domingo, 27 de março de 2011

Como a corrida pode mudar minha vida...

Todos os dias quando acordo, tenho em minhas mãos o poder de mudar minha vida, para melhor ou para pior. Se ela será menos ou mais feliz, menos ou mais saudável, menos ou mais livre, menos ou mais cheia de vida depende, em parte, de mim mesmo, de minha busca e de minhas opções de caminho... Uma dessas bem-aventuradas escolhas tem sido a corrida.

A corrida pode mudar a minha vida porque ela é uma estrada aberta rumo à longevidade. Nesse meio, tenho conhecido pessoas de 70, 60, 50 anos cujo vigor e salubridade são de fazer inveja a certos jovens de 30 e se brincar até de 20 anos; e penso: se eles têm sido capazes de chegar tão longe com tamanha qualidade, por que não eu?

A corrida pode mudar a minha vida porque ela proporciona um encontro comigo mesmo, com um “eu” que até então não conhecia: livre, aventureiro, lucidamente pirado e assustadoramente feliz (coisas da endorfina); limitado, sim, mas que consegue a cada passada perceber que o limite é maior do que parece ser; a corrida, mesmo sem eu saber, me livrou da depressão, de um modo que medicina nenhuma, por si só, seria capaz de fazer.

A corrida pode mudar minha vida porque ela também oportuniza um fascinante encontro com o outro, o próximo, o com-corrente, que me interpela e desafia, o companheiro de corrida. Se há um esporte que me ensina a ser solidário é a corrida, pois corredores se vêem, se ajudam, se comprazem nisso, seja porque chegaram, não chegaram ou ainda estão perseguindo a linha de chegada.

Na corrida é assim, não importa o quanto já se tenha percorrido, a delícia está tanto na jornada quanto na chegada. Quanto mais corro, maior é a sensação de que ainda falta muito a percorrer. A corrida me faz pensar na corrida da vida: você pode correr com prazer, mas sofre e sente dores; e o que te mantém firme é a esperança da chegada. E muitos são os caminhos que se fazem ao correr. O céu é o limite. Por isso escolhi a corrida, porque ela me aproxima de Deus.

Jonathan

sexta-feira, 18 de março de 2011

A queda do legislador

A arte da conversação civilizada é algo de que o mundo pluralista necessita com premência. Ele só pode negligenciar essa arte às suas expensas. Conversar ou sucumbir” (Zygmunt Bauman).

O livro "Legisladores e Intérpretes" (Jorge Zahar, 2010), um dos últimos do polonês Zygmunt Bauman publicados em português, se trata de uma análise da vida moderna, sobretudo, da vida intelectual. Constrói-se em diálogo crítico com autores modernos, bem como com analistas que propuseram algum tipo de crítica à modernidade no século XX, tanto filósofos como sociólogos. A obra foi um dos primeiros passos do autor rumo a uma sociologia da modernidade e a criação do conceito de “líquido”, que vem expressar precisamente um estágio avançado de transformações da modernidade, a que muitos preferem chamar de pós-moderno, de fluidez, incertezas e ambiguidade.

A declaração da "queda do legislador" é central para entender o propósito do livro, uma vez que procura dar as razões que conduziram o ideal moderno representado na figura do legislador à derrocada na pós-modernidade, de uma “era de certezas” e “autoconfiança” para uma “era de incertezas" e de desconfiança em relação aos valores estabelecidos (como o da pretensa objetividade e o do progresso) ao papel do “sujeito” e ao futuro da história. A tese é de que a queda do legislador é provocada por um mecanismo autodestrutivo próprio da modernidade como projeto, que está em ser um empreendimento humano sem limites e que acaba extrapolando a capacidade humana de assimilar sua própria engenhosidade. A modernidade pagou, dessa forma, o preço de sua ambição e de suas “contradições inextricáveis”: quando se vê o particular e o limitado tentando conter o absoluto; o efêmero buscando a durabilidade; o normal ensejando o status de superioridade (ver: p. 161).

Isso construiu uma “ilusão de ótica” na qual a modernidade julgou ser o ponto referencial a partir do qual tudo ocorre, a régua universal, medidora de tudo e de todos. Quando este devaneio metafísico passa a ser denunciado no debate pós-moderno, percebe-se que as certezas de antes estão mortas ou em processo de decadência. O certo é substituído pelo incerto; o mundo contemporâneo passa a ser um lugar estranho aos legisladores, incapazes de responder as expectativas que eles mesmos criaram em torno de si e de seu projeto.

Em consequência, Bauman considera que: “O mundo contemporâneo é impróprio para os intelectuais como legisladores” (p. 170). Abre-se caminho, assim, para a ascensão de novas representações, dentre elas está a figura do intérprete. A função do intelectual passa a ser não mais a de legislar – em busca de vereditos absolutos – mas de interpretar recortes da realidade a que chamamos de “textos”. Tudo o que temos são textos, dirão muitos filósofos da linguagem. E textos não são espelhos da realidade, mas reflexos obscuros e particularizados de uma realidade inacessível ao intelectual, a não ser por meio deles, os textos, que em si conferem um acesso também limitado, parco eu diria. É como se, como corolário, não existisse realidade alguma fora deles. A realidade seria, então, fruto da compreensão humana expressa na linguagem. Não se tem mais verdades, e sim interpretações...

Algumas implicações para a teologia me vêm à mente. A educação teológica, tal como a concebemos em boa parte até hoje, é filha da modernidade. Também nasceu dentro de um edifício de certezas e sob uma ótica dogmatizante. Sustenta-se sob a pretensão não apenas de “falar de Deus” (o que já seria um hercúleo desafio), mas de “falar por Deus”. Muitas vezes cedeu à “oferta do bruxo” (C. S. Lewis) de trocar sua vocação para ser a mais modesta dentre as ciências pelo conhecimento como poder: para legislar, dominar e condenar. Lutou contra seu próprio princípio de sustentação, de que a força de seu discurso e vida reside precisamente em sua fraqueza. Tantas vezes tem cedido à tentação de não questionar seus próprios pressupostos e, mais do que isso, de rotular como “herege”, “liberal” ou coisa do tipo quem ousa os questionar.

A queda do legislador deve ser, como em muitos contextos já tem sido, um prenúncio profético à teologia, de retorno à sua vocação, de abandono de sua faceta moderna, colonizadora da vida e do pensamento, de quem tentou e ainda tenta fazer “fimose em Deus” (Caio Fábio). A teologia precisa abandonar sua faceta dogmática, e abraçar a pluralidade e diversidade que fazem não dela e de suas cogitações o referente ou o absoluto, pois isso é coisa que só Deus pode ser.

Jonathan