhe falta o que é fundamental nas teologias da libertação posteriores a ele mesmo: o elemento contextual e da eficácia, sobre a qual ele fala apenas de passagem. A crítica, portanto, é que, no fim das contas, o que Alves parece defender é, paradoxalmente, uma concretude abstrata, um sujeito sem rosto e uma libertação sem causas históricas, fruto talvez de sua veia mais poética que propriamente realista ou comprometida visceralmente com causas históricas. 

Por fim, e a despeito da crítica acima, vale dizer que a leitura desta obra é indispensável ao público acadêmico de teologia especialmente; também aos estudiosos interessados nas raízes histórico-teológicas do movimento da teologia da libertação, e aos estudantes pesquisadores, curiosos ou apaixonados pelo tema da liberdade e as inúmeras facetas que ele pode assumir em uma análise de cunho teológico. 


[Imagem: Extraída do site da Assembléia de Deus Betesda].
Jonathan