quarta-feira, 25 de junho de 2008

A excelência do amor

"Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria".

1Coríntios 13 é um belo hino do amor. É uma poesia produzida por Paulo, que fala dos atributos e adjetivos do amor, intimamente ligados, aqui, à natureza daquele que é Amor (Deus), e que nos impulsiona a também sermos amor com e por Ele, tendo este amor como o cerne mais profundo da nossa existência, “sendo” e existindo para amar a Deus e ao próximo.

O problema é quando este importante preceito, que é belo e poético, não consegue ser, para a vida cotidiana, para nossos relacionamentos, mais do que um simples hino-poesia que, se por um lado serve de inspiração e tema para momentos especiais, tais como casamentos, aniversários, festas de despedida e assim por diante, por outro lado em nós nenhuma crise ou incômodo cria, nem perplexidade ou inquietude promove. Isto, frente a constante realidade de que fomos “feitos” em amor, mas não “programados” para vivenciá-lo em todas as suas implicações, ou seja, para alçar este amor para além da poesia e do romantismo às relações tantas vezes complexas, quebradas e fatídicas do nosso dia-a-dia. Um amor, que desvenda até a nossa mais íntima fraqueza, pecados e fracassos, enquanto seres humanos, e que cobre multidões de pecados.

A igreja de Corinto fazia separação entre os dons “mais espirituais” e os “menos espirituais”, e, conseqüentemente, entre os crentes mais e menos “espirituais”. Paulo – na contramão do que até então se concebia na prática daquela igreja – vem ensinar que os “crentes espirituais” são aqueles que são do amor, e que exercem seus dons e talentos em amor, respeitando o outro, o diferente, compreendendo que o fluxo magnífico e sobremodo excelente da vida cristã não pode ser seguido sem uma atenta observância de tal preceito, e uma aplicação sincera do mesmo ao cotidiano e às formas de ser-no-mundo. Esta não é uma forma de espiritualidade baseada em quantos ou quais dons você possui, menos ou mais que seu irmão, mas que consiste em permanecer no amor de Deus, que transforma corações, cheios de dor e sequidão, em mananciais de ternura, paz e misericórdia e que há de nos moldar até que alcancemos o “vínculo da perfeição”.
Jonathan

terça-feira, 17 de junho de 2008

Nietzsche e o cristianismo (final)

A tese simples que defendi até aqui, como já ficou perceptível, é a de que Nietzsche decepcionou-se mais com a igreja que com Deus, ou decepcionou-se com Deus, mormente, por causa da religião cristã, isto é, em função da forma como essa lhe apresentou a divindade. Alguns queridos irmãos nem sequer parariam um instante para ouvir o que ele teve a dizer, posto que já condenaram esse filósofo na fogueira de suas inquisições. Para muitos, Nietzsche morreu louco e às suas palavras não se pode dar crédito algum.

A insanidade de Nietzsche foi real, como foram precoces alguns dos juízos “teológicos” que ele fez acerca de Cristo, de Paulo e da Palavra. A meu ver, em parte de sua obra, ele apresenta os argumentos equivocados, mas pelas razões certas. Basta lê-lo pra saber. Só que isso é o que menos fazem os cristãos, pois como foi dito, ele já está condenado, e ler Nietzsche também é visto como um ato herético por alguns. Todavia, nem a infantilidade e imprecisão de algumas concepções teológicas desse autor, muito menos sua suposta “loucura” nos outorga o direito de desprezar o que ele disse.

Afinal de contas, louco ou não, ele escreveu coisas muito sábias acerca das bestagens dos cristãos de seu tempo. Loucura, sabedoria; o que são, de fato, essas categorias? O que impede um Deus, que é visto como louco pelos “sábios” desse mundo, de amar e aceitar um filho perturbado, desorientado, mas que viveu à procura do caminho de retorno à casa do Pai, embora, acredito, ele mesmo nunca teria admitido isso em público? Podem até dizer que eu não entendi Nietzsche – aliás, essa é a frase mais repetida por seus “estudiosos”. Mas o fato é que Nietzsche não parece ter tido a pretensão de ser entendido. Ele era o paradoxo em pessoa, e, paradoxalmente, talvez essa tenha sido uma de suas principais virtudes.

Há uma oração, traduzida por Leonardo Boff no livro Tempo de Transcendência (2000), cuja autoria é supostamente atribuída a Nietzsche, já no fim de sua vida. Seu título é “Oração ao Deus desconhecido”, e me fez pensar naquele verso de Eclesiastes: “Deus pôs a eternidade no coração do homem sem que este saiba as obras que Deus fez do princípio até fim” (Ec 3.11), e com a qual quero terminar essa reflexão:

Antes de prosseguir em meu caminho e lançar o meu olhar para frente uma vez mais, elevo só, minhas mãos a Ti na direção de quem eu fujo. A Ti, das profundezas de meu coração, tenho dedicado altares festivos para que, em cada momento, Tua voz me pudesse chamar. Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras: “Ao Deus desconhecido”. Seu, sou eu, embora até o presente tenha me associado aos sacrílegos. Seu, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo. Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servi-lo. Eu quero Te conhecer, desconhecido. Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida. Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero Te conhecer, quero servir só a Ti.

Friedrich Nietzsche (1844-1900)
Jonathan

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Nietzsche e o cristianismo (III)

Terceira crítica: O cristianismo é inimigo do corpo, do humano e da vida

Uma das grandes vitórias do “Coisa-Ruim” em relação ao cristianismo está no fato dessa religião ser, em tese, a origem explicativa para a questão do prazer e, na prática, o meio mais eficaz de sua depreciação. Religião e prazer, nesse sentido, são antônimos, nunca se cruzam. No cristianismo, o corpo é apenas um instrumento imperfeito através do qual Deus quer que nossas almas elevadas sejam, por meio de muita abnegação, luta e auto-flagelação, levadas à perfeição cristã (John Wesley). Só que essa busca de perfeição, tantas vezes, é transformada em neurose de perfeição, de modo que o indivíduo vai sendo neuroticamente conduzido a uma vida de privações ao corpo, ao prazer (visto como maldição) e a ver as coisas naturais como profanas e rechaçáveis, dando valor apenas às coisas sobrenaturais.

Essa é uma outra questão crucial para a ruptura de Nietzsche com o cristianismo. Para ele, a religião da clemência, piedade, castigo, penitência, redenção, remissão de pecados, juízo final, etc., é um mundo de ficções. “Depois que o conceito ‘natureza’ foi inventado como contra-conceito para ‘Deus’, ‘natural’ tinha de ser a palavra para ‘reprovável’ – aquele inteiro mundo de ficções tem sua raiz no ódio contra o natural” (Nietzsche, 1978, p. 348). Mal sabia (porque mal havia sido informado pela igreja de seu tempo) que Deus não é inimigo do natural, mas criador e amante crônico de tudo o que é natural, a começar pelo ser humano. Afinal, Ele criou e com o propósito de amar. Como poderia Deus ser a antítese daquilo que foi formado à sua imagem e semelhança? O problema não está em Deus, que concedeu muitas coisas boas para que o homem delas gozasse, mas no próprio homem, cujo coração corrompido não soube utilizar com responsabilidade das dádivas proporcionadas por Deus, e no cristianismo, o qual, em função do mau-uso feito pelo homem, não apenas condenou os atos, como também as coisas em si (sexualidade, prazer, humanidade, natureza, etc.), que Deus havia declarado que eram “muitos boas” no Princípio.

Tudo isso, para Nietzsche, fez de Deus uma idéia a ser abolida, e do cristão, apenas um judeu de confissão ‘mais livre’ (Nietzsche, 1978, p. 355). Ele também critica essa tendência da igreja de seu tempo de açoitar, condenar, difamar e suspeitar de tudo o que fosse Humano, Demasiado Humano: “É fácil ver como os homens se tornam piores por qualificarem de mau o que é inevitavelmente natural e depois o sentirem sempre como tal. É artifício da religião, e dos metafísicos que querem o homem mau e pecador por natureza, suspeitar-lhe a natureza e assim torná-lo ele mesmo ruim: pois assim ele aprende a se perceber como ruim, já que não pode se despir do hábito da natureza” (Nietzsche, 2006, p. 102). A canção escrita por Moska e Zélia Duncan, Carne e Osso, pode ser vista como uma sugestiva crítica à matriz cristã de tratamento com tudo o que é matéria humana:

Alegria do pecado às vezes toma conta de mim. E é tão bom não ser divina. Me cobrir de humanidade me fascina e me aproxima do céu... E eu gosto de estar na terra cada vez mais. Minha boca se abre e espera o direito ainda que profano pro mundo ser sempre mais humano... Perfeição demais me agita os instintos. Quem se diz muito perfeito na certa encontrou um jeito, insosso! Pra não ser de carne e osso, pra não ser... Carne e Osso!

Esse jeito “insosso” é a meu ver o que muitos chamam de “santidade”. Mas quem disse que pra ser santo é preciso ser menos humano? O cristianismo, na certa. Agora, o direito de sermos sempre mais humanos não é profano, como diz a canção, e nem sagrado (do ponto de vista cristão), mas Divino ô cara pálida! Deus deseja que sejamos plenamente humanos, como foi seu Filho e nos cubramos de uma nova humanidade, não nova angelicalidade.
Continua...

Jonathan

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Nietzsche e o cristianismo (II)

Segunda crítica: O cristianismo fala de amor, mas gera a imagem de um Deus algoz e sádico
O remédio do cristianismo para os males da humanidade é apontar a imagem de um Deus que é amor, consolo, abrigo. Mas, ao mesmo tempo, para que a coisa não seja assim tão gratuita, tão fácil, e para que haja a necessidade da religião, do re-ligare, ele precisa nutrir e propagar a existência da doença como mal moral inerente ao homem. Nesse sentido, o homem jamais se livrará do corpo desta morte e de suas intermináveis culpas escravizantes a menos que se renda ao remédio curador do cristianismo, expresso nos sacramentos, nos ritos, nas penitências e disciplinas. Como diz Nietzsche, “o cristianismo nasceu para aliviar o coração, mas agora deve primeiro oprimi-lo, para mais adiante poder aliviá-lo” (2006, p. 90).
Isso me faz lembrar do binômio prêmio-castigo, castigo-prêmio que se via na relação dos senhores de engenho com seus vassalos no período de escravidão negra no Brasil (séc. XVIII). Para não perder seu escravo, o Senhor devia dar alguns mimos e presentes de vez em quando para deixá-lo contente; por outro lado, se abrisse muito a guarda, o escravo poderia afrouxar na obediência; logo, o castigo também se fazia necessário a fim de que o escravo soubesse qual era o seu devido lugar, respeitando a autoridade do senhor. Na religião, a dinâmica é semelhante, mais do que pensamos. A violência e o abuso são simbólicos, quase imperceptíveis, mas tão danosos quanto os atentados ao físico, porque machuca a alma, o interior, e leva, muitas vezes, a uma viagem sem volta rumo à cela da angústia, depressão, loucura; ou a uma profunda decepção geradora de rupturas com a igreja e com o Deus que ela serve.

Vejo, mesmo que de longe, Nietzsche muito mais como um a-igrejeu, que, como corolário, tornou-se a-teu. O Deus que ele rejeita e até “mata” não é o Deus vivo, mas o Deus que já nasceu morto, das mortíferas consciências e corações dos fariseus modernos. É o Deus da lei, da ira, do castigo, do juízo e da condenação. É o Deus-produto das mentes humanas mórbidas e achatadas pela idéia de justiça contra a maldade que lhe é própria e contra tudo o que sua consciência afetada transforma em maldade, até as coisas bonitas, dádivas de Deus, mas que justiça alguma, a não ser a justiça graciosa do Filho de Deus, poderia redimir. Esse Deus tinha que morrer mesmo. Nietzsche declara sua percepção da seguinte forma:

Deus; é porque olha nesse espelho claro que o seu ser lhe parece tão turvo, tão incomumente deformado. Depois o angustia o pensamento do mesmo ser, na medida em que este paira ante sua imaginação como a justiça punidora: em todas as vivências possíveis, grandes ou pequenas, acredita reconhecer a cólera e as ameaças dele, e mesmo pressentir os golpes de açoite de seu juiz e carrasco. Quem o ajudará nesse perigo, que, em vista de uma duração imensurável da pena, supera em atrocidade todos os outros terrores da imaginação? (Nietzsche, 2006, p. 94).

Logo, se essa idéia de Deus é geradora das mais cruéis e contraditórias mitigações da alma humana, a conclusão mais lógica para Nietzsche foi: “Acabando a idéia de Deus, acaba também o sentimento do ‘pecado’, da violação de preceitos divinos, da mácula numa criatura consagrada a Deus” (2006, p. 96). Não temos como simplesmente julgar a falta de “discernimento espiritual” de Nietzsche (como se soubéssemos de fato o que é isso) e fechar os olhos para a plausibilidade da questão. A maneira como concebemos, entendemos e nos relacionamos com Deus; as idéias e imagens que forjamos e apresentamos aos outros acerca Dele, serão determinantes para a maneira como elas o receberão, seja com gratidão e alegria, com tristeza, medo e decepção, ou com adagas a fim de apunhalar e “matar” Deus, extirpando-o de vez de suas vidas.

É triste, mas boa parte de nossa teologia ainda hoje é marcada por um quinhão apocalíptico e tenebroso, que faz com que as pessoas se sintam como “pecadores nas mãos de um Deus irado”, como é o título do célebre e lastimável sermão de meu “chará” Jonathan Edwards. Ele conclui esse sermão do modo mais ameaçador possível: “Portanto, todo aquele que está fora de Cristo agora se desperte e fuja da ira futura. A ira do Deus Todo-poderoso está pendendo agora indubitavelmente sobre grande parte desta congregação. Que todos fujam de Sodoma” (Edwards, 2005, p. 51). Diga-se de passagem, o terror e o maniqueísmo que se vê nessa pregação de Edwards se tornaram marcas indeléveis da prédica protestante que chega ao Brasil e se propaga em nosso contexto até hoje.

Continua...

Jonathan

terça-feira, 10 de junho de 2008

Nietzsche e o cristianismo (I)

Inicio hoje uma série de quatro posts sobre a crítica de Nietzsche ao cristianismo. Minha intenção aqui é buscar esses indícios dessa crítica em suas considerações sobre a religião e vida religiosa nas obras “Humano Demasiado Humano” e “O Anticristo”.

Primeira crítica: O cristianismo é a religião do Dogma e o desastre do homem

Um dos problemas centrais no pensamento de Nietzcshe diz respeito à verdade. O que é a verdade? De onde ela provém? A esse respeito, ele escreveu um ensaio em 1873, que denominou “Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral”. Isto, pois, a “verdade” proclamada ainda em seu tempo era a verdade da metafísica (no campo das ciências naturais e do espírito) e a verdade moral (pelo cristianismo). Se a verdade não está nem na metafísica e nem na moral cristã, onde está ou em quem? Para Nietzsche, a verdade pode ser vista como:

Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismo, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, aparecem a um povo sólidas, canônicas, obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas (Nietzsche, 1978, p. 49).

A verdade, da filosofia, do cristianismo, para ele, jamais poderia ser conhecida como Verdade, porque sempre é fruto de uma compreensão ou olhares parciais, de uma transformação de Deus pelo homem e no homem (antropomorfismo), das palavras pelo homem, sempre imaginando que com essa manipulação possa representar as coisas tais como são. Mas não. O que se produz não passa de metáfora (semelhança ou reflexo da coisa) ou metonímia (outra palavra para a coisa), mas nunca a coisa em si. Assim, dogmas não são verdades de Deus, embora se lhes atribuam tal valor; o cristão, por mais que conheça a Jesus (caminho, verdade e vida) jamais poderá exprimir absolutamente essa verdade nas coisas que cria (dogmas, estruturas, instituições). Logo, a religião fala muito mais da forma humana que da forma de Deus. Por que será que Jesus não respondeu a Pilatos a tão crucial pergunta: “O que é a verdade”? Porque ele sabia que dar forma verbal à verdade, criando uma filosofia ou ideologia, seria o mesmo que matar a própria verdade. Diria tudo, menos “a verdade”.

Assim, ele aponta para si como sendo o Logos, o Verbo de Deus, a Verdade Encarnada, Vivida, Visceralmente experimentada. A verdade, conforme Jesus, não se conhece (cognitivamente), nem se representa ou se expressa (dogmaticamente), mas se experimenta, se vive e pronto. A verdade que Nietzsche critica é essa que afasta o próprio homem do caminho da verdade, embora nem o filósofo soubesse apontar “um caminho” sequer, mas sempre a via do paradoxo, do trágico, da idiossincrasia das "verdades" humanas: capengas, irreais, ilusórias. A verdade é experimentada por ele como contradição e antítese dos caminhos do dogmatismo. Era difícil para quem se auto-intitulava “espírito livre” ser comandado pelas mordaças da verdade dogmática, aceitando passivamente o “julgamento”. Seu livro, O Anticristo, deve ser lido como o anticristo do cristão. Contra esses, ele afirma: “Ao fazerem Deus julgar, julgam eles próprios; ao glorificarem a Deus, glorificam a si próprios, ao exigirem precisamente as virtudes para as quais são aptos (...) na verdade fazem o que não podem deixar de fazer”, porque isso se constitui como mandamento, dever, ordem, obrigatoriedade".

O grande combate de Nietzsche em Humano, Demasiado Humano, por exemplo, não é a religiosidade em si, como categoria inata ao ser humano, mas a religião e seus dogmas que, ao apresentar-se como verdade, aprisionam o ser humano e matam a liberdade de expressar suas emoções ao indizível, em dar vazão às pulsões de incompletude que procedem do interior e não se completam com meras ritualidades do exterior. Nas palavras do filósofo, “nisto se percebe que os espíritos livres menos ponderados se chocam apenas com os dogmas, na realidade, e conhecem bem o encanto do sentimento religioso; é doloroso para eles perder este por causa daqueles” (2006, p. 93).

Jonathan

sexta-feira, 6 de junho de 2008

O que é ser santo?

Ser santo é buscar ser essencialmente humano, ser parte da história porém vivendo a presença de Deus no mundo (Lc. 7.39). Ser santo tem relação com a busca de uma sociedade sem desigualdades e onde os mais fracos jamais sejam despojados (Mt. 23.14). Ser santo éviver a alegria do conhecimento de Deus com oração e fé e é sofrer as angústias da história como resultado de nossos vínculos com um padrão que o mundo não conhece (Mt. 11.25-27; 5.11-12).

Ser santo é ser separado, não dos pagãos; como Israel equivocadamente tentou, mas é viver a diferença radical dos valores do Reino em meio às sociedades pagãs (Mt. 5.43-48). Ser santo é ter na paixão dos profetas a motivação existencial para o nosso enfrentamento histórico do mal (Lc. 13.33). Ser santo é, mesmo em dia de sábado, trabalhar a favor da santidade de vida (Lc. 14. 1-6). Ser santo é colocar o valor da vida acima do valor das coisas, mesmo aquelas mais "sagradas" (Mt. 23.23). Ser santo é entender que o altar diante do qual Deus nos quer ver prostrados não é apenas o altar do templo, mas também os altares ensangüentados dos corpos dos nossos irmãos de história e que estão caídos nas esquinas da vida (Lc. 10.25-37).

Ser santo é viver a misericórdia no agitado ambiente secular, ao invés de viver a quietude alienada do ambiente religioso que não tem janelas para a história da dor humana (Mt. 9.9-13). Ser santo é acreditar que a santidade não se polui quando toca com amor, aquilo que é sujo (Mt. 8.1-4; Mc. 7.1-23). Ser santo é não temer ser mal interpretado pela mente daqueles que estão sujos de pretensa santidade.(Mc.7.5;Lc.7.39). Para Jesus ser santo é ser verdadeiro para com a nossa condição humana: é ter a coragem de chorar em público (Jo. 11.35), de admitir perdas e saudade (Jo. 11.36), de gritar de dor (Mt. 27.50), de confessar depressão (Mt. 26.38), de pedir ajuda emocional(Mc. 27.50), de se confessar cansado (Jo. 4.6), de dizer tenho sede (Jo. 19.28), de confessar dificuldades familiares (Mc. 3.21;Jo. 7.1-9), de admitir que a privacidade é um direito e uma necessidade de sobrevivência (Mc. 6.30-32,45,46).

Ser santo é admitir que o amor pode ser exercido na perspectiva da disciplina física (Mc. 11.15-19) e que o "desabafo" é um sadio escape quando se está farto de estupidez (Lc. 11.31-32). Ser santo é continuar sendo de Deus mesmo em meio ao mais profundo e inexplicável silêncio divino (Mt. 27.46).

Caio Fábio
Trechos do livro Oração para Viver e Morrer.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

A Transgressão de Deus

Embora não seja algo simples, penso que deve ser uma tarefa constante essa de repensar nossa forma de entender Deus e se relacionar com Ele. Diferentes expectativas, imagens e projeções estão em jogo quando falamos, oramos, balbuciamos, escrevemos... “Deus”. Quem é? Como se revela e como se relaciona com a gente?

Geralmente, esse montante de expectativas insurge, como corolário, acompanhado de uma série promessas, visões e perspectivas de quem Deus é. Dependendo das circunstâncias e variáveis existenciais, ele é cotado como X, como Y ou como Z; ainda que X, Y e Z não entrem em contradição entre si, é impressionante como assumem cores absolutas e tons definitivos assim que surgem. Isso significa que, consciente ou inconscientemente, ávidos por definições que somos, queremos pôr Deus dentro de caixas, que comportem exatamente o tamanho de nossas ingênuas, e às vezes tão eqüidistantes biblicamente falando, projeções sobre Deus, como se Ele coubesse mesmo nelas.

Conceitos são sempre visões limitantes e parciais sobre algo. São “igualações do não-igual”, parafraseando Nietzsche; ou seja, o que se quer dizer é que todo conceito nasce da identificação do não idêntico, posto que jamais nos encontramos com a essência do que é-em-si-mesmo. Deus não é conceito, nem cabe num conceito. Ele transgride todas as normas e desvia dos julgamentos. Sou levado a pensar em Deus como infinito transgressor, porque ele não se “encaixa”; e digo isso não pela pretensão de “encaixá-lo” de modo mais sutil, mas precisamente pela impossibilidade de fazê-lo, interditado pela própria linguagem – finita, parcial, cambiante.

Deus é transgressor! E a maior de todas as suas transgressões parece mesmo ter sido o fato de ter escolhido viver como, amar e morrer para que seres como você e eu pudéssemos ter vida e sentido existencial. Deus transgrediu sobre si mesmo por causa de nossas muitas e incontáveis “transgressões”. Quer transgressão maior que essa?

Jonathan