terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O 'fazer' que há no 'pensar'


Não apaguem o Espírito. Não desprezem as profecias. Examinem todas as coisas. Fiquem com o que é bom. Afastem-se de toda forma de mal. (1Ts 5:19-22)

Em tópicos abordados anteriormente aqui no blog, escolhi falar sobre a simplicidade da vida, de nossas escolhas, do modo como lidamos com o conhecimento que temos, da ideia de temperá-lo com amor, das pressões externas por produtividade, do anseio interno por ser mais. Entretanto, é preciso que se diga em alto e bom som: simplicidade não é simplismo, muito menos burrice. Explico: a moderação, como diz Eclesiastes, em tudo é boa. Isso significa, em nosso caso, que conhecimento sem simplicidade (e tudo o que ela agrega) vira cinismo, e o cinismo é autodestrutivo: só enxerga mazela em tudo e todos; não leva a nada. Mas simplicidade sem conhecimento vira pura ingenuidade, e logo somos enganados, levados de um lado para o outro como boiada. Portanto, nem o desprezo injuriado a tudo e a todos, nem a aceitação passiva e não questionada, parecem ser caminhos de sabedoria. Melhor é examinar tudo com cuidado. 

É sobre isso que Paulo está falando no texto citado na epígrafe acima. Trata-se de um chamado ao discernimento. Um chamado comunitário para examinar as profecias (não confunda com predições futuras, pois se trata da pregação evangélica), interrogar e denunciar o mal onde quer que ele exista, não perder o ânimo diante das pressões externas, manter-se identificado com o Espírito a fim de reter apenas o que é bom, e não se deixar coagir por outros “espíritos” (Roma, ditames da sociedade, perseguição religiosa, etc.) e ser levado a pensar como eles. Quem pratica o discernimento tende a pensar com e não como o outro. Voltarei a esse ponto adiante.

É uma tentação num mundo convulsionado pela informação rápida e disponível num piscar de tela do smartphone, contentar-se com o mero dado, aceitar como veio sem querer saber mais, ater-se às manchetes do dia, ouvir e acolher apenas o que lhe agrada sem se importar muito com significado e com reflexão. Aliás, se você não sabe, o Facebook já tem feito isso com maestria por você: seleciona, sobretudo, as notícias e postagens que te interessam, que concordam com seu pensamento, que se conformam com seus desejos e “ideais”. Com isso, ele nos diz todos os dias: você não precisa aceitar o diferente, você não tem de lidar com o incômodo, não precisa se escandalizar com o pensamento contrário, com o abjeto e indesejável colega de “direita” ou de “esquerda”, pois vamos fazer de tudo para criar um pequeno universo virtual de coisas e pessoas parecidas com você, prontinho para você só curtir ou compartilhar. E olha só: se alguém ficar espezinhando você, basta acionar o dispositivo de “block” e a paz reinará de novo. 

Contudo, nem toda paz é boa para se conservar, como bem nos alertou O Rappa. O conforto tem um preço e ele se chama “alienação”, que é a ação de transformar-se em alguém alienado, alheio, separado, distinto, distante; um quase alienígena em seu próprio contexto. A alienação pode até trazer comodidade, aliviar perturbações, evitar problemas; seu produto final, porém, é o emburrecimento e o embrutecimento. E assim, emburrecidos e embrutecidos, quando colocados em coletivos ou em redes sociais, tendemos a tratar os outros (em especial, os mais diferentes de nós), quase naturalmente e sem peso na consciência, com burrice, rudeza e brutalidade; em alguns casos, como um peso morto e, em outros, como um mal a ser extinto. Outro efeito da alienação em nosso tempo é que ela tem institucionalizado o ódio. E feito com que, em nome do combate ao “politicamente correto”, joguemos no lixo valores importantes como a compaixão, a generosidade, a bondade, a tolerância, o bem comum. 

Para nós, teólogos/as, eu arrisco dizer que esse é o lugar e o momento certo. Essa é a hora de fazer teologia, porque a melhor maneira de aprender teologia, para além dos livros e leituras (embora amando-os e apreciando-os), é quando estamos de ouvidos abertos e atentos ao mundo, e ao que o Espírito está fazendo no mundo, mesmo quando ele está partido e convulsionado como o nosso. A isso John Stott chamou de “ouvir duas vezes” (ao Espírito e ao mundo). Se não aprendermos a fazer teologia com os ouvidos, jamais aprenderemos a fazê-la bem com as palavras, e a convertê-la com eficácia em vida. Por isso gostaria de tomar as recomendações de Paulo à comunidade de Tessalônica há mais de dois mil anos, para pensar no “fazer” que há no “pensar” teologicamente. 

Primeira recomendação: examinar tudo. A palavra grega no original é dokimázō, isto é, examine, julgue, prove, investigue. Não tome as coisas como óbvias, nem tire conclusões precipitadas, mas prove e discirna. Se colocarmos uma comida na boca de um bebê pela primeira vez ele fará uma expressão estranha, e aquela expressão significa que ele está provando. Não dá para saber se é bom ou ruim se não testar, se não examinar. O coração do sábio, diz Salomão (em Pv 18:15) está ávido por conhecer e, por isso, está sempre aprendendo. Então, a recomendação é clara: não acredite em tudo o que vê, nem rejeite só porque o outro disse que não presta, mas prove; não apenas o modo alheio (de agir ou pensar), mas pondo o seu próprio à prova. Pedro Demo disse que “quem não sabe pensar, acredita no que pensa. Quem sabe pensar questiona o que pensa”. O pensador será um transgressor por natureza quando aprender a transgredir mais o que ele propriamente ou impropriamente pensa que ao pensamento alheio. 

Segunda recomendação: não desprezar. Exoutheneo é o termo grego aqui utilizado, que insta a não tratar com desdém, com desprezo, nem ridicularizar ou rejeitar desqualificando. No texto ele se refere à profecia ou à pregação (5:20). Considere que cada recomendação está ligada à anterior: não desprezar é o ato conseguinte de examinar. Quantas vezes não desprezamos sem provar? Quantas vezes não provamos e, logo em seguida, desprezamos? Mas Paulo diz: prove e não despreze. É possível julgar, fazer a crítica devida, apropriar-se do que for possível, sem desprezo nem desconsideração ao outro. O Espírito pode estar realizando seu trabalho naquela pessoa, mesmo que eu não concorde com nada do que ela diz, ou com sua forma. Muita gente desempenha seu papel de modo sincero e bem-intencionado. E Deus continua utilizando quem ele quer e como quer. Então, não pense que você é a nata de Deus. Porque Deus escolhe os que não são, e fala pelos meios menos convencionais.

Terceira recomendação: preservar o bom. O “bom” aqui é kalos, ou o que é próprio, bonito, valioso. O que vale a pena ser preservado? Segundo que critério? Paulo não responde a essas perguntas. Considerando, porém, a quarta recomendação (que veremos a seguir), o bom aqui é resultado de uma decisão, baseada no discernimento, no bom senso, no ouvido atento ao Espírito, na sensibilidade à luz da Palavra. Paulo está sendo, portanto, prudente: antes ele disse “não despreze”, e agora está dizendo, grosso modo, para que não aceitemos tudo sem critérios, desleixadamente. A aceitação acrítica é também uma forma sutil de desprezo, como quando alguém te diz algo importante e você responde com um desdenhoso “tá bom” – que, no fundo, quer dizer “não estou nem aí para isso”! O teólogo que escuta mais do que fala será capaz de ser rigoroso e terno, sensível e criterioso, tudo ao mesmo tempo numa atitude própria de quem não separa o coração do ato de pensar.

Quarta recomendação: não apague o Espírito. Apagar aqui é sbennumi, que também significa “extinguir” ou “suprimir”. Como alguém pode extinguir o Espírito de Deus? Não podemos extingui-lo da vida. Mas podemos extingui-lo de nós mesmos, calando-lhe a voz, ignorando a direção (ou caminhando na contramão) do vento. Já disse que toda boa teologia começa antes com o ouvir que com o falar, e na prática de ouvir a oração é indispensável. Karl Barth disse que a oração é “o primeiro e fundamental ato do trabalho teológico”. Não se trata apenas de dobrar os joelhos (embora Barth também diga que quem não dobra os joelhos, não pode se levantar), mas de deixar com que Deus dobre nosso espírito, envergue nossa vida, realize seu trabalho em nós, subtraindo-nos de nós mesmos, e fazendo sua luz brilhar ali no espaço em que só resta Ele, falando, agindo, nos interpelando. 

Espera-se que essa abertura ao Espírito se converta numa abertura ao outro, ao diferente e ao novo. De acordo com João Batista Libânio, normalmente nossa rejeição ao novo tem a ver com uma insegurança e um medo inconscientes. Onde atua o Espírito, porém, ali há liberdade (2Co 3:17) e, como expressa Libânio, “a abertura para o novo só é possível na liberdade”. Ele também defende a ideia de que essa abertura ou fechamento ao diferente também se configura como abertura ou fechamento diante de Deus, “que se manifesta ao ser humano como diferente, como o outro, como totalmente outro”. Em resumo: toda “boa” teologia começa com uma escuta atenta, em atitude de oração; mas também tem a ver com uma abertura, prontidão e suscetibilidade crítica para receber o diferente.

Jean-François Lyotard em The inhuman, diz que “estar preparado para receber aquilo que a mente não está preparada para pensar é o que merece ser chamado de pensamento”. E também afirma que todo pensamento (do impensável) envolve dor. Explicando: estamos acostumados com o “já-pensado” e é mais habitual e confortável lidar com esse conjunto de saberes e práticas que estão conformados ao “já-pensado”. No entanto, não há nenhum desafio em pensar o que já foi pensado – na verdade, é até um contrassenso ao discernimento, sobre o qual venho falando. O desafio é receber e lidar com o não-pensado. E o não-pensado dói, porque muitas vezes entra em choque com o que já havíamos pensado antes – ou alguém em nosso lugar. Por isso, retornando a um argumento anterior, pensar o já-pensado é pensar como – conforme sempre pensamos, aprendemos e aceitamos; já pensar o não-pensado é pensar com, isto é, pensar junto, ao mesmo tempo, não apenas aceitando, mas também ajudando a construir esse novo jeito de pensar. 

A última recomendação não é menos importante: abster-se do mal. De “toda forma” de mal (ponēros, i.e., o ato mal, a malevolência, a maldade pura e simples). Jogar fora tudo o que tenha essa feição malevolente. É discernir o mal e afastar-se dele. Pois o pensamento que se reveste do mal é o pensamento que fere todas as recomendações anteriores. E a melhor forma de abstenção do mal, como Jesus no ensinou, é usar e oferecer o bem como moeda de troca. E não apenas pregar o bem, mas personifica-lo. Nisso consiste a vocação da teologia: que ela seja um pensar no qual também se imponha um fazer. E que esse fazer gere frutos dignos de arrependimento.

Jonathan

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Quando saber não é o bastante

O saber ou conhecimento ensoberbece (dá lugar à arrogância), mas o amor edifica.
Conhecemos bem esse texto paulino (1Co 8:1). Quantas vezes não o utilizamos para o despropósito de dizer que o conhecimento não vale de nada; que a razão atrapalha a fé; ou, pensando particularmente no caso de quem se dedica ao conhecimento teológico, que o sujeito se torna descrente se estuda demais. Mas será que é isso que Paulo está dizendo?
Se olharmos atentamente a toda a passagem (8:1-13), veremos que o conhecimento é um elemento importante aqui, mas não é o centro da questão (embora meu foco aqui seja falar sobre ele). O centro tem a ver com uma disputa entre facções dentro da comunidade cristã sobre a licitude ou não licitude de comer um certo tipo de comida (aquela que era sacrificada aos ídolos). A existência de facções não é uma grande surpresa se considerarmos que isso aconteceu na cidade de Corinto.
Corinto era uma cidade multicultural. Nela conviviam judeus, cidadãos romanos, gregos, imigrantes (sírios e egípcios); era uma verdadeira Babel sociocultural. Era também uma cidade plurirreligiosa. A adoração monoteísta caminhava lado a lado com a politeísta (deuses greco-romanos, deuses estrangeiros, sem falar no próprio Imperador). A igreja, por sua vez, não estava alheia a essa diversidade. Era étnica (judeus e “pagãos”) e socialmente diversa – do tesoureiro da cidade ao escravo; de camponeses à gente da elite.
Corinto não era Atenas, mas a classe alta nutria pretensões filosóficas e se orgulhava de seu conhecimento e sabedoria. A questão do texto está diretamente associada a isso. Por um lado, judeus e cristãos agradecem a Deus pela comida; por outro, os pagãos honram aos deuses nos atos de celebração envolvendo refeição.
A comunidade cristã em Corinto estava dividida entre, pelo menos, duas facções: (a) Os “fortes”, eram aqueles que diziam, acertadamente, que ídolos e deuses não eram nada, pois no fundo só há um Deus. Eram “fortes” porque privilegiados por esse “conhecimento” e pela “liberdade” que gozavam na participação social; (b) os “fracos”, em geral, eram provavelmente pagãos recém-convertidos; em sua vida anterior, estavam acostumados com o sacrifício aos ídolos, por isso, ao ver irmãos e irmãs participando dessas refeições, sua consciência era maculada, escandalizada.
Tudo isso chegou a Paulo, algum tempo após sua partida, em forma de “bomba atômica”. Sua preocupação pastoral e recomendações nos traz, ainda hoje, luz sobre o que fazer, como cristãos maduros e sóbrios (10:15), diante de disputas facciosas. Para meus propósitos aqui, relativos à busca de um saber edificante, ficam três aprendizados:
Primeiro: Aprender a temperar nosso conhecimento com amor.
Como fala a pessoas maduras, Paulo começa com um paradoxo: (a) todos temos algum conhecimento (v. 1); (b) mas quem acha que sabe, ainda não aprendeu como saber/pensar. É preciso desconfiar do que já sabemos e de como fazemos uso do que sabemos, porque o conhecimento infla (ensoberbece, nos faz orgulhosos), e se torna instrumento de destruição (ser mais que os outros). E isso é muito importante: uma pessoa pode até desempenhar uma função ou realizar uma performance melhor que outra pessoa, mas isso não faz dela uma pessoa melhor.
A questão não é abandonar o conhecimento, mas temperar o saber com o amor. É perguntar se o conhecimento nos faz pessoas melhores (e não apenas mais sabidas). Além disso, reconhecer que a gente só sabe em parte (1Co 13:9) é um modo cristão autêntico de habitar harmoniosamente na casa do conhecimento e na casa do amor, até que os dois formem uma só casa.
Segundo: Aprender que, mais que o saber, o que importa são as pessoas.
Paulo diz: eu sei, vocês sabem – o ídolo não é nada! Deus é tudo, há somente um Deus! Essa comida é igual a qualquer outra. Mas não é todo mundo que sabe disso. Portanto, saber não basta, não pode preencher tudo. “O conhecimento verdadeiro não é insensível”. Não é insensível ao outro, à pessoa, que está além do saber, o irmão e a irmã de caminhada, a quem prezamos.
Na década de 70, em O sofrimento que cura, Nouwen dizia lamentar ver sua igreja dividida em questões (gênero, homossexualidade). Então dizia que uma igreja dividida em questões, tende a se esquecer das pessoas. Hoje somos um país também dividido por questões (políticas, ideológicas, religiosas, sociais, etc.). Por causa dessas coisas nos tornamos inimigos de quem pensa e se posiciona de modo diferente, ao ponto de demonizar e excluir tal pessoa de nosso rol de relacionamentos. Muitos (ditos) não-cristãos fazem isso; e muitos (ditos) cristãos também.
Jesus, o fundador e cabeça da Igreja, porém, sempre acreditou que entre nós podia e devia ser diferente: que o primeiro é o que serve; que mulheres e homens têm igual importância; que os últimos serão os primeiros; que pequeninos, pecadores, publicanos e prostitutas nos precederiam no reino dos céus; que pessoas importam mais que coisas ou questões.
Terceiro: Aprender que com grandes saberes vêm grandes responsabilidades (essa eu parodiei, mas penso que vale muito aqui).
A começar pela responsabilidade de não colocar “em prática” tudo o que sabe; a abrir mão do “meu direito”, da “minha liberdade”. É obvio que, numa sociedade capitalista, liberal, narcisista e individualista isso soa como uma tremenda heresia!
Mas Paulo era universalista. Ele era bobinho o bastante para acreditar que, às vezes, o particular precisa ser sacrificado em favor do todo – muito antes disso ser tão polêmico como é hoje. E mais: ele usou seu próprio exemplo como alguém que, “mesmo livre das exigências e expectativas de todos”, tornou-se “voluntário para com todos a fim de ganhar todo tipo de gente” (1Co 9.19). Ele não queria só falar, mas também encarnar a mensagem.
Então, já que o ídolo não é nada; já que comer ou deixar de comer não nos faz mais próximos de Deus, nem melhores que ninguém, é o seguinte: abram mão! Não sacrifiquem as pessoas mais fracas por causa do seu conhecimento e da sua liberdade, não! Porque se vocês macularem isso, se vocês ferirem essas pessoas, ao próprio Cristo estarão fazendo.
Então, podemos perguntar: como é a que a gente pode fazer isso, Paulo? É simples, ele disse, vocês têm que agir de modo semelhante a Jesus (Cf. Fp. 2.5-11). Em outras palavras, na contramão de um mundo inflado e tão cheio de si; na contramão de religiosos que só querem se encher do sobrenatural de Deus; na contramão de suas teologias, ideologias, e causas partidárias: ESVAZIEM-SE!
Num mundo dividido em facções, que a gente não se esqueça de Jesus; nem de que naquela cruz, todo direito e toda liberdade foram redimidos, mas também esvaziados. Que o saber, ainda mais o teológico, deve existir para ajuntar e edificar, e não para dividir. Se vier a dividir, como ocorreu com Jesus, que não seja pela nossa soberba, mas pelo incômodo gerado por nosso testemunho e nossa obediência a Jesus.
Jonathan