segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Sexualidade e espiritualidade: uma fusão libertadora (Parte Final)

sex-spirituality 3

As considerações até aqui feitas são óbvias, básicas e elementares ao pensamento cristão sobre o tema. Mas o óbvio e o básico há muito têm sido negados na prática histórica das igrejas. Penso que o sexo foi criado por Deus para ser benção. E ser benção implica ser concebido num contexto de amor e responsabilidade, afinal de contas “tornar-se uma só carne” não é algo banal, embora em nosso mundo tenha se tornado. O que me encabula demais é que a igreja transformou a sexualidade em sua “pedra de toque”; ela tem as interpretações corretas e as vias certas a se seguir. Nada pode sair desse eixo, muito menos cabe questionamento. E assim, vamos transformando em maldição aquilo que Deus declarou como sendo benção. Cortamos as verdades de Deus do tamanho de nossa mente teológica auto-suficiente e assim perdemos a dimensão de honestidade intelectual, que deveria ser tão cara a qualquer cristão. Tão focados nos costumes e nos dogmas, nos omitimos de nos acercar da realidade e respondê-la com relevância.

Não deveríamos, por exemplo, ser cínicos ao ponto de ficar dizendo “sexo é bom”, do nosso confortável mundo matrimonial, e olhar para os jovens e dizer “mas você não pode, viu”. É como colocar um pote de sorvete, com tudo o que se tem direito, em frente a uma criança, dizer “hum, está muito gostoso”, para em seguida afirmar: “Ah, mas você não pode, porque ainda não tem idade pra comer essas coisas”. É torturante, desonesto e uma negação da vida. Diálogos honestos e conscientes, tanto da realidade, quanto da complexidade que envolve o tema, são necessários. Falar do tema de uma maneira verdadeiramente humana, como diz Kierkegaard, é necessário.

Mas, para falar de maneira humana, é preciso amar e aceitar a humana condição – onde vige tanto a luz quanto as trevas, tanto a porção simbólica quanto a porção diabólica. Pois, como lembra Galilea, o que não pode ser assumido não pode ser redimido. Cristo assumiu nossa condição para, só então, poder redimi-la. E é precisamente aqui que, de acordo com Galilea, reside a originalidade e autenticidade da espiritualidade cristã:

Em que seguimos um Deus um Deus que assumiu a condição humana, que teve uma história como a nossa, que viveu nossas experiências, que fez opções, que se entregou a uma causa, pela qual sofreu, experimentou êxitos, alegrias e fracassos, pela qual entregou sua vida, esse homem, Jesus de Nazaré, igual a nós menos no pecado, no qual habitava a plenitude de Deus, é o modelo de nosso seguimento.[1]

Abraçar nossa condição é uma forma de humanização da espiritualidade cristã, pois nela somos convocados a assumir jubilosamente quem somos, como e para quê fomos criados, reconhecendo também o desvio em que vige a fraqueza e a deficiência que nos são inerentes. Uma humanidade mais divina (espiritual) e mais humana ao mesmo tempo é aquela que não teme suas obvias deficiências, mas as reconhece; é aquela em que a vacância ou o esvaziamento de poder (humano) é um convite ao poder divino e a um divino caminhar, em que não apenas trilhamos por caminhos, mas criamos caminhos onde já não há mais caminho. E esta é uma atitude tremendamente libertadora, pois abandonamos o controle, a ânsia por poder e por dominação, para encontrar o livre caminho do amor. Outra vez cito Galilea: “Nós nos humanizamos na medida em que deixamos que Deus seja Deus, amor gratuito, não passível de manipulação e, por isso mesmo, capaz de deixar o homem ser plenamente homem, também livre e não passível de manipulação”.[2]

Finalmente, andar com Deus é o modo mais eficaz e sublime de se humanizar e de se obter dignidade humana. Pois não são nossos recursos, trabalho e inteligência, ou nossas identidades periféricas e de gueto (ser evangélico, ser negro, ser gay, etc.) que nos “dignificam”, mas é a graça que nos dignifica e que dá sentido à vida. De igual modo, o espírito de gratidão e de gratuidade nos dignifica, à medida que representam a admissão de que fora de Deus não temos mais que uma mera ilusão de realização, enquanto em Deus nos realizamos em simplesmente sermos aceitos como seus filhos e filhas. É na obtenção dessa dignidade em especial que nos capacita para, e legitima a, luta pela dignidade de nossos irmãos e irmãs de caminhada na vida, como um processo recebido, gestado e orientado em e para Deus e sua justiça, vontade e glória.

Jonathan

Referências bibliográficas


[1] GALILEA, Segundo. Seguir a Cristo. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1979, p. 23.
[2] GALILEA, Segundo. O caminho da espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 195.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Sexualidade e espiritualidade: uma fusão libertadora (Parte II)

sex-spirituality 2

Resulta da desconfiança mencionada ao final do primeiro post, que a sensualidade só é licita no universo das sensações espirituais, mas não no da sexualidade. Neste ínterim, a espiritualidade não pode se desenvolver na mesma casa em que dormita a sexualidade, por isso ou transportamos a espiritualidade para outro lugar – se no corpo ou fora do corpo, Deus o sabe – ou fazemos de tudo para manter adormecidos os estímulos à sexualidade, tentando anulá-la no ser. Temos, assim, de um lado, uma sexualidade desespiritualizada (neologismo) e uma espiritualidade assexuada e, como tal, desencarnada. O problema disso tudo é, de novo, que continuamos criando gente mais esquizofrênica, doente e mal resolvida, com rostos envernizados num ambiente altamente hipócrita de negação, culpa, sublimação e vigilância. E as pessoas vão fingindo que são felizes com seus casamentos sexualmente mornos, com seus namoros monitorados (até certo ponto), com suas escapadas culposas, e com a sua escolha por “esperar” o momento certo e o príncipe ou princesa encantados que Deus reservou, dentre tantos/as pretendentes no mundo, exclusivamente para elas.

Uma espiritualidade sadia, porém, começa com o entendimento de que o maior pecado talvez seja o de desnaturalizar, segmentar, segregar ou esquartejar aquilo que o Criador fez para que se mantivesse unido e declarou como sendo bom e natural. Nossa mentalidade religiosa ou teológica é tão viciada nos preconceitos culturais que somos capazes de aconselhar a pessoa (ou digamos, um casal) para que ore à beira da cama antes do coito nupcial, mas torcemos o nariz e somos moralmente judiciosos quando alguém narra a história de outro alguém que se sentiu excitado (com “tesão”) na igreja durante o louvor ou a pregação, por uma palavra um um apelo mais sensual. Isso é esquizofrenia hipócrita e desumanizante, caros/as companheiros/as!

No livro Deus e sexo (2011), Rob Bell propõe uma síntese interessante sobre a interação entre espiritualidade e sexualidade. Quando levamos em consideração a indivisibilidade prática – e menos a divisibilidade teológico-doutrinaria – do ser humano, torna-se natural e obvia esta conexão, pois elas estão juntas, queiramos ou não. Então, pensar teologicamente, agir pastoralmente e viver integramente a partir de tal junção torna-se um meio de corrigir rotas esquizofrênicas.

Primeiro, porque as histórias da Bíblia convergem para a “conexão”, de um Deus que a todo o momento deseja relacionar-se com seu povo e sua criação, mas cuja intenção nem sempre é genuinamente correspondida. Isso, devido aos muitos obstáculos criados pelo ser humano, que o conduziram ora a um relacionamento superficial com Deus, de barganha, legalismo e expectativas, ora a uma rejeição prática, à medida que se assentiu ao convite tentador da serpente para ser “como Deus”, declarando, assim, sua (nossa) independência.

Segundo, porque as pessoas de nosso tempo estão cada vez mais “antenadas” a tudo que acontece ao seu redor, e cada vez menos capazes de contrair experiências duradouras e profundas, vivendo, portanto, uma história sem raízes, relacionamentos descartáveis, vidas que não se conectam a outras vidas, e cujo sentido é, na realidade, um não-sentido, uma vez que tudo passa a girar em torno do “sentir”. Fez sentido?

A posição de Bell, todavia, é suficientemente clara: você pode, de diferentes maneiras (e o sexo é uma delas), “estar” com um número variado de pessoas e não permanecer conectado a nenhuma; de igual modo, pode-se ter uma gama apreciável de performances rituais e “espirituais” para Deus ou até gabaritar na prova de conhecimentos bíblicos, sabendo a Bíblia “de cabo à rabo”, e não saber absolutamente nada sobre Deus, visto que Deus é amor, e está muito mais interessado na intensidade de nosso amor que na quantidade de nosso conhecimento, sendo o verdadeiro saber – dádiva Divina – qualidade inerente daquele que ama, conforme Deus ama (ágape).

E o amor pressupõe conexão e profundidade. E o sexo com amor é o prazer que conecta, liberta e completa os amantes para serem um do outro e um para o outro. Não foi assim que Deus designou no princípio? Da costela do homem, Deus havia criado a mulher. Eles não apenas tinham a mesma natureza (húmus – pó – humano), mas haviam sido criados para viver em permanente conexão entre si, e com seu Criador. “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne” (Gn 2.24). Uma só carne, ser, família, corpo, alma e espírito, indivisíveis!

O sexo é uma dessas bonitas e benditas expressões da sexualidade. Duas pessoas diferentes e especiais se unem; seus corpos se tocam, se interpenetram; de duas carnes, uma só se faz. E a conexão não está apenas nos corpos que se juntam, mas nas almas que se encontram (onde está o corpo está a alma). Assim, pode-se dizer como a mulher no Cântico dos Cânticos: “Eu sou do meu amado, e o meu amado é meu”. E assim se completa o desejo do Senhor: pela realização do ser humano, como mais fina expressão de seu amor e presença Nele e com Ele. Logo, esse amor não pode ser algo abstrato ou virtual, como um beijo que se manda pelo Skype, ou uma mensagem pelo Facebook. Mas é a presença de Deus reverberando em nós, através de relacionamentos vivos e reais entre pessoas de carne e osso; é o Deus-concoso-aqui-já-sempre.

O pecado, portanto, não habita na sexualidade ou no sexo em si, nem em nada que lhe diga respeito. Ele habita, sim, no ser indivisível. Enquanto o ser estiver corrompido, todas as suas relações também estarão. O amor, por sua vez, é o “vínculo da perfeição”, como diria João. Onde houver amor, haverá o sólido convite e possibilidade para que vivamos a plenitude de Deus com alegria, gozo e liberdade, como expressa a célebre frase de Agostinho: “Ame e faze o que quiseres”. Sem amor nada somos e tudo o que fazemos torna-se sem sentido, parte de uma precária provisoriedade.

(Continua…)

Jonathan

domingo, 13 de outubro de 2013

Sexualidade e espiritualidade: uma fusão libertadora (Parte I)

Erotismo-arte

Antes de tudo, começo dizendo que espiritualidade, para mim, tem a ver com um modo de ser, pensar e agir daquele ser que nasceu de novo, nasceu do Espírito, e agora é “espírito” (ser novo vivente). Isto não significa que se desencarnou ou desumanizou. Pelo contrário, ele/a se re-humanizou no Espírito, nasceu de novo, é novo humano. Jesus, em seu diálogo com o fariseu Nicodemos no Evangelho de João, disse que: “A não ser que alguém se submeta a essa criação original, a criação na qual ‘o vento pairava por sobre as águas’, o invisível movendo o visível, um batismo para a nova vida, não lhe será possível entrar no reino de Deus”, e que “a pessoa que tem um nascimento interior é formada por algo que você não pode ver nem tocar – o Espírito – e se torna espírito vivo” (Jo 3.5, 6 – Tradução A Mensagem).

No começo de toda vida espiritual, portanto, está a experiência de criação de um novo ser pelo Espírito, ser este que não mais se rende à sua própria vontade, mas à vontade do Pai, revelada em sua Palavra e encarnada na Pessoa de Jesus Cristo.

Na prática, porém, “espiritualidade” é um tema muito mal-elaborado e também muito mal-compreendido. Nossa forma de compreender e elaborar nossas “espiritualidades” é marcadamente cultural. E nossa matriz cultural de concepção da espiritualidade ainda, salvo exceções, é platônica e dualista. O platonismo (ou o neoplatonismo) fez um grande estrago na visão (teológica) cristã (o que inclui a espiritualidade); isto, pois negou a corporalidade (como dimensão essencial humana), a materialidade, nos afastando desse mundo para um plano ideal, transcendente ou futuro. A inevitável associação da palavra com um mundo à parte, para o qual migramos, de tempos em tempos, em busca de enlevo e paz na alma, fez com que essa espiritualidade perdesse qualquer contato mais significativo com a situação vivida. Daí provém muitas das críticas a alguns modelos de espiritualidade como sendo “alienantes”, “desencarnados”, sem repercussão na vida e sem conexão com a missão. Daí a necessidade de superar nossos dualismos e esquizofrenias platonizantes.

Essa superação, porém, segundo certa interpretação, seria algo improvável, pois o próprio Paulo havia gerado um dualismo permanente à fé. Há uma confusão, nesse caso, entre dualidade e dualismo. Dualidade é a convivência inevitável entre dois elementos distintos, dois modos de existência ou orientação da vida – como o de Carne e de Espírito. O dualismo, aqui entendido, indica uma polarização entre dois elementos – bem e mal, matéria e alma, o que gera uma esquizofrenia, pois a pessoa vive no corpo, mas é ensinada que mais importante é a alma; seu ser é corporal, mas o espiritual pertence à dimensão do transcendente, onde somente o espírito ou a alma são elevados. Ao corpo é relegado o status de habitat do pecado – especialmente os ligados à luxúria.

O equívoco desta percepção está não apenas de subtrair a materialidade da espiritualidade, mas em atribuir responsabilidade pelo pecado – ou a lei que habita em nossos membros, como diria Paulo (Rm 7) – somente à corporalidade. É um equívoco pois o entendimento paulino de carne provavelmente advém da compreensão do AT, que engloba o ser humano como um todo-indivisível. Segundo José Comblin, em Paulo “carne” não significa apenas o corpo como que distinto da alma, mas “o homem todo na sua fraqueza, mortalidade, tentação de pecado. Assim, a carne está mais no intelecto e na vontade que na matéria”.[1] Ser “carne” e ser “espírito”, nesse aspecto, são modos coexistentes, embora distintos, de vida. O primeiro é o modo de quem busca suficiência em si, e o segundo que encontra a suficiência em Cristo.

Como esclarece Gottfried Brakemeier,

Se o ser humano, à parte da fé, é integralmente carnal, com inclusão de seu espírito, o corpo já não mais pode ser o exclusivo culpado do pecado. Não se pode incriminá-lo de segurar a pessoa nas esferas inferiores do pecado e de impedir a ascensão a Deus. O pecado é ‘ato coletivo’ de todas as faculdades humanas, com destaque à vontade, ao coração, ao espírito.[2]

Jeremias (capítulo 17) foi quem disse que o pecado de Judá estava gravado no coração com ponta de diamante. A palavra aqui usada diz respeito a uma ofensa, não verbal, mas “gravada” no coração (centro da vontade e decisão do ser). Tem uma dimensão espiritual, mas aqui é identificado com coisas muito concretas no povo de Israel (idolatria, injustiça, impiedade). Como se Deus estivesse dizendo: “Para onde você vai, olha ou toca, fica ali um rastro do teu pecado. Se as tuas ações não o refletem, seu coração já o faz”. Então isso afeta a integralidade de nosso ser; não somente uma parte ou área da vida, como os dualistas insistem em querer nos fazer crer. Como ressalta Comblin, “no evangelho cristão tudo no homem é corporal, tudo é espiritual, tudo é alma. Não há nada fora do corpo. Pois o espírito está também no corpo, ele é o corpo humano como orientado sob a moção de Deus”.[3]

Ouvimos de alguns que não se pode nem “humanizar”, nem “espiritualizar” as coisas – cacoetes do discurso evangélico que denotam nossa compreensão média de espiritualidade, ainda dualista, pois separa o humano do espiritual e o espiritual do humano – o mesmo se poderia dizer da santidade. Mas quem é o santo? Não é um anjo ou ser espiritual ou elevado que se desumanizou. Antes, é um ser humano que encarnou a vida de Deus, e que tornou concreta a obediência ao Deus da vida. Então, sem novidades nisso, nossa espiritualidade continua desprezando a imanência e estigmatizando o corpo – embora toda a eletricidade, as fortes emoções, as fruições e pirações espirituais ela sinta no corpo. Os desejos, os ímpetos e as paixões, porém, prosseguem debaixo de muita desconfiança.

(Continua…)

Jonathan

Referências bibliográficas


[1] COMBLIN, José. Antropologia cristã. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990, p. 77.
[2] BRAKEMEIER, Gottfried. O ser humano em busca de identidade. Contribuições para uma antropologia teológica. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2002, p. 118.
[3] COMBLIN, OP. Cit., p. 77.