sexta-feira, 6 de abril de 2012

Diálogo sobre a frase de John Piper (III)

molho-de-pimenta

Prezado Sidney,

Obrigado pela cooperação, especialmente no sentido de encontrar os pontos de convergência entre Jonathan e eu.

Creio que o Jonathan atacou, primariamente, a concepção teológica de Piper, mas para isso precisou recorrer à sua própria concepção acerca da oração. Logo, não vejo que houve fuga do post original ao iniciarmos uma conversa sobre a natureza desta prática tão bem-aventurada.

Temos que fazer justiça à teologia do reino do norte. Para ela, tempo de oração não é uma questão de imposição divina, mas um meio de produção. Sem dúvida, a frase de Piper denuncia essa percepção. O protestantismo euro-americano, apegado ao trabalho (como bem delineou Weber), sequestrou a oração da contemplatividade mística medieval e lhe deu um caráter laborativo. Orar é produzir e, portanto, neste sentido, “tempo é dinheiro”. É claro que o lucro advindo de tal labor se traduz nas almas convertidas ao Evangelho, no crescimento da Igreja, nos avivamentos periódicos e no estabelecimento do Reino de Deus. Destaco que em nada isso é negativo, mas não faz jus à riqueza da oração, no sentido bíblico do termo.

Outro fator a se considerar é que a oração – especialmente nas teologias holiness, mas também nas reformadas – é entendida como meio de purificação da alma e do corpo. Esta percepção está presente na ascese mística medieval, mas nesta era consciente, ativa e intencional. O modo de pensar de alguns protestantes pragmáticos anglo-americanos é diferente: esta purificação acontece de forma quase passiva e inconsciente – uma espécie de transformação osmótica ou radioativa. Assim, quanto mais tempo expostos à presença divina, maior a purificação – ainda que isso seja feito em meio a devaneios da mente, exaustão física ou tédio. Novamente, tempo é importante, de acordo com essa teologia.

O equívoco aqui, entre outros, é situar Deus em um momento ou local, não o reconhecendo em toda a vida. Além disso, a compreensão que se tem de purificação não passa pelos processos dinâmicos da experimentação, retração, reconhecimento, tentativa, sofrimento, êxito, etc. É um processo que não passa pela filtragem da vida – algo dinâmico, fluido e forçado –, mas pela decantação. Ora, sabemos que água decantada “parece” limpa, até que seja agitada novamente.

Portanto, a prática da oração não deve desprezar os aspectos positivos dos sentidos laborativo e contemplativo, mas deve ser encarada, também, como um processo contínuo, não contingencial, auto-reflexivo, terapêutico, solidário e dialogal.

Espero ter jogado um pouco mais de pimenta neste molho.

Vanderlei Frari

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Diálogo sobre a frase de John Piper (II)



Excelente e assertiva análise, caro (e claro) Vanderlei. Você está certo, quando diz que “atirei” – embora não sei se concordo com o "à queima roupa", que pode significar muita coisa. Meu texto é franco atirador mesmo, porque o escrevi com a pena em chamas, por querer provocar o pensamento (e acredito que provoquei) e por estar farto deste tipo de doutrinismo, com a qual lido desde que me conheço por gente. O processo de libertação disso é longo, meu amigo, quase como se livrar de um câncer. 

Não é que desconsidero o todo, entendo o que você diz. É que, quando escrevi isso, não estava preocupado em considerar “todo” algum, somente a parte que me interessava desconstruir – o que certamente não inclui o aspecto intercessório da oração, muito menos o aspecto de que temos de dedicar “algum tempo” (relativo) para isso. Só me recuso à redução disso (a oração) a fórmulas e padrões universais, ou mesmo da qualidade da vida do orante somente ao tempo dedicado. Não há dúvidas de que o tempo também influi – um exemplo disso está em como tendemos a nos focar mais na oração quando um infortúnio nos atinge, seja diretamente ou indiretamente, por meio de alguém que conhecemos ou que muito nos é caro(a).

Estava lendo “A amizade com Deus”, de Segundo Galilea, e ali ele dizia que a oração cristã não é, primeiramente, uma questão de quantidade de tempo, uma vez que a atitude (vida) e a qualidade têm prioridade, mas é também uma questão de tempo. O que ele quer dizer, a meu ver, é que uma não exclui a outra; o foco e o tempo que investimos em oração são o que nos permite manter, mais tranquilamente, a atividade de orante ao longo da vida, sem ter que fazer reserva pro jantar. Mas, como você disse, a vida pela graça nos lembra que estamos sempre em débito com nossa amizade com Deus (o que inclui, a vida de oração), ao mesmo tempo que retira de nós todo o peso do débito, nos conduzindo aos poucos a um caminho mais libertador, de gratidão e de vida. É um paradoxo com o qual temos de lidar, sem fugas nem subterfúgios tolos. 

Assino embaixo no que disseste no último parágrafo, perfeito. Também quero aprender a viver em oração na perspectiva daquele que sofre, e sentir junto a dor, encomendando-a(o) a Deus, o único capaz de sentir e de ver o todo. Eu, porém, só vejo em parte e em parte sou visto. Compreendo sua interpretação da frase de Piper pelo “outro lado”, mas ainda continuo defendendo que este lado não é o mais forte da frase, considerando o conjunto da obra de seu autor. Se você tivesse escrito a frase, talvez pudesse eu ser mais bem convencido dessa tão elucidativa explanação.

Por fim, aproveito para citar outra excelente análise, feita por Galilea no livro mencionado:
Na amizade, o essencial é a atitude permanente para com o amigo, mais que o número de vezes que com ele encontremos. E também é mais importante a qualidade do encontro e do tratamento, que sua quantidade. De maneira semelhante, é mais importante o espírito de oração, que as práticas de oração (embora estas sejam necessárias para manter aquele). E é mais importante a qualidade do tempo de oração que sua quantidade; a determinação de entregar-se à vontade de Deus, que o simples ‘cumprimento’ de horas de oração (p. 39). 
Um abraço e obrigado pela tão construtiva reação.

Jonathan

Diálogo sobre a frase de John Piper (I)


Jon,

Em geral, concordo com você. Piper é um típico representante da teologia WASP, mas acho que você atirou à queima-roupa, sem considerar o todo. De fato, a herança pietista deformada transformou a oração individual em panaceia para todos os males da alma – ela quase se tornou na própria Graça. Esse reducionismo deixa de fora a contemplação da natureza, a leitura orante das Escrituras e mais uma série de coisas boas que a tradição cristã nos legou nesses séculos. Sem falar que pode desembocar num peticionismo egoísta, em vez de comunhão contínua com Abba.

Acho que uma coisa implícita na frase de Piper, e que você não contemplou, é o aspecto intercessório da oração. É claro que isso não tem relação com quantidade de tempo, mas gerenciamento de tempo, em prol de outras pessoas, e angústia por causa do sofrimento alheio. Nesse sentido, concordo com ele. A distração pode me levar a ignorar a realidade do outro e, neste caso, a motivação para não orar não é diferente da motivação que você denunciou. Ambas desembocam no orgulho e na satisfação do eu. Essa é uma daquelas coisas que, segundo Kierkegaard, “quem diz que tem, não tem e quem acha que não tem, tem”.

A menos que estejamos dispostos a encarar as Escrituras como mera expressão da experiência religiosa do povo de Deus, sem nenhum rigor instrutivo para a espiritualidade, não podemos confundir a oração com a vivência do Evangelho – por mais nobre e mais necessário que isso seja – pois fazer isso seria simplificar o mistério da oração em detrimento dela mesma e da espiritualidade.

De minha parte, não aprecio Piper, não oro uma hora por dia, sempre me considero em débito para com a Graça divina e procuro viver o Evangelho, mais do que falar dele. Contudo, não consigo deixar de falar com Deus acerca do sofrimento e das lutas das pessoas ao meu redor.

Abraços.

Vanderlei Frari