terça-feira, 22 de março de 2016

Do amor ao inimigo


Vocês ouviram o que foi dito: ‘Ame o seu próximo e odeie o seu inimigo’.  Mas eu lhes digo: Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem,  para que vocês venham a ser filhos de seu Pai que está nos céus. Porque ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos. Se vocês amarem aqueles que os amam, que recompensa receberão? Até os publicanos fazem isso!  E se vocês saudarem apenas os seus irmãos, o que estarão fazendo de mais? Até os pagãos fazem isso! Portanto, sejam perfeitos como perfeito é o Pai celestial de vocês (Mt 5.43-48, NVI).
De todas as palavras da Bíblia, o "dar a outra face" e "amai vossos inimigos" me parecem ser as que vão mais contra a natureza humana e tudo quanto eu prefiro e tendo a fazer. Por isso, talvez, sejam temas ausentes da pregação cristã, uma vez que é tão difícil viver.

Então, é um tema que a gente trata com certo desdém, como se fosse uma história que Jesus contou um dia, mas que não necessariamente tem que ter a ver com nossa vida (Jesus só podia estar de brincadeira se ele achava que a gente seria capaz de colocar isso em prática).  É "utopia", diriam alguns. Mas para que serve a utopia? Não para negar a realidade, mas para iluminá-la; não para nos distanciar do chão, mas para nos fazer andar melhor nele.

Aqui está o meu problema com aqueles que vivem dizendo que Jesus era simples e de que o evangelho é simples. Pode, às vezes, partir de um ponto muito simples; e pode até ser simples de entender. Mas será simples de viver? Se fosse simples de viver, não seria nem necessário gastar tempo refletindo sobre isso. Mas não. Abraçamos o evangelho não apenas com o (suposto) entendimento do evangelho, mas, sobretudo, com a vivência do evangelho. E faz parte do processo de amadurecimento na vida (cristã) ter de conviver e lutar com as poucas ou muitas inadequações existentes entre o modo como entendemos e o modo como vivemos.

Afinal, o que Jesus está nos convidando a fazer nesse texto, quando fala de uma forma mais ampla e complexa de amor, que é o amor aos nossos inimigos e perseguidores?

I. Um convite à inversão de nossos padrões culturais (v. 43-44)

Observe que ele começa com um "vocês ouviram o que foi dito". A antiga lei, com a qual eles estavam acostumados, partia de um princípio de retribuição: se pegou, pague; se apanhou, bata; se recebeu amor, dê amor; se foi odiado, odeie; se venceu, receba o prêmio; se perdeu, lide com a derrota; etc.

É a maneira como nossa cultura - e a nossa justiça, distributiva e retributiva por natureza - tende a nos impulsionar a agir. Como? Dando inúmeros exemplos diários, da escola à universidade, do trabalho ao trânsito, do bar à igreja, de que é assim que as coisas funcionam "aqui em baixo". E, quando menos se percebe, já estamos normalizando esse modo de ser e nos adequando a ele, afinal, para sobreviver na selva é preciso, às vezes, agir como selvagem.

O convite de Jesus é para que desafiemos isso, invertendo os padrões. Aceitar o convívio harmonioso com quem te persegue não basta, é preciso amar o inimigo e orar por ele. 

Nos tornamos, assim, bobalhões que aceitam tudo e abaixam a cabeça para a injustiça? Não. Jesus foi um bobalhão? Acho que não. Ele lutou, mas com armas diferentes das de seus algozes. Sua justiça era a do reino; e a justiça do reino caminha de mãos dadas com o amor. Não pune, mas perdoa; não bane, mas restaura. Essa é a diferença entre a justiça retributiva e a justiça restauradora, como demonstrou Desmond Tutu em seu livro Por que Deus não é cristão e outros ensaios: enquanto o propósito da primeira e punir o perpetrador, o da segunda não é punitivo, mas restaurador, curador. Segundo ele, "a justiça restauradora acredita que um crime causa uma brecha, perturba o equilíbrio social, o qual, por sua vez, deve ser recuperado, assim como a brecha precisa ser fechada, em um processo em que o ofensor e a vítima possam se reconciliar e retornar à paz" (p. 62).

Assim, o amor ao inimigo não é um convite à subserviência, é um convite à revolução! Mas essa revolução precisa começar primeiro dentro da gente., o que nos remete a um segundo convite implícito no texto.

 II. Um convite para que abracemos nossa filiação (v. 45)

Começa dentro de nós, como eu disse, na medida em que avaliamos quem somos diante de Deus. Nós somos "filhos". E o que nos torna filhos? O fato de que somos nascidos do Pai, e agimos conforme ele age. E como age o Pai? Aqui tocamos num ponto importante. Para responder a essa pergunta, é útil que nos voltemos para dentro de nós mesmos, e nos perguntemos: Como nós temos agido ou como tendemos a agir?

Brennan Manning, no seu livro A sabedoria da ternura, disse que certa vez fez a si mesmo a pergunta: "Será que eu gasto os meus dias amando?". Depois de um exame de alma, a resposta foi "sim". O problema foi quando ele descobriu que dividia a comunidade humana em certas categorias. Então, ele disse: "Há algumas poucas pessoas que amo, certo número de pessoas de quem gosto e uma multidão em quem raramente penso, a quem me dirijo de maneira proativa ou por quem não manifesto qualquer interesse" (p. 85).

Essa talvez seja uma conclusão a que a maioria de nós, incluso a mim, chegaria caso se fizesse a mesma pergunta. Nós fazemos acepção entre pessoa e pessoa. Achamos isso natural. Amamos a quem é mais natural e fácil de amar. E no mais baixo escalão dessa acepção, colocamos nossos inimigos e pessoas que nos perseguem. Como amá-las? E mais do que isso: por que eu deveria amar essa pessoa? O que ela fez para merecer? Pelo contrário, muitas vezes as pessoas nos dão mais motivos para ódio e repulsa que para o amor - o que coloca em cheque a dependência do amor em relação ao mérito e ao dever.

Cito dois casos que aconteceram numa história recente, para nos ajudar a refletir. O primeiro ocorreu em 2012, com um menino do Rio de Janeiro, Wesley, de 2 anos, que morreu após uma parada cardíaca, com escoriações e fraturas no corpo e cabeça. O pai e a madrasta foram acusados de cometer o crime. Fico pensando se fosse com meu filho, uma violência bruta e covarde dessas: o que eu faria? Se você fosse a mãe desse menino, o que seria capaz de fazer com quem praticou essas atrocidades? O segundo aconteceu no mesmo ano em um cinema, em Colorado, nos EUA, quando um atirador de 24 anos fuzilou a plateia, deixando 12 mortos, e mais de 70 feridos, sendo 11 em estado grave. Se você fosse uma pessoa próxima de alguma das vítimas, perdoaria o seu algoz? Seria capaz de amá-lo sendo quem ele é, tendo feito o que fez?

É natural que desejemos que se faça justiça e que as leis sejam aplicadas a cada um dos culpados. Mas, e depois? Não há nenhuma possibilidade de perdão e restauração ao condenado? Difícil, certamente difícil pensar nessa pessoa andando livre pelas ruas outra vez, enquanto aqueles que amamos se foram. Mas quem sou eu para exigir seu banimento para sempre? O ódio e a ausência de perdão não são também formas de se manter também preso com eles, formas de autopunição?  E o que Deus faz? Bem, Jesus diz que Ele ama, dá o seu melhor a despeito de quem seja, bom ou mal - como lemos: ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos.

Sei que não é fácil. Mas, ser filhos e filhas de Deus é fazer o que Ele faz, mesmo que nunca no mesmo nível. Como lemos em João: "Aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus" (1Jo 4.7). Para isso, é preciso perceber o convite oculto de Deus nesse texto, como demonstro a seguir, e que pode ser um tanto aterrador.

III. Um convite para um amor que transcende as categorias de bem e mal... e que cobre uma multidão de pecados.

Deus nos convida a amar nossos inimigos por que Ele ama os seus inimigos: nós. Deus demonstrou seu amor por nós sendo nós ainda pecadores ou inimigos de Deus (Rm 5.8).  E a pergunta crucial é: algum dia deixamos de ser pecadores?

Não fosse pela graça, nunca deixaríamos de ser inimigos de Deus e, se não for pela graça, que todos os dias nos alcança, jamais deixaremos de ser. Na verdade, de muitas maneiras continuamos a ser algozes de Deus. Então, o amor de Deus transcende as categorias de bem e mal porque Ele não distingue quem vai amar. Se estamos e permanecemos no seu amor, essas distinções precisam cada vez menos fazer parte de nós.

Quero citar os versos 46 e 47 de nosso texto base na tradução A Mensagem, de Eugene Peterson:
“Se tudo o que vocês fazem é amar os que são amáveis, esperam um bônus? Qualquer um pode fazer isso. Se vocês simplesmente dizem 'olá' a quem os cumprimenta, esperam receber uma medalha? Qualquer pecador básico pode fazer isso”.
É como se Deus estivesse nos dizendo: mostrem ao mundo um tipo de amor que ele não conhece, o amor com o qual eu os amo todos os dias, o amor que revoluciona e provoca uma inversão de todos os valores. É disso que estou falando...

A difícil questão, porém, permanece sendo: mas COMO posso amar meus inimigos? Talvez um bom começo seja a partir de certos reconhecimentos...

(1) Primeiro, reconhecendo a inaptidão natural que todo temos para amar nossos opositores.

(2) Segundo, reconhecendo o amor de Deus por nós mesmo em nossa condição de seus potenciais, quando não reais, inimigos.

(3) Terceiro, reconhecendo a revolução de graça que esse amor opera em nós, quando assumimos nossa condição de filhos de Deus e agentes de seu reino de vida no mundo.

Amar ao inimigo é uma daquelas coisas com as quais temos de caminhar a vida toda e, à luz de cada situação e de um exame sincero de consciência e de alma, colocar na mesa nossas imperfeições, inadequações e fraquezas, esperando pela misteriosa força que Deus supre. Não se trata de disciplina apenas, do cumprimento de um mandamento apenas. Só pela graça podemos agir com graça.

Termino com uma oração conhecida, a "Oração de São Francisco". Precisamos pendurá-la diariamente nas paredes dos nossos corações, especialmente nesse tempo de polarizações em que temos vivido:

Senhor, faze de mim um instrumento de tua paz
Onde houver injustiça, que eu leve o perdão
Onde houver ódio, amor
Onde houver dúvida, fé,
Onde houver desespero, esperança,
Onde houver trevas, luz,
Onde houver tristeza, alegria.
Ó mestre Divino, faze com que eu não busque mais
Ser consolado do que consolar
Ser compreendido do que compreender
Ser amado do que amar
Pois é dando que recebemos
É perdoando que somos perdoados,
 e é morrendo que se vive para a vida eterna… Amém!
Jonathan