terça-feira, 11 de novembro de 2014

Sombras do humano

human shadows

Com que é mais complexo lidar: com as próprias sombras (lado sombrio) ou com as de outro? De ímpeto eu diria que as duas. É difícil lidar com o ser humano em si. É difícil lidar com pessoas "difíceis", isto é, que dominam a arte de complicar ainda mais a vida - e que ainda acham que podem (pior, têm o "dever") de dizer como os outros têm que ser/viver. É mais difícil ainda quando nas sombras do outro, vemos as nossas sendo inexoravelmente projetadas. Por isso, pensando bem, é mais difícil lidar com as próprias sombras. Sobretudo porque delas eu não tenho como me livrar; sublimar talvez, mas não arrancar, apagar, não ver.

Sombras: tais como o ódio contido, o orgulho ferido, a chaga aberta, o desejo proibido, a inveja disfarçada, a angústia, o medo, a opressão, a fragilidade, o narcisismo, e assim por diante. A lista pode ser grande. Cada um sabe mais ou menos onde o calo aperta - e como aperta! Nessas horas me dou conta que encarar o outro é o de menos. O golpe mais duro, o mais avassalador, é ter que encarar a si. Aqueles/as que, mesmo relutando, o fazem, porque sabem que, já que não tem pra onde correr, o melhor é não correr, estão a beira de cometer a maior transgressão de todas: a transgressão de si. Automaticamente assumem a "coragem de ser" (Tillich), abraçam o "sentimento trágico da vida" (Unamuno), começam a trilhar o caminho da "aceitação jubilosa de si" (Rosset), sem, porém, ter de se resignar ao adágio do "sou assim e pronto".

Ninguém é irresistivelmente uma coisa, de modo a se tornar cativo dela, a menos que ele/a mesmo/a assim o queira. Aceitação jubilosa não é aceitação passiva, é aceitação corajosa e consciente, ponto essencial para toda mudança possível. "Possível", eu digo, e não forçosa, obrigatória, porque ninguém é obrigado a mudar, e porque nem sempre a mudança que se quer é atingível, exequível, plausível. Então, fico com a "possível" mesmo. E não venha me falar do "impossível", que é da ordem do sobrenatural, e não do humano; do extraordinário, e não do ordinário. De tanto pensar no extraordinário, nos esquecemos do ordinário - por isso neste breve devaneio o que me interessa é o segundo, não o primeiro, goste você, ortodoxo/a de plantão, ou não. Até porque como se diz na frase atribuída a Aby Warburg, "Deus está no particular", nos detalhes, no singular, nas coisas ordinárias do dia a dia. Se não aprendo a vê-lo ali, a celebrá-lo ali, a encontrá-lo na próxima esquina, como bem disse Elienai Cabral Junior em seu Salvos da perfeição, de que vale encontrá-lo no templo? Ele me acompanha também nas sombras, e diferentemente de muitos dos que se dizem "meus amigos", não tem ojeriza delas, mas lança luz no meio das trevas.

O que fazer com as sombras? Como não se perder no meio delas? Existe um modo de dissipá-las? Não sei. Só sei que tenho que com-viver. Desisti de encontrar respostas e saídas pra tudo, e isso já faz um tempo; não tenho que fingir ser algo que não sou; não preciso encontrar "o lado positivo" em tudo, e por isso me vejo fazendo um exercício tremendamente impopular: estou aqui para falar das sombras, e não de seu suposto "remédio". Quem disse que pra tudo há remédio? E o que fazer com o que não se pode remediar? Que fazer com o trágico, o fortuito, o trauma e o inesperado da vida? Desculpem-me, hoje não tenho palavras de consolo para lançar em meio às sombras; entendo que a luz melhor reluz quando corajosamente resolvo ter com elas, e não quando, num ato desesperado e artificial, tento a todo custo sair. Há esperança? Sim, se estamos dispostos, como o patriarca Abraão o fez, a "esperar contra a esperança", a semeá-la em terra seca, e a não desistir da luta jamais, mesmo desejando muito desistir, jogar a toalha, chutar o balde. Pois quem desistiu, não tem mais histórias pra contar, nem das sombras ou da luz pode falar. E, sinceramente, prefiro as sombras do que o nada.

Jonathan

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O voto na tragicômica disputa entre ‘Deus’ e o ‘Diabo’

PT-x-PSDB-por-Zé

O maniqueísmo (divisão da realidade/mundo entre bem e mal) é gritante na atual campanha eleitoral, especialmente entre correligionários da direita e cidadãos apartidários facilmente cooptados pela corrente de rebanho “anti-PT”, que pintam Dilma como sendo “o mal”, “o Diabo de vermelho”, enquanto Aécio é o “bom moço”, político competente e “do bem”. Quem desconhece a história da redemocratização brasileira desde os anos 1980, pode pensar que isso, além de normal (isto é, da norma), é atual. Mas muitos sabem que esse maniqueísmo infundado já está entre nós há pelo menos 25 anos, sendo apenas (e acriticamente) revisitado e repaginado a cada nova eleição. Que fique bem claro: meu ponto aqui não reside no fato de alguém votar em Aécio ao invés de Dilma, afinal estamos em uma democracia em que todos, em tese, têm (ou deveriam ter) a liberdade e o direito de expressar sua opção; a questão está no corpo de “argumentos” usados para isso.

Desse modo, longe de mim querer aliciar alguém em favor de minha posição; apenas analiso um ângulo dentro deste complexo quadro – no qual, é óbvio, também acharemos ataques pessoais e (provavelmente falsas) teorias da conspiração sendo, lamentavelmente, lançados (como bala de canhão) de ambos os “lados”. Se isso, por um lado, “faz parte” da democracia, por outro também a enfraquece por não contribuir ao bom debate de ideias, ao diálogo e ao respeito às diferenças.

‘Mea culpas’ afora, meu espanto aqui está no uso desenfreado do maniqueísmo, como se, entre seres humanos pudesse haver coisas tais como “o puro bem” ou “o puro mal” em lados opostos e estanques. Braulia Ribeiro (a quem respeito e admiro), por exemplo, ao comentar sobre a aliança Aécio-Marina, disse que “Marina sabe aonde está o bem e o mal nesta eleição, que não é ao contrário do que muitos pensam uma eleição ente duas forças iguais”. E ainda finalizou reiterando que: “Existe bem e mal nesta eleição sim. Marina e Aécio estão do lado do bem”. (Ver: https://www.facebook.com/braulia.ribeiro - postagem de 19/10/2014).

Deixo aos analistas políticos o papel de explicar, muito melhor que eu, como isso pode ser uma simplificação excessiva da atual disputa eleitoral. Restrinjo-me a falar sobre o quanto isso é, sim, uma excessiva simplificação da condição humana. Aqui alguém pode questionar sobre a razão de se falar (filosoficamente) da condição humana numa discussão política. E a razão é óbvia: a política e suas instituições, e o político e suas lutas, são reféns e ao mesmo tempo cúmplices, num certo sentido, da condição humana, isto é, do que nos constitui como seres humanos. Por razões cósmicas, somos dotados de potencialidades: tanto de discernir bem e mal, como de agir em prol do que identificamos como sendo bem ou mal. Essas potencialidades convivem e crescem juntas numa relação paradoxal (não paradigmática e nem dualista). Logo, não há ninguém que seja tão justo, que não falhe, nem tão injusto, que incapaz de acertar em alguma coisa.

Assim, o maniqueísmo é, a meu ver, um corpo estranho na órbita atual dos seres, das situações, dos pensamentos e do saber da complexidade. Em outras palavras, o complexo não pode ser reduzido ou analisado sob pontos de vista unilaterais ou simplistas. E já não podemos falar em “bem” ou “mal” em estado puro nem em relação aos candidatos e seus partidos, nem em relação a quaisquer instituições humanas. Todo mundo está, mais ou menos, sujo de lama (como se pode ver na charge acima). Em que base, portanto, podemos nos posicionar? Para além das paixões ideológicas ou de qualquer onda coletiva, penso eu que podemos fazer diferença com nosso voto através de um discernimento claro a respeito de qual história, proposta, plano, projeto ou conduta políticas/os, melhor se aproxima (dentro de suas contingências próprias) de ideais e aspirações, sempre relativos, que envolvam, mais que interesses corporativos, de classe, de grupos e de guetos sociais ou econômicos, as necessidades mais amplas e variadas de toda a nação, especialmente os mais pobres – afinal, como no ditado, “a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco”.

Isto pode parecer ingênuo, mas eu diria que toda utopia necessita, para seus fins, de um pouco de ingenuidade, do mesmo modo que todo povo carece, para vencer o lugar-comum, os dualismos, e a opressão da realidade, de utopias que sejam suas. E não poderemos atingir isso enquanto continuarmos nos portando com indiferença no dia a dia, e/ou como torcedores fanáticos num estádio de futebol a cada nova eleição, não pensando, apenas gritando. Discernir (mais uma vez) é preciso!

Jonathan

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Sapato velho

Pair of shoes, 1886

"Pair of Shoes", de Vincent van Gogh, 1886. Um dos meus prediletos dele. Mais do que o retrato de um sapato velho e surrado, ela é a representação da estrada - 'só esse sapato sabe por onde caminhei e todos os conflitos que enfrentei' - e do estado de alma de seu dono, como também do próprio pintor. Entre 1886-1888, durante seu tempo em Paris, Van Gogh pintou vários quadros de sapatos. Em 1888, escrevendo ao seu irmão, Theo, ele revelou um pouco do que havia por trás de sua arte-vida àquela altura:

"Às vezes me sinto muito fraco para lutar contra as circunstâncias existentes, e eu deveria ser mais rico, inteligente e jovem para vencê-las. Felizmente para mim, eu não mais anseio pela vitória, e tudo o que eu busco é que a pintura seja um meio de tornar a vida mais suportável" [tradução minha, veja mais em: http://blog.vangoghgallery.com/].

Henri Nouwen inspirou-se muito em seu conterrâneo holandês em seus escritos sobre espiritualidade. Precisamente porque Van Gogh, além de um artista brilhante (embora não reconhecido em seu tempo), foi homem sensível, sofrido, humano e que nunca escondeu suas sombras nem seu lado trágico de ninguém; pelo contrário, elas sempre estiveram lá, bem expostas em sua arte e em sua própria história. Isso para mim tem um nome: integridade, peça rara em nossos dias.

Van Gogh lutou muito, mas não suportou o peso da batalha. Suicidou-se em 29 de julho de 1890, aos 37 anos. Sofria de uma doença psíquica grave, semelhante ao transtorno bipolar do humor, hoje bastante conhecido. Não tenho o direito de julgá-lo, nem a ninguém em condições semelhantes. A vida é um mistério insondável. Cada um sabe bem dos fardos, dores e limitações que carrega (mesmo que prefira sublimar). Por isso, nela não cabem respostas fáceis, nem soluções paliativas. A vida foi feita pra ser vivida, e só há uma para se viver; seus paradoxos existem para ser encarados; sua finitude deve ser jubilosamente assumida, e não negada. A realidade do conselho de Paulo, o apóstolo, deve continuar a saltar aos olhos de quem sabe, mesmo que minimamente, de si: aquele que pensa estar de pé, cuide para que não caia.

Cuidemos de nós, cuidemos das pessoas, sabendo que a iminência da queda é proporcional a iminência da vida.

Jonathan

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O ser no limiar entre a fé e a incredulidade

UpsideTime_BrianMatiash

Às vezes tenho a impressão de que a religião, que, a meu ver, deveria ser a amiga número 1 da dúvida, tornou-se sua pior e mais cruel inimiga. Porque a religião lida diretamente com a fé das pessoas, e, embora nem sempre pertencer a uma religião seja garantia de uma fé viva (muitas vezes é exatamente o oposto), em tese, ela se nutre e cresce a partir da fé pessoal e coletiva. Especialmente em contextos fundamentalistas, em que se exige uma responsividade segura do fiel em relação à espécie de doutrina na qual professa crer, e em que, como contrapartida, oferece-se a revelação da verdade bíblica e uma promessa ao fiel de que, nesta vida ou pelo menos na eternidade, todo o seu sofrimento será eliminado, a fé aparece como arquiinimiga da dúvida, e duvidar passa a ser sinônimo de blasfemar, apostatar da fé.

Peter Rollins em seu livro Insurrection (2011), tem como foco de análise a questão da dúvida. No capítulo 2, ele fala sobre a experiência dos líderes na igreja com a dúvida. Numa situação ideal, para que como igreja participemos da crucificação, ele defende que precisamos de líderes que experienciem pública e abertamente “a dúvida, a incerteza e o profundo mistério, líderes que as vejam como parte da fé cristã e importante para o contínuo desenvolvimento de uma espiritualidade sadia e propriamente cristã” (p. 65). Concordo com Rollins quando ele também observa que não é que não existam líderes que experimentem estas coisas; o problema reside em encontrar líderes que admitam experimentá-las – ainda que, secretamente, muitas vezes, enfrentem momentos de incredulidade, ou pior: enquanto exteriormente lutam para manter uma imagem austera de fé, interiormente já deixaram de acreditar nas coisas que pregam. Nas palavras do autor:

Todos sabem que a maioria dos pastores tem duvida e, de tempos em tempos, experimenta um sentimento de ausência divina, e sabe-se que normalmente é bem mais que isso. Também é evidente que eles frequentemente sentem-se impedidos de expressar isso por meios públicos quaisquer – exceto em casos em que adotam uma linha segura de afirmação de que Deus é grande o bastante para conter a dúvida (...). Nas raras ocasiões em que o pastor se levanta e declara abraçar o desconhecido, uma crise entre os congregantes pode ocorrer. Não porque a congregação agora duvida, mas porque a fé do pastor gerou uma barreira psicológica protetora que conteve a dúvida deles. (...) Apenas quando o pastor bane a dúvida ou é substituído por alguém que possa ocupar o papel crente-em-nome-de-nós, a igreja pode outra vez agir como um cobertor de segurança metafísica, prevenindo-nos de experimentar a ansiedade de nossa existência (p. 66).

Esse quadro é muito triste e adoecedor para ambas as partes, pastor e congregação. No entanto, quando lemos as Escrituras de modo sério e abrangente, e não simplesmente procurando justificativas furtivas em versículos aleatórios, percebe-se que o oposto pode ser dito e feito em relação à dúvida. A maior parte dos chamados “heróis da fé” teve dúvidas, e, em algum momento, cometeu deslizes tomando “os pés pelas mãos”. A lista de Hebreus 11 é emblemática. Abraão, que há muito é referendado como “pai da fé”, por exemplo, em Hebreus aparece como aquele que, pela fé, deixou sua terra e sua parentela para mudar-se ao lugar destinado por Deus e creu, mesmo diante de sua escassa vitalidade e da esterilidade de Sara, na promessa de que sua descendência seria tão numerosa quanto às estrelas do céu e incontável como a areia do mar (cf. Hb 11.11-12). No entanto, conhecemos a estória de Abraão e Sara, facilmente nos recordamos que Abraão, mesmo tendo crido na promessa, não titubeou quando Sara, sentindo-se culpada por ser estéril e não ter-lhe dado filhos, ofereceu sua escrava, Hagar, para que seu marido a possuísse e a engravidasse, e desta união nasceu Ismael, filho da descrença de Abraão, por assim dizer (Gn 16). Isso sem falar que Sara riu da ironia da promessa original, externando sua dúvida: “Poderei realmente dar à luz, agora que sou idosa”? (Gn 18.13), e depois ainda mentiu sobre ter rido.

Com estórias como a de Abraão e Sara, aprendo que promessas não são garantias divinas para a manutenção da fé, e sim fruto do relacionamento entre o ser humano e Deus gerado e gerido em fé. Porém, se tratamos as promessas divinas como um elemento gregário, isto é, como sendo a fonte originária do ato de caminhar na e pela fé, logo elas se tornarão não um telos pelo qual a fé se norteia, mas objetos de veneração e obsessão, ou mesmo moedas de troca que justificam a fé. Abraão não creu na promessa pela promessa em si, mas pela fidelidade do Senhor, que é quem promete. Logo, a vida pela fé não encontra sua razão de ser nas promessas, mas na pessoa do próprio Deus.

Mas não percamos nosso foco aqui, que é a questão da dúvida. Vimos que Abraão e Sara duvidaram, mesmo estando na fé. Se for verdade, como se diz em Hebreus, que “sem fé é impossível agradar a Deus, pois quem dele se aproxima precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam” (11.6), também é verdade, conforme o mesmo texto, que esta fé “é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (11.1); ou, na tradução A Mensagem (na versão em inglês), a fé é o firme fundamento sob o qual estão todas as coisas que fazem a vida valer à pena, e “nosso controle sobre o que não podemos ver”. Que controle se pode ter sobre o que não se pode ver, ou sobre o que não é materializável? É claro que aqui a linguagem é paradoxal. O que o autor de Hebreus está dizendo, a meu ver, é que a fé é a única e real certeza que subsiste em meios às incertezas da vida. Posso estar convicto de minha fé mesmo quando tudo, até mesmo a própria fé, parece estremecer. A fé faz-se chão onde já não se pode encontrar mais chão; é o que dá sentido a um caminhar numa estrada perdida e sem rumos definidos. Mas este sustento, esteio, chão e certeza residem não numa suposta força que emana de nós mesmos, ela misteriosamente é suprida pelo Espírito de Deus.

Dessa forma é que retornamos ao paradoxo, e por isso digo que a fé deve aprender a conviver com a dúvida: porque ao mesmo tempo em que as dúvidas e questionamentos, e a angústia daí proveniente, podem-nos fazer passar pelo vale do ceticismo e das incertezas, são elas que nos movem outra vez em direção a Deus, nos levam a interpelá-lo em oração, a escancarar diante dele nosso eu ferido e fragilizado; elas nos conduzem ao lugar em que a expressão de súplica, lamento e confiança podem bailar juntas numa única e expressiva dança que é a dança da vida, e a sair dali com uma fé mais madura. Por isso é que, demasiadamente humano, identifico-me com o salmista, que orou dizendo: “Até quando, Senhor? Para sempre te esquecerás de mim? Até quando esconderás de mim o teu rosto? Até quando terei inquietações e tristeza no coração dia após dia? Até quando o meu inimigo triunfará sobre mim?”, e, na mesma oração, declarou: “Eu, porém, confio em teu amor; o meu coração exulta em tua salvação” (Sl 13.1-2,5). Também me uno ao pai do menino possuído por um espírito que o impedia de falar, que, diante da exclamação de Jesus de que “tudo é possível ao que crê”, respondeu: “Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade” (Mc 9.23,24).

Fé e incredulidade são como o joio e o trigo: no mesmo lugar em que uma brota, há a possibilidade da outra crescer; e se tentarmos extirpar uma em detrimento da outra, a incredulidade em detrimento da fé, se tentarmos separá-las abruptamente porque em nossa teologia é inconcebível um espaço em que ambas possam juntas gravitar, pode ser que joguemos fora também o precioso junto com o que entendemos ser vil, e a fé seja cortada antes mesmo que seu fruto cresça, amadureça e apareça. Como afirma Peter Rollins em tom de celebração: “Acreditar é humano; duvidar, divino”.

Jonathan

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Fogueira das vaidades: um escrito impertinente

tudo-e-vaidade

Andam dizendo, e não é de hoje, que as redes sociais em geral, e especialmente o Facebook, são como “fogueiras de vaidades”. Não preciso discutir muito isso, pois é óbvio a qualquer observador/a um pouco mais atento/a. No entanto, na mesma medida em que precisamos ser recordados de certas obviedades, também precisamos aprender a desconfiar delas. A crítica é válida, mas deixa muitas perguntas honestas tais como: tem saída? É possível entrar nessa fogueira sem sair chamuscado? Quem é capaz de afirmar que sua auto-exposição nas redes, por mais contida que seja, não é fruto de vaidade? É menos vaidosa a pessoa que decide ficar de fora das redes apenas para dizer que não se rende “a esse tipo de modernidade” ou ao “universo virtual”, pois prefere as “relações reais”? Dizemos que “fulana é vaidosa”, “beltrano é narcisista”, “ciclana vive de ‘selfie’ em ‘selfie”, mas não percebemos nossa própria vaidade velada por trás até mesmo desse tipo de crítica.

Dias atrás fui “pego” (busted!) por um amigo enquanto criticava um religioso da cidade por aceitar o título de “cidadão honorário” da Câmara de Vereadores, dizendo a mim mesmo que profeta com honra não é uma coisa boa. Então esse amigo rebateu indagando: tudo bem, isso é um desses contrassensos cristãos que a gente vê todos os dias – esse camarada não é o primeiro, nem será o último –, mas será menos vaidoso/a aquele/a que porventura rejeita tal honraria, para depois contar às pessoas a respeito, que, por sua vez, dirão que ele é um autêntico crente e o aplaudirão por tal feito? Percebem a encruzilhada em que o “ser gente” e participar das coisas de gente nos coloca? De novo, há saída? Se há, certamente ela não é barata e nem fácil.

E mais, somos vaidosos até da manifestação da consciência de nossa própria vaidade e da de outras pessoas, pois, por temos a consciência ao nosso lado, fatalmente nos julgamos “mais nobres” que os outros, “espíritos livres”, como diria Nietzsche (também possuído por uma grande dose de vaidade). Como alguém, como ele, que julga ser um “espírito livre” pode ser livre? Livre de quê? Das obrigações sociais, talvez; da cobrança dos relacionamentos complicados, dos holofotes exigentes das corporações e instituições e das conhecidas opressões do “olho de Deus” expressas na religião, quem sabe. Mas de uma coisa, um simples fato da existência, esta pessoa não é livre: de si mesma. Ninguém é livre de si, e quanto mais arroga para si o fato de ser livre do devir e do dever de ser, mais escrava de si mesma ela se torna. Nunca houve expressão mais arguta e penetrante que do pregador de Eclesiastes: “Tudo é vaidade e correr atrás do vento”.

Sejamos honestos, todos gostamos e procuramos um público que nos adule, nos aplauda, reconheça e nos coloque para cima. Aturamos pouco as críticas duras, sinceras e verdadeiras. Não queremos conviver com quem é capaz de, num simples olhar, nos desmascarar. Precisamos de outra coisa, clamamos por apreciação, aceitação, controle. Nos derretemos facilmente com as curtidas, compartilhamentos e comentários que aqui e acolá pipocam em nossas “timelines”. Quem nunca escreveu nada pensando nisso? Quem nunca procurou algo polêmico, algo interessante, algo da moda, algo impactante e sensacional para compartilhar à espera de uma boa curtida? Será que somos tão bons, tão cândidos e tão originais para admitir que nada fazemos em prol de algo sem esperar nada em troca? E isso não é nenhuma demonização, é apenas uma “verdade sangrenta”.

No fim das contas, quem não se sabe ou não se vê assim, que atire a primeira pedra, pois minha vaidade está aqui, pronta pra “matar no peito” e sair jogando. Decidi cuidar de minha integridade, mesmo que isso me custe a tão valorizada reputação; não quero mais falar dos outros como se, na verdade, não estivesse olhando para o próprio espelho. Quanto mais reconheço que “nada do que é humano me é estranho”, que não há profanidade maior que a pachorra de a tudo declarar profano, mais próximo me vejo de Deus, da graça e de tudo o que é mais sagrado na vida.

Jonathan

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Perguntinhas despretensiosas…

Perguntinhas
Você já pensou o quanto de tempo gastamos buscando e esperando a aprovação alheia? Quantos de nossos esforços, alegrias, decepções, risos e lágrimas resultam das expectativas que colocamos sobre "o sim" ou "o não" alheio?

O quanto lutamos para sermos aceitos e, depois que somos, o que nos dispomos a fazer para manter viva a aceitação? Como sofremos quando alguém nos critica, difama ou deprecia, ou seja, como nos angustia essa tal de opinião que os outros têm da gente?

Quando foi que perdemos a "coragem de ser", sobre a qual falou Paul Tillich: de ser quem se é e de ser “como uma parte”, e de aceitar-se como se é mesmo sabendo da possibilidade de não ser aceito dessa forma? Será porque deixamos de ouvir a voz que nos chama de "filhos amados", ou porque sequer um dia a ouvimos e assim nos reconhecemos?

O que nos falta para que encontremos aquela liberdade interna, que nos liberta desse "eu" carente de aprovação externa, e que nos convida a manter acesa em nós a chama da integridade e o caminho para a autenticidade?

Como indaga o Teatro Mágico, pra onde foi a coragem do nosso coração? E como problematiza Jesus, de que vale ganhar o mundo inteiro e perder a própria alma? Ou (uma afirmação para variar) como diz Carlos Drummond, o mundo não vale o mundo, meu bem... ou será que vale?

Jonathan

quarta-feira, 9 de julho de 2014

O mistério revelado da vontade divina

Wind-God-Tree

Ensina-me a fazer a tua vontade, pois tu és o meu Deus; que o teu bondoso Espírito me conduza por terreno plano (Salmos 143:10).

O que é a vontade de Deus? Como conhecê-la? O que fazer para cumpri-la? Esse é um mistério que tem permeado a vida de pessoas ao longo de milênios. O jeito com que se trata esse assunto é o que gostaria de refletir aqui.

Não há dúvida de que, ao lermos as Escrituras, encontramos o princípio de que viver bem, com temor e dignamente significa dispor a vida para andar conforme a vontade do Senhor. Converter-se a Cristo, em parte, também é isto: permitir que nossa vontade saia cada vez mais de cena, a fim de dar lugar a uma vontade maior e soberana: a de Deus. O ponto para mim, porém, é: se temos consciência, quando buscamos a vontade de Deus, do que envolve esse “andar conforme”.

O salmo (143) de Davi, humano, honesto e orgânico, servirá como ponto de partida aqui.

Antes de tudo, trata-se de uma oração, de uma súplica. Normalmente, nós suplicamos com mais força quando sofremos. E é o que está acontecendo com Davi. Diante dos muitos conflitos que enfrenta, apela para a justiça e fidelidade divinas [v. 3]. Mostra-se muito angustiado e com o coração aflito, “em pânico” [v. 4].

Costumo dizer que a angústia não pode ser desprezada, pois é uma das avenidas que nos conduzem aos braços de amor de Deus. Mas nem sempre conseguimos lidar com ela. Sentimos como se a angústia fosse um peso, uma ferida aberta, uma faca cravada no peito da gente. E muitas vezes ela tem a ver com frustração, com medo, com sentimento de rejeição e abandono, e com as incertezas.

Então, apressados pra sair dessa logo, suplicamos pra que Deus se apresse a nos responder, a dar um rumo definitivo. Mas descobrimos que na vida não há rumos definitivos – nem a morte, biblicamente falando, é um rumo definitivo.

E o mais duro golpe aos apressados é ter que lidar com as indefinições, incertezas e dúvidas que fazem parte da vida de qualquer pessoa comum. Dessa forma, a “vontade de Deus” vai se tornando a fórmula religiosa para expiar tudo o que é indesejável, como também para alimentar o que se deseja. Daí brota as distorções, tais como:

Prega-se que precisamos estar no “centro da vontade de Deus”...

Que cada detalhe da vida não pode fugir do plano de Deus para nós...

Que a vontade de Deus é isso, e não pode ser aquilo; se desastres acontecem, foi “da vontade de Deus”; se o avião não saiu do aeroporto, era propósito de Deus, porque certamente ele cairia; se perdi um emprego, foi Deus quem quis, pois estava preparando um ainda melhor pra mim, e por aí vai... Vontade privatizada!

A moça ora para que Deus envie o homem segundo a Sua vontade para ela casar – no mundo todo existe só um. Estatisticamente, ela terá que orar muito, mas muito!

Jovens aderem a movimentos de santidade que afirmam que “esperar” (pelo amor, pelo casamento, etc.) é “a vontade de Deus” pra vida deles...

Será que a gente não para pra pensar no Deus monstrengo e esquizofrênico que vamos desenhando com todo esse besteirol teológico? Nos efeitos disso aos “pequeninos”?

Então, só pra contrariar, eu resolvi criar outro movimento: o “Eu escolhi ir à luta”. É um movimento de gente crente e temente, sim, mas que tem consciência que “não adianta olhar para o céu com muita fé e pouca luta” (Gabriel O Pensador). Que quer estimular uma liberdade responsável, o risco da decisão, a busca da vontade divina pelo discernimento.

Essa é, para mim, a chave do Salmo 143: quando, do desespero, Davi pede que o Senhor o ajude quando tiver que escolher o caminho a se andar [v. 8]; quando roga para que o “ensine a fazer sua vontade” [v. 10]. A vontade é de Deus, mas a escolha é nossa. E Deus só pode ensinar sua vontade a quem quer aprender, quem se lança na aventura de aprender, pois é vivendo [errando e acertando, sofrendo e mudando] que se aprende...

Por isso discernir é preciso! O salmista [119:27] também ora: “Faze-me discernir o propósito dos teus preceitos, então meditarei nas tuas maravilhas”. Na tradução A mensagem: “Ajuda-me a entender estas coisas de dentro pra fora”. A Palavra Divina!

Portanto, posso concluir que a vontade de Deus não se mostra instantaneamente; a vontade de Deus se experimenta e se pondera, pela renovação da mente [Rm 12.2]. Como eu entendo a vontade de Deus? Como um mistério revelado que só se entende e se experimenta na medida em que se caminha e em que se vai à luta.

O que eu quero dizer se traduz perfeitamente na música do Teatro Mágico, que diz:

Milagres acontecem quando a gente vai à luta!

Minha proposta aqui é muito simples: vamos à luta sem medo do que vamos encontrar, se derrota ou vitória, se sucesso ou fracasso. Pois Deus tem cuidado e cuidará de nós por onde formos; se nos desviarmos e, de coração, quisermos mudar a rota, Ele mesmo nos ajudará a colocar de novo nosso vagão nos trilhos de sua vontade. Que haja esperança!

Jonathan

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Seres do desconhecimento

All the same
O tempo e as variadas situações vão revelando o ser e a disposição de cada pessoa, escondidos muitas vezes por trás de uma redoma muito frágil de proteção. Não me esqueço da pergunta central do filme "Crash, no limite": Você acha que se conhece? No que a dor, o apuro, a pressão, a doença, a perda, o poder, o sexo, o dinheiro, o moralismo, a violência, a raiva, o descontrole, e as paixões como um todo podem nos transformar? A calmaria, o grito de paz (onde não há paz), a prosperidade e a felicidade não duram para sempre. E quando elas passam o que é que sobra da gente? Para onde vão nossa coragem e nossa integridade?

Não parece ser à toa que a máxima de Friedrich Nietzsche no prefácio à Genealogia da Moral continua sendo útil. Dizia ele que "nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos?".

Inocente, ignorante ou mal-intencionada (ao menos momentaneamente) é a pessoa que se lança precipitadamente na tentativa de se definir como isto ou aquilo; como "bom", "mal", "gentil", "covarde", "gênio", "incompetente", "boa esposa", "bom pai", "filho irrepreensível", "imprestável", "generoso", "político honesto", "cristão exemplar". Bem diz a sabedoria de Eclesiastes: "Todavia, não há um só justo na terra, ninguém que pratique o bem e nunca peque" (Ec 7.20). Quão tola não é a pretensão à indefectibilidade? Quão destrutiva não é a autocomiseração ou o sentimento de que ninguém te ama, de que você não presta para nada, de que tudo o que faz não serve, não dá certo; ou pior, de que sua índole é essencialmente má e nada pode ser feito sobre isso?

Como seres tão complexos como somos podemos nos deixar reduzir a tão pouco, e por tão pouco? Como podemos passar tanto tempo na casa da mentira e da ilusão, respirando o ar carregado da falsidade? Como podemos vender tão facilmente nossa integridade por causa de um nome, de uma posição, de uma ostentação, de uma reputação? Não é à toa que rimos alto e nos divertimos ao som de uma boa música, regada de companhias furtivas e muito álcool, num momento, e noutro, quase que paralelo, precisamos nos entupir de Lexotan e Rivotril pra sobreviver àquele dia e no dia seguinte começar tudo outra vez. De fato, mergulhamos nesse mar sem fim do desconhecimento, com grande risco de jamais nos encontrarmos.

Ser feliz, ter sucesso, prazer, bem-estar e qualidade de vida em tudo é bom demais, é o que todo mundo quer e isto não é mal em si. A questão está no preço que pagamos para entrar nesse universo. Quanto vale a felicidade? Qual é o preço do bem-estar? Se o alto custo for negar a própria vida, suas idiossincrasias e paradoxos; abandonar-se no desconhecimento, ignorando a aventura que é o aprender a viver pra saber viver bem e o autoconhecimento; se para isso o outro, o próximo tiver de se tornar, para mim, não mais que instrumento útil ou pedra de tropeço, preferirei e escolherei, conscientemente, não querer ser feliz – pelo menos não nesses moldes.

A consciência pode ser uma doença, como diz Miguel de Unamuno; mas entre a consciência que me aprofunda na realidade, e a feliz e consentida ignorância, que me aliena dela, ainda fico com a primeira. E me recuso a reduzir a mim e aos outros a rótulos fáceis, baratos e que desmancham no ar. Afinal, quem sabe o dia de amanhã? Quem conhece a própria reação ao próximo ato, à circunstância seguinte? Quem pode prefigurar o rosto que terá de enfrentar na próxima vez em que se vir diante de um espelho?

Jonathan

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Meia-Maratona de Floripa: uma experiência e tanto!

Meia de Floripa 2014

5:00 da manhã, o despertador toca, é hora de levantar e preparar-se pois o café seria servido às 5:30, sendo que às 6 o ônibus que nos levaria ao local da largada estaria à nossa espera. Chegamos e nos juntamos à multidão que, ansiosa, esperava a largada. Às 7:12 foi dada a largada; embora ciente da fadiga que me tomou nos últimos 3 dias, saí determinado a pelo menos repetir meu melhor tempo em 1/2 maratonas (1:39').

A paisagem de Floripa é simplesmente inspiradora, apesar do mau tempo. Contudo, no quarto quilômetro já percebo que alguma coisa não ia bem, minha energia estava abaixo do normal, mas ainda assim persisto no objetivo. No km 8 começo a encontrar os companheiros, que foram ficando para trás - "bom sinal", pensei, e continuei na mesma toada, não obstante as bolhas que já começam a incomodar. Ao atingir o 10° km, notei que meu tempo estava abaixo do comum, e que provavelmente a meta precisava ser revista. No km 14 confirmo a percepção, minha energia começa a cair bruscamente e já noto que o objetivo foi muito alto para meu estado corporal - água benta na pretensiosidade.

Prossigo, agora com mais cautela, nem imaginando o que me aguardava adiante. Passei o km 15 com 1:13', abaixo do que queria, mas ainda razoável dadas as circunstâncias que vinham se apresentando. No km 17 veio o golpe mais duro; já me vi quase sem energias e as pernas começaram a acusar fadiga, pesadas e sentindo as primeiras fisgadas. Naquele momento, as bolhas no pé já castigavam bastante. Um amigo corredor passa por mim e recebo o primeiro incentivo para prosseguir (precisaria bastante disso nos quatro últimos quilômetros). A subida no km 18 por pouco não foi fatal, pensei em parar ou andar, mas percebi que se o fizesse seria fim de prova para mim. Continuo, agora aos trancos e barrancos, correndo mais com a mente que com o corpo, já extenuado àquela altura, quando a chuva caía mais forte. No iPod começa a tocar 'Titanium' - "I'm bullet proof nothing to lose far away, far away... you shoot me down, but I won't fall, I'm titaniummmmmmm", e penso: se o corpo não é de titânio, a mente agora precisa ser.

No km 19 agradeço por estes anjos que nos entregam água ao longo do caminho, um pouco de hidratação e bora pro esforço final. No quilômetro final sou alcançado pelo companheiro Sergio Augusto, que me lembrou uma vez mais o sentido de companheirismo na vida e na corrida, primeiro dizendo: "vamos juntos nesse quilômetro final", e depois ajudando a me segurar junto com os irmãos Edison e Fouad Salomão, quando, com hipoglicemia, quase caí logo depois da chegada. Nunca se é tão feliz na corrida se não temos amigos. Obrigado, meus brothers! Finalizei literalmente acabado e sem forças, mas tremendamente emocionado pela superação.

Sim, a corrida me ensina muito sobre a vida e sobre mim mesmo. Nesta prova fui lembrado de que a fraqueza e o fracasso são sinais de humanidade, bem como a coragem de prosseguir apesar das limitações também é, e que a gente pode aprender mais com elas que com a própria vitória. Obviamente não terminei no tempo esperado, mas ganhei muito pela experiência ímpar, pela superação de limites e pela chance de dar e receber solidariedade e calor humano. No fundo a vida e a corrida só são completas através do encontro com o outro, o diferente, que se faz irmão e irmã nas estradas sinuosas da vida. No fim das contas, é muito bom também poder aprender com as experiências dos outros e se regozijar em suas vitórias. Parabéns a todos/as que aguerridamente terminaram essa prova. Agradeço ao Deus de toda a terra, de vivos e até de mortos por mais este tempo de surpresas e oportunidades. E rogo que eu possa correr pro resto da vida, pois correr é viver, e viver é bom demais.

Jonathan

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Deus continua fora do acampamento

Caos Urbano - por Glauber Shimabukuro

“Assim, Jesus sofreu fora das portas da cidade, para santificar o povo por meio do seu sangue” [Hebreus 13.12].

Ainda me lembro daquele slogan de campanha publicitária, que dizia "A vida é lá fora" [Life is out there]. Quando o vi pela primeira vez, confesso que fiquei pensando sobre o quão parcial essa declaração é. Quero dizer, a vida não é apenas pública – o que acontece lá fora – mas ela é muito privada – o que se passa dentro dos recintos, dos abrigos, das casas, dos acampamentos. Assim, uma vida que fosse apenas lá fora, talvez fosse muito para nós, afinal, a gente tem que viver lá fora, mas com a certeza de que temos um refúgio seguro e aconchegante no fim de cada santo dia.

Por outro lado, a ideia de que "a vida é lá fora" é um imperativo, um convite, para dizer que há muito mais para se ver, viver e experimentar além de nosso mundinho particular e privado. Assim é a vida para muita gente, uma dinâmica entre a reserva e a exploração, entre a reclusão e a dispersão.

Quando olho para Jesus, porém, lembro-me que sua vida, mesmo a privada, se deu fora dos portões. Ele não tinha morada própria, nem onde reclinar a cabeça. Ele vivia e peregrinava, de cidade em cidade, ao relento. Dependia, assim, da graça do Pai e dos favores das pessoas de bem. Sua vida sempre foi entrega, mais que recebimento; sua missão vinha dos céus, do Pai, mas seu palco era o mundo. Da Galiléia a Jerusalém, de Jerusalém a Samaria, até os confins da terra. Portanto, para Jesus, a vida era (e continua sendo) lá fora, no espaço em que se plasmam os dramas individuais com os coletivos, sem que, por isso, se perca de vista o particular, o caso a caso, a singularidade das pessoas e dos acontecimentos. A vida se dá lá fora, mas se dá de um jeito muito pobre se o olhar for duro e técnico, e não sensível e humano, como o de Jesus.

O que significa dizer que Jesus “sofreu fora da porta”? Em Hebreus, isso implica em pensar que esse mundo que se vive e que se vê “de dentro” (da sinagoga, do tabernáculo, do templo ou do acampamento) não era primordialmente o mundo de Jesus, nem é o de Deus. Jesus viveu fora da porta, ofereceu boas notícias (evangelho) ao mundo, e, exatamente pela natureza pública de seus atos, particulares ou coletivos, é que ele foi perseguido, torturado e morto fora dos portões, num ato coletivo e público de escárnio. A cruz é o símbolo desse abuso do mundo em relação a Jesus. A morte foi uma cerimônia pública; a ressurreição, por sua vez, não. Ela não foi para causar estrondo, nem provocar histeria ou catarse coletivas; ela se manifestou no secreto apenas àqueles/as que, pela fé e pelo testemunho prático, deveriam anunciar ao mundo que Ele ressurgiu, que a vida vence a morte, e que aqui não é o fim do “Fim”.

Por isso a igreja, que se chama de Jesus Cristo, deve viver também nessa dinâmica da dispersão e da inserção no mundo, de modo que, mesmo quando experimenta a reclusão, esta precisa ser uma reclusão aberta, convidativa, solidária, amorosa, calorosa, demasiadamente humana. Essa é a igreja que vive a anunciar a presença de Deus na vida humana e terrena, fora dos acampamentos, habitando em meio do caos do mundo, não para dissolvê-lo, mas para conferir um sentido à existência que há nele; não para julgá-lo, mas para reconciliar-se com ele. O convite é, portanto, para que saiamos do acampamento, onde a ação e Verbo de Deus estão, sem reivindicar privilégios, mas partilhando do insulto, do ultraje e do abuso de Jesus (Hb 12.13), tendo o mundo como arena, mas não como cidade permanente. E, enquanto buscamos a que há de vir, abraçamos a vida na que aqui vivemos na esperança de que aquela eterna cidade, possa ser vista cada vez mais no meio desta, onde a vida acontece, onde somos vocacionados a ser gente.

Jonathan

[Ilustração: “Caos urbano”, por Glauber Shimabukuro].

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Sobre o ato religioso de “passar o bastão”

Auto-coroação - napoleon.org

Recentemente fomos “surpreendidos” por um ato simbólico de um movimento conhecido no cenário gospel brasileiro, em que um grupo de líderes mais experientes foi convidado a fazer uma “transferência de gerações” (não me perguntem o que é isso), em que se passava uma unção ou missão especial para uma geração intermediária, representada por dois irmãos, que por sua vez fizeram a mesma transferência para uma geração mais jovem, numa algazarra típica desses encontros. Então a dirigente virou-se para a plateia dizendo que todos ali faziam parte daquilo, que deveriam sentir-se representados pelos que ocupavam o proscênio. A nova geração, assim, tem a responsabilidade de assumir a tarefa outorgada simbolicamente pela anterior. O interessante é que nenhuma reflexão mais profunda sobre a natureza desta “missão”, para além daquele frenesi, foi endereçada, e imagino que aqueles jovens tenham saído cheios de adrenalina gospel, mas com bem pouca noção do que fazer com aquilo na dispersão da vida cotidiana.

Trago este caso não para repetir críticas clichês e batidas aos envolvidos em si, mas porque isso me faz refletir sobre a natureza dinástica do que chamamos de “ministérios” na igreja contemporânea, à medida que colecionamos cerimonialismos honrosos, como o de jubilar líderes que “passam o bastão” para gerações de líderes vindouros, encarregados de dar continuidade ao que a geração anterior construiu. E fico pensando quando vejo essas coisas se não nos damos conta do quão esquisito (para dizer o mínimo) isso é do ponto de vista do evangelho e do reino de Deus. Jesus não passou cetro nenhum, mas nos chamou a carregar a cruz e, no fim, indagou-nos se seríamos capazes de beber do mesmo cálice que ele beberia, mesmo pedindo ao Pai que o afastasse. Assim, na medida em que o bastão está em evidência, o cálice se afasta.

Tenho a impressão de que estamos transformando um reino feito de amigos que cooperam junto com o rei, por meio de seu Espírito, por sua implantação, em monarquias religiosas privativas em que o que impera é a lógica da sucessão ao trono, típica luta por poder e não é de hoje. O cetro ou o bastão figuram, há milênios, como símbolos de poder e dominação em contextos monárquicos. O problema é que na simples passagem de bastão não se pode transferir integridade, bondade ou competência, apenas um “direito outorgado”. E sabe o que é pior? Não é ver isso nos movimentos apostólicos contemporâneos – isso já se espera deles –, mas é perceber que isso também acontece em movimentos que carregam a bandeira do reino e que, paradoxalmente, neste preciso momento devem estar perplexos em relação a casos como o aludido no começo. Quero dizer, de modo um pouco mais discreto ou tácito, repetem esse ato de passar o bastão com aqueles por eles considerados como representantes dignos da nova geração responsável por tocar o movimento.

Isso tudo é um contrassenso por pelo menos três razões: (1) Gerações mais velhas precisam tomar sobre si o encargo de discipular novas gerações, e não garantir e forjar uma entrega de bastão – como se aqueles devessem continuar do mesmo ponto em que estes saíram de cena; (2) Movimentos, diferentemente do que já conhecemos das instituições, não deveriam, através de alguns de seus participantes ou líderes, poder definir em uma agenda quem são ou não as pessoas que irão liderar ou mesmo dar continuidade ao “trabalho deles” – até porque o trabalho não é só deles, e segundo porque tem muita gente fazendo muita coisa boa fora dos holofotes sem se preocupar com suceder ou não suceder ninguém, mas que fazem o movimento girar; (3) Cada geração precisa ser artífice e sujeito de sua própria história, tendo a chance de decidir o que pode ser mantido e o que deve ser contraposto no trabalho de gerações anteriores, sem ter que prestar contas e nem “pedir a benção” a ninguém para poder respirar novos ares. Afinal, somos todos cooperadores do evangelho, como bem disse Paulo, e se alguém pensa ser algo mais que isso, já perdeu a noção do que é servir no reino. Como bem colocou o companheiro Lyndon de Araújo Santos, está na hora de dizer adeus à era dos avatares e de instaurar um novo processo que seja naturalmente abortivo de qualquer “avatarização” de quem quer que seja. Afinal, fazemos parte de um reino do “lava-pés”, onde existe apenas um rei, que, por sinal, fez-se servo de todos.

Jonathan

[Imagem: “A auto-coroação de Napoleão”, por David].

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Sobre a intelectualidade e seus (des)caminhos

Espelho de Narciso

Uma coisa que me intriga em “nosso” mundo de intelectuais e acadêmicos é a arrogância. Não que isto me seja estranho, de modo nenhum, é compreensível, uma vez que estamos lidando com o conhecimento – e o saber é companheiro do poder. Mas o que me encabula é como as pessoas tendem a se enganar com autoengrandecimento, às vezes por tão pouco: um título, uma posição, um cargo, um artigo ou um livro (sim, isto é muito pouco, embora nesse métier seja "o que conta" para muitos).

Neste universo sem sentido, conheço intelectuais e professores renomados e brilhantes, ou apenas brilhantes e competentes, mas não renomados, que procuram demonstrar pouca jactância em relação ao que conquistaram em suas trajetórias, que não pisam nos demais (colegas, discípulos ou aduladores/ admiradores) por causa disso. Pelo contrário, são generosos, humildes e íntegros a maior parte do tempo; alegram-se visivelmente com o sucesso dos outros, e não apenas com o seu, e até contribuem para isso. Conhecem-se o bastante para diferenciar o precioso do vil – afinal, quem é "é", e não precisa ficar alardeando sua persona em outdoor.

Por outro lado, também conheço outros que, por muito pouco (muito pouco mesmo - pouca competência, brilhantismo ou renome), ocupando posições de poder em maior ou menor grau, se transfiguram em seres tão arrogantes a ponto de se acharem superiores, donos da verdade, "último biscoito do pacote". Raramente assentem e se regozijam com o sucesso alheio – a não ser aquele que lhes interessa diretamente – e, para piorar, ainda fazem de tudo para desqualificar aqueles que representam (mesmo que em seu mundo imaginário) uma ameaça direta a sua "excelência" (até pela falta dela, talvez).

Considerando que isso é tão comum, a arrogância e o orgulho acabam sendo ferramentas de sobrevivência: ou se tem e se joga com as cartas que estão sobre a mesa, ou não se tem (ou se evita) e sofre uma espécie de bullying quase corporativo por ser "diferente". A grande questão, para mim, é: onde pensam esses intelectuais que chegarão com esta atitude? Que espécie de discípulos formarão? Que frutos permanecerão, mesmo a após a morte? Cada vez estou mais convencido, com o Pregador, que tudo isto é vaidade de vaidades e correr atrás do vento. Ou seja, nada disso faz sentido!

Então, para mim o caminho, embora árduo, é simples: melhor o anonimato que a fama barata; antes a integridade que a busca insana por reputação; melhor é ser estímulo, exemplo e voz dissonante (como diz a canção do Teatro Mágico) aos poucos que ainda têm ouvidos para ouvir, que gozar de adulações, aplausos e curtidas sem substância de uma grande plateia – a mesma que te derrubará quando preciso for. Estou consciente, porém, de que em toda preferência há um gesto de orgulho; e, em toda deferência, uma pitada de vaidade. Melhor, talvez, seja não se julgar superior em nada, nem em sua aparente inferioridade ou humildade. Porque o orgulho pode ser inimigo da humildade, mas um pouco de humildade autorreconhecida pode ser apenas mais um passo para a arrogância e o orgulho. No fim das contas, então, o espanto inicial de cada um deve ser diante daquele/a que encaramos diariamente em frente ao espelho, perguntando-se com honestidade: que diabo de intelectual (ou de pessoa) sou eu?

Jonathan