quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Sapato velho

Pair of shoes, 1886

"Pair of Shoes", de Vincent van Gogh, 1886. Um dos meus prediletos dele. Mais do que o retrato de um sapato velho e surrado, ela é a representação da estrada - 'só esse sapato sabe por onde caminhei e todos os conflitos que enfrentei' - e do estado de alma de seu dono, como também do próprio pintor. Entre 1886-1888, durante seu tempo em Paris, Van Gogh pintou vários quadros de sapatos. Em 1888, escrevendo ao seu irmão, Theo, ele revelou um pouco do que havia por trás de sua arte-vida àquela altura:

"Às vezes me sinto muito fraco para lutar contra as circunstâncias existentes, e eu deveria ser mais rico, inteligente e jovem para vencê-las. Felizmente para mim, eu não mais anseio pela vitória, e tudo o que eu busco é que a pintura seja um meio de tornar a vida mais suportável" [tradução minha, veja mais em: http://blog.vangoghgallery.com/].

Henri Nouwen inspirou-se muito em seu conterrâneo holandês em seus escritos sobre espiritualidade. Precisamente porque Van Gogh, além de um artista brilhante (embora não reconhecido em seu tempo), foi homem sensível, sofrido, humano e que nunca escondeu suas sombras nem seu lado trágico de ninguém; pelo contrário, elas sempre estiveram lá, bem expostas em sua arte e em sua própria história. Isso para mim tem um nome: integridade, peça rara em nossos dias.

Van Gogh lutou muito, mas não suportou o peso da batalha. Suicidou-se em 29 de julho de 1890, aos 37 anos. Sofria de uma doença psíquica grave, semelhante ao transtorno bipolar do humor, hoje bastante conhecido. Não tenho o direito de julgá-lo, nem a ninguém em condições semelhantes. A vida é um mistério insondável. Cada um sabe bem dos fardos, dores e limitações que carrega (mesmo que prefira sublimar). Por isso, nela não cabem respostas fáceis, nem soluções paliativas. A vida foi feita pra ser vivida, e só há uma para se viver; seus paradoxos existem para ser encarados; sua finitude deve ser jubilosamente assumida, e não negada. A realidade do conselho de Paulo, o apóstolo, deve continuar a saltar aos olhos de quem sabe, mesmo que minimamente, de si: aquele que pensa estar de pé, cuide para que não caia.

Cuidemos de nós, cuidemos das pessoas, sabendo que a iminência da queda é proporcional a iminência da vida.

Jonathan

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O ser no limiar entre a fé e a incredulidade

UpsideTime_BrianMatiash

Às vezes tenho a impressão de que a religião, que, a meu ver, deveria ser a amiga número 1 da dúvida, tornou-se sua pior e mais cruel inimiga. Porque a religião lida diretamente com a fé das pessoas, e, embora nem sempre pertencer a uma religião seja garantia de uma fé viva (muitas vezes é exatamente o oposto), em tese, ela se nutre e cresce a partir da fé pessoal e coletiva. Especialmente em contextos fundamentalistas, em que se exige uma responsividade segura do fiel em relação à espécie de doutrina na qual professa crer, e em que, como contrapartida, oferece-se a revelação da verdade bíblica e uma promessa ao fiel de que, nesta vida ou pelo menos na eternidade, todo o seu sofrimento será eliminado, a fé aparece como arquiinimiga da dúvida, e duvidar passa a ser sinônimo de blasfemar, apostatar da fé.

Peter Rollins em seu livro Insurrection (2011), tem como foco de análise a questão da dúvida. No capítulo 2, ele fala sobre a experiência dos líderes na igreja com a dúvida. Numa situação ideal, para que como igreja participemos da crucificação, ele defende que precisamos de líderes que experienciem pública e abertamente “a dúvida, a incerteza e o profundo mistério, líderes que as vejam como parte da fé cristã e importante para o contínuo desenvolvimento de uma espiritualidade sadia e propriamente cristã” (p. 65). Concordo com Rollins quando ele também observa que não é que não existam líderes que experimentem estas coisas; o problema reside em encontrar líderes que admitam experimentá-las – ainda que, secretamente, muitas vezes, enfrentem momentos de incredulidade, ou pior: enquanto exteriormente lutam para manter uma imagem austera de fé, interiormente já deixaram de acreditar nas coisas que pregam. Nas palavras do autor:

Todos sabem que a maioria dos pastores tem duvida e, de tempos em tempos, experimenta um sentimento de ausência divina, e sabe-se que normalmente é bem mais que isso. Também é evidente que eles frequentemente sentem-se impedidos de expressar isso por meios públicos quaisquer – exceto em casos em que adotam uma linha segura de afirmação de que Deus é grande o bastante para conter a dúvida (...). Nas raras ocasiões em que o pastor se levanta e declara abraçar o desconhecido, uma crise entre os congregantes pode ocorrer. Não porque a congregação agora duvida, mas porque a fé do pastor gerou uma barreira psicológica protetora que conteve a dúvida deles. (...) Apenas quando o pastor bane a dúvida ou é substituído por alguém que possa ocupar o papel crente-em-nome-de-nós, a igreja pode outra vez agir como um cobertor de segurança metafísica, prevenindo-nos de experimentar a ansiedade de nossa existência (p. 66).

Esse quadro é muito triste e adoecedor para ambas as partes, pastor e congregação. No entanto, quando lemos as Escrituras de modo sério e abrangente, e não simplesmente procurando justificativas furtivas em versículos aleatórios, percebe-se que o oposto pode ser dito e feito em relação à dúvida. A maior parte dos chamados “heróis da fé” teve dúvidas, e, em algum momento, cometeu deslizes tomando “os pés pelas mãos”. A lista de Hebreus 11 é emblemática. Abraão, que há muito é referendado como “pai da fé”, por exemplo, em Hebreus aparece como aquele que, pela fé, deixou sua terra e sua parentela para mudar-se ao lugar destinado por Deus e creu, mesmo diante de sua escassa vitalidade e da esterilidade de Sara, na promessa de que sua descendência seria tão numerosa quanto às estrelas do céu e incontável como a areia do mar (cf. Hb 11.11-12). No entanto, conhecemos a estória de Abraão e Sara, facilmente nos recordamos que Abraão, mesmo tendo crido na promessa, não titubeou quando Sara, sentindo-se culpada por ser estéril e não ter-lhe dado filhos, ofereceu sua escrava, Hagar, para que seu marido a possuísse e a engravidasse, e desta união nasceu Ismael, filho da descrença de Abraão, por assim dizer (Gn 16). Isso sem falar que Sara riu da ironia da promessa original, externando sua dúvida: “Poderei realmente dar à luz, agora que sou idosa”? (Gn 18.13), e depois ainda mentiu sobre ter rido.

Com estórias como a de Abraão e Sara, aprendo que promessas não são garantias divinas para a manutenção da fé, e sim fruto do relacionamento entre o ser humano e Deus gerado e gerido em fé. Porém, se tratamos as promessas divinas como um elemento gregário, isto é, como sendo a fonte originária do ato de caminhar na e pela fé, logo elas se tornarão não um telos pelo qual a fé se norteia, mas objetos de veneração e obsessão, ou mesmo moedas de troca que justificam a fé. Abraão não creu na promessa pela promessa em si, mas pela fidelidade do Senhor, que é quem promete. Logo, a vida pela fé não encontra sua razão de ser nas promessas, mas na pessoa do próprio Deus.

Mas não percamos nosso foco aqui, que é a questão da dúvida. Vimos que Abraão e Sara duvidaram, mesmo estando na fé. Se for verdade, como se diz em Hebreus, que “sem fé é impossível agradar a Deus, pois quem dele se aproxima precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam” (11.6), também é verdade, conforme o mesmo texto, que esta fé “é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (11.1); ou, na tradução A Mensagem (na versão em inglês), a fé é o firme fundamento sob o qual estão todas as coisas que fazem a vida valer à pena, e “nosso controle sobre o que não podemos ver”. Que controle se pode ter sobre o que não se pode ver, ou sobre o que não é materializável? É claro que aqui a linguagem é paradoxal. O que o autor de Hebreus está dizendo, a meu ver, é que a fé é a única e real certeza que subsiste em meios às incertezas da vida. Posso estar convicto de minha fé mesmo quando tudo, até mesmo a própria fé, parece estremecer. A fé faz-se chão onde já não se pode encontrar mais chão; é o que dá sentido a um caminhar numa estrada perdida e sem rumos definidos. Mas este sustento, esteio, chão e certeza residem não numa suposta força que emana de nós mesmos, ela misteriosamente é suprida pelo Espírito de Deus.

Dessa forma é que retornamos ao paradoxo, e por isso digo que a fé deve aprender a conviver com a dúvida: porque ao mesmo tempo em que as dúvidas e questionamentos, e a angústia daí proveniente, podem-nos fazer passar pelo vale do ceticismo e das incertezas, são elas que nos movem outra vez em direção a Deus, nos levam a interpelá-lo em oração, a escancarar diante dele nosso eu ferido e fragilizado; elas nos conduzem ao lugar em que a expressão de súplica, lamento e confiança podem bailar juntas numa única e expressiva dança que é a dança da vida, e a sair dali com uma fé mais madura. Por isso é que, demasiadamente humano, identifico-me com o salmista, que orou dizendo: “Até quando, Senhor? Para sempre te esquecerás de mim? Até quando esconderás de mim o teu rosto? Até quando terei inquietações e tristeza no coração dia após dia? Até quando o meu inimigo triunfará sobre mim?”, e, na mesma oração, declarou: “Eu, porém, confio em teu amor; o meu coração exulta em tua salvação” (Sl 13.1-2,5). Também me uno ao pai do menino possuído por um espírito que o impedia de falar, que, diante da exclamação de Jesus de que “tudo é possível ao que crê”, respondeu: “Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade” (Mc 9.23,24).

Fé e incredulidade são como o joio e o trigo: no mesmo lugar em que uma brota, há a possibilidade da outra crescer; e se tentarmos extirpar uma em detrimento da outra, a incredulidade em detrimento da fé, se tentarmos separá-las abruptamente porque em nossa teologia é inconcebível um espaço em que ambas possam juntas gravitar, pode ser que joguemos fora também o precioso junto com o que entendemos ser vil, e a fé seja cortada antes mesmo que seu fruto cresça, amadureça e apareça. Como afirma Peter Rollins em tom de celebração: “Acreditar é humano; duvidar, divino”.

Jonathan