domingo, 24 de janeiro de 2016

Fé, teologia e a arte de perder chãos


A vida intelectual, como a pensa João Batista Libanio (2006, p. 81), “só se desenvolverá se se mantiver uma atitude de abertura ao diferente, ao novo, ao questionamento”. De acordo com ele, como filhos/as de uma época e uma cultura específicas (na qual se insere a religião) todos/as fazemos parte de uma tradição (ou mais que uma). Por exemplo, o que concebemos como “fé” (falando de seus conteúdos) é fruto de uma vivência dentro de uma tradição, em que a experiências individuais alimentam e são alimentadas por experiências coletivas. Entretanto, como reitera Libanio, “viver só da tradição”, tratando-a de modo rígido ou definitivo, “termina em um processo repetitivo”. Aqui entra o que ele chama de atitude de abertura enquanto “capacidade de assumir uma autocrítica da própria tradição de dentro dela” (Ibid., p. 81).

Essa atitude se opõe, na visão de Libanio, tanto a uma concepção puramente ortodoxa, que trabalha com a perspectiva excludente de sim ou não, ou, ou; quanto também uma concepção relativista, que desqualifica a tradição assumindo uma postura em que anything goes, ou qualquer coisa vale, e que pode facilmente ser trocada por outra coisa no próximo momento. Ao invés, ele propõe uma concepção dialética, que “busca a síntese entre a tradição e a novidade da experiência, chegando a novas formas de verdade. Retém a positividade da tradição, nega-lhe a negatividade e assume do presente sua força crítica positiva. Vão assim construindo novas e mais ricas sínteses de verdades” (Ibid., p. 82).

Nesse sentido, uma tradição nunca deve se impor como absoluta, e toda vez que o faz recai no risco da idolatria. Isso, porém, aconteceu e ainda acontece na história das religiões, e do cristianismo em particular. Basta recordar o período da Reforma Protestante, por exemplo, que teve como uma das razões principais de sua ocorrência a elevação da igreja, sua ordem, seus dogmas, à condição de absoluta, inquestionável, acima da própria Palavra de Deus. Somente através dela se podia conhecer o verdadeiro Deus e a legítima mensagem das Escrituras. Contra isso se impôs o que Paul Tillich (2006, 1992) chamou de princípio protestante. Segundo ele, “o princípio protestante é a reafirmação do princípio profético em seu ataque contra uma igreja que se considerava absoluta e que, por isso, se encontrava demoniacamente deformada” (Tillich, 2005, p. 234), ou, parafraseando o que ele disse em outro lugar (Tillich, 1992, pp. 209-221), trata-se do protesto divino e humano contra toda tentativa de absolutizar o que é apenas relativo e temporal.

Quando a igreja quer igualar a si mesma, ou o que ela diz/faz, a Deus, torna-se um ídolo ou um demônio, deixa de ser igreja – lugar de pecadores salvos pela graça de Jesus Cristo e, por isso, conscientes de que seus saberes e experiências são sempre “em parte” – e passa a ser uma Babilônia ou uma sucursal do inferno.

Contra essa tentação, meu propósito aqui é de fazer uma síntese sobre o que significa permanecer crendo, escolhendo a fé, diante das eventuais desconstruções pelas quais passamos em meio a um universo de descrença e ceticismo, ou mesmo de dúvidas e incertezas que nos cercam, tanto no plano intelectual (teológico e filosófico) quanto no plano existencial. Para tanto, gostaria de propor, como exercício de reflexão, o que aqui estou chamando de “arte de perder chãos”, cuja premissa é a de uma desconstrução sadia e intencional de todos os solos provisórios sobre os quais assentamos nossas crenças. Pode ser representado pela rudimentar figura que abaixo se encontra:


Tentarei explicar o que quero dizer com essa imagem através do seguinte:
1. Na parte inferior da figura estão o chão da fé e o chão da história que, embora distintos, não se encontram em planos diferentes. Fé é fé no incondicional. Trata-se de chão invisível e indizível, em primeiro plano, por isso é chão enquanto sustentação incondicional do que denominamos fé. Essa fé, porém, não nos desistoriciza nem nos desumaniza, mas nos comissiona, segundo a premissa de encarnação vigente no evangelho, a entrar na história como antecipadores da eternidade através de gestos que Paulo chamou de “permanentes”: a fé, o amor e a esperança.
2. A caminhada humana, porém, nos impõe a busca por sentido e, assim, a criação de sentidos possíveis para aquilo que acreditamos e sobre o porquê de acreditarmos nessas coisas. Esses são o que poderíamos chamar de “chãos finos e frágeis”, porque provisórios.
3. Esses, por sua vez, são constituídos por manifestações temporais e impermanentes na esfera da cultura – ética, estética e religião. A cultura humana, inventada e invencionista, incita a cada ser humano a dar formas – símbolos, mitos, representações do “real”, e, par os de fé, da própria fé, da religião e de Deus, expressas pelos conteúdos, dogmas, crenças, tradição.
4. Esses chãos, como já disse, são frágeis e provisórios – e essa é a sua propriedade. O ato de tentar equipará-los à própria realidade ou ao incondicional é parte do antropomorfismo, de modo que a crítica de Feuerbach à religião torna-se válida nesse caso: a realidade (ou o incondicional) é fruto da consciência que o homem tem (ou imagina ter) de si mesmo. A consciência que o ser humano tem da realidade, porém, não é capaz, por mais que pretenda, dar conta ou espelhar a própria realidade. Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo (2008), desenvolve a tese de que, com relação ao real, nossa tendência é a de suprimi-lo numa “atitude de cegueira voluntária”, que nos faz ignorar o real, o singular, e dirigir nosso olhar para outro lugar (seu duplo), onde o real não está. De modo que, aquilo que anunciamos como sendo “real”, é na verdade o “outro”, visto que o real, em si, nos escapa. A realidade não se dá a conhecer plenamente, não é inteligível em sua essência. Na mesma medida em que é ininteligível, também é cruel (ou seja, dura). Daí a cegueira voluntária consiste no efeito psicológico ilusivo produzido pelo efeito do espelho: no encontro com o outro da realidade (seu duplo, sua representação), penso estar em contato com ela mesma (Rosset, 2008, p. 91). O mesmo pode funcionar para o relacionamento da pessoa de fé com o incondicional: a ilusão, nesse caso, consiste na pretensão de falar por Deus, ou de que a imagem verdadeira de Deus está expressa na ideia ou na representação. É aqui que a ilusão pode se converter, ao mesmo tempo, em manipulação e em idolatria.
5. Nietzsche e seu perspectivismo trouxe para gente a ideia de que tanto a realidade, quanto o que chamamos de “verdade”, são criações da linguagem. A linguagem coloca diante de nós um mundo de possibilidades e também de impossibilidades. A palavra pronunciada coloca uma parcela do mundo em movimento, mas nunca é a expressão exata desse mesmo mundo. Isso é o que Jacques Ellul (1984, p. 21) chama de “bendita incerteza do discurso; é o que lhe confere toda a riqueza”. O discurso, completa ele, é sempre ambíguo, jamais transparente. Posso me esforçar para que o outro compreenda exatamente o que estou dizendo, contudo, “não sei, exatamente, o que o outro está entendendo daquilo que digo” (Ibid.). Mas é no meio desses buracos, insucessos e mal-entendidos da linguagem que, segundo Ellul, reside uma nova expansão da vida, em que se recomeça incessantemente, e se deve trabalhar na interpretação do discurso e do texto num movimento sempre em construção e, por isso, sempre susceptível de múltiplas definições. Como expressa Ellul:
A confusão da linguagem impede a posse do ser, seu cativeiro. Eis-me diante de um instrumento de infinita riqueza, inesperada, de uma polifonia desencadeada pela menor frase. A ambiguidade do discurso, e mesmo sua ambivalência, mesmo a oposição entre o momento em que é enunciado e o momento em que é recebido, produzem as mais intensas atividades sem as quais seríamos formigas, abelhas, tornar-nos-íamos ressequidos, esvaziados de nosso drama e da nossa tragédia. Nascem aí o símbolo, a metáfora, a analogia. (Ibid., p. 21).
6. As possibilidades impossíveis da linguagem deveriam, assim, nos conduzir a uma tarefa mais honesta, humilde, dependente daquilo que somos e temos – e, por isso, impeditiva do atrofiamento dogmático –, e da graça de Deus e, por tudo isso, alegre e celebrativa. Eis o extraordinário, diria Ellul: é uma benção para o ser humano viver assim, cativo da linguagem, distante da completude e, ao mesmo tempo, em busca dela, pois do contrário, acrescentaria eu, não seriamos seres humanos e sim deuses, ou semideuses. Assim, a linguagem não é o espelho da realidade do sagrado; fala mais do ser humano do que do ser divino, nesses termos. Minha linguagem é prostituída; volta e meia incorpora novos amantes e novos parceiros/as, sem mesmo se dar conta. E não há nada que passe por seu filtro sem ser afetado e que, portanto, possa ser expresso em estado puro: nem as coisas do mundo, muito menos as coisas do céu. As ideias, os conceitos, os símbolos são, assim, formas de redução da realidade e não o seu reflexo. Quanto mais ciente disso me faço, menos pretensiosos serão meus atos de fala ou mesmo minha teologia. A teologia, mais que qualquer outra modalidade de saber, deveria estar ciente do estado de distanciamento involuntário a partir do qual ela surge; pretende falar de Deus, mas todo significado que dá para esta palavra não passa de uma mirada através de uma brecha ou um pequeno buraco na parede que dá uma visão (apequenada) para fora. Admitir isso não é uma forma de relativizar a verdade, mas de preservá-la. Isso é redenção e não desgraça, sobretudo quando se pode assumir jubilosamente a provisoriedade desses “chãos” da linguagem e permitir que eles se desmanchem e se refaçam num movimento dinâmico. Esses chãos estão para a queda assim como o peixe está para a água. O objetivo, porém, é perder o chão sem cair no abismo, e essa é uma arte bastante arriscada que somente os corajosos e aventureiros se dispõem a aprender e se permitem desenvolver. Deixar o chão ruir pode ser, ao invés da “ilusão voluntária” de quem os iguala à realidade, um mergulho consciente e voluntário. Ora, não foi assim com a encarnação do Cristo? Não foi um mergulho (ou enfraquecimento) voluntário na humanidade e na história?
7. Em conclusão, é possível pensar que esse mergulho voluntário tem tanto uma dose de imanência quanto de transcendência (pensando naqueles dois chãos primários da figura), em que recebemos tanto um banho de realidade quanto da fé no incondicional e, a partir daí, fazemos uma revisão de paradigmas, de pressupostos, de nossos chãos. Aqui reside um aspecto muito importante: um chão cai para que outro seja construído – portanto, não se trata de desconstrução pura e simples que redunda num vazio. E isso se dá num movimento dinâmico – como as águas do rio que correm para o mar e de lá voltam a correr (Ec 1.7). Nesse sentido, pode-se pensar que nunca voltamos os mesmos de cada novo mergulho, de cada nova imersão e experiência. A esperança – falando propriamente contra o dogmatismo e a intolerância – é que voltemos mais maduros, melhores, mais tolerantes e generosos. É um movimento descendente, de humilhação, inspirado no evangelho do Cristo que se esvaziou por amor. Oxalá a teologia possa descobrir na arte de perder chãos um antídoto contra o absolutismo, a idolatria e uma ortodoxia morta.
Jonathan

Referências bibliográficas

ELLUL, Jacques. A palavra humilhada. São Paulo: Paulinas, 1984.
LIBANIO, João Batista. Introdução à vida intelectual. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2006.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Ensaio sobre a ilusão. 2ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008.
TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 5ª ed. Revista. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2005.
_________. A era protestante. São Bernardo do Campo, SP: Ciências da Religião, 1992.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Paradoxos da fé


Na famosa definição de Hebreus, a fé é “a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Hb 11.1). Tomada fora do contexto e de modo descomplicado, essa definição pode enganar um pouco no aspecto dessa “certeza” e dessa “convicção” sobre a qual fala o texto. Que tipo de certeza é essa? Em que se baseia tal convicção? A tese de Hebreus 11, no verso 1, perde muito de seus sentidos possíveis se desatrelada de todo o texto. Minha intenção não é fazer uma exposição do texto, e sim apontar alguns paradoxs da fé importantes nele.

O primeiro é o paradoxo da fé entre a certeza e a incerteza. Do que a fé é pode ser certa? Daquilo que, do ponto de vista humano, aparenta ser o mais incerto. A fé, por exemplo, é certa da existência de Deus, não porque Deus tenha se mostrado de maneira clara por meio de evidências ou provas, e sim porque, na linguagem de Tillich, esta pessoa foi tomada pelo incondicional e o eterno. Como diz Kierkegaard (2012, p. 77): “A fé é antecedida por um movimento de infinito; é apenas então que ela surge, nec inopinate, em razão do absurdo”. Tillich (1957, p. 65), de modo semelhante, também afirma que “todo ato de crer pressupõe participação naquilo para que está dirigido. Sem uma experiência anterior do incondicional não pode haver fé no incondicional”.

O cientista tem provas de uma realidade na medida em que essa realidade se dá a investigar, e então ele tem uma certeza objetiva. O médico pode chegar a ter certeza sobre as origens de uma doença X, porque os exames que ele fez provaram que ela veio da ação de uma bactéria Y. Na fé não é assim. A fé não é apenas certeza do mais incerto, como certeza que se sustenta sob condições incertas. Hebreus diz que quando Deus chamou Abraão, por exemplo, este se dirigiu “a um lugar que mais tarde receberia como herança, embora não soubesse para onde estava indo” (11.8). Abraão partiu na certeza da promessa, no entanto, sem saber. Creu para essa existência, mas não obteve o que esperava nessa existência. Creu porque foi movido pelo incondicional, e porque teve a coragem da fé e o risco de suportar suas eventuais dúvidas e incertezas. E, como diz Tillich (1957, p. 15), “é suportando corajosamente a incerteza que a fé demonstra o mais fortemente o seu caráter dinâmico”.

O segundo é o paradoxo da fé entre o visível e o invisível. Já disse anteriormente que o fundamento da fé (o incondicional) se encontra além da concreticidade dos fatos, portanto, além do que os olhos podem ver, de modo que a testemunha ocular, digamos, de um milagre, não necessariamente se torna um discípulo. Como disse Ariovaldo Ramos (2015) recentemente, “milagre não gera fé, gera festa”. Hebreus diz que a fé é “prova das coisas que não vemos”. Então “fé”, nesse sentido mais estrito, significa confiança naquilo que não se pode ver, ao que não se tem acesso imediato.

Tomemos o exemplo de Moisés (11.23-29). O texto diz que, ao abandonar as riquezas e pompas do palácio no Egito, Moisés “permaneceu firme como quem vê o que é invisível” (v. 27). Ora, a própria ideia de “ver o invisível” já é um paradoxo. Logo, os olhos que “viram” não são estes humanos, mas os da fé, que se cria a partir da visão do inexistente porque “vê além”. Aqui facilmente alguém pode se recordar do que Jesus disse a Tomé, segundo o evangelho de João. Depois que este o viu e tocou em sua mão e em seu lado, declarou “Senhor meu e Deus meu”. Vendo aquilo, Jesus replicou: “Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20.26-29). “Assim, a fé crê no que não vê” (Kierkegaard, 2008, p. 118)

O terceiro é o paradoxo da fé entre a promessa e a realização. Chegamos a culminância dos outros dois paradoxos: o discípulo, que tem a confiança certa nas condições mais incertas, que crê naquilo que não vê, mas espera ansiosamente, deve também, como os “heróis da fé” de Hebreus, acreditar e viver segundo orienta a promessa, sabendo, porém, que pode não chegar a experimentá-la em vida. Quando pensamos na figura do herói no sentido hollywoodiano, a imagem que mais comumente surge é de poder, luta, com eventuais contratempos, mas sabendo que, no fim, o triunfo é certo, pois o herói sempre vence. Sem muita consciência projetamos essa imagem na vida, e não diferente na vida de fé. Nutrimos a certeza de que aquele que plantou o bem, lutou para alcança-lo, trabalhou duramente para sua conquista, ao final, será recompensado. Entretanto, a realidade é mais complexa que isso. Eclesiastes tentou nos alertar a esse respeito ao concluir que a vida é miserável, fugaz, cheia de sofrimento e sem sentido; que a sabedoria pode trazer vida, mas nem por isso o sábio está garantido em comparação com o tolo, às vezes a vida vira do avesso, e vemos o sábio sofrendo muito enquanto o tolo, apesar de suas tolices, só se dá bem. Ele também diz que sol nasce para todos e o fim é o mesmo para todos, pobres ou ricos, sábios ou tolos, justos ou injustos. E que, durante a vida, “cedo ou tarde, a má sorte atinge a todos. Ninguém pode prever a desgraça. Como peixes capturados numa rede cruel ou pássaros numa gaiola, os homens e as mulheres são capturados pelo mal acidental e repentino” (Ec 9.11-12, A Mensagem).

Podemos discordar, ficar bravos e profundamente incomodados com Eclesiastes, e com certa dose de razão, afinal, geralmente não somos preparados para lidar com as más notícias – nem pela família, tampouco pela sociedade ou pela religião –, apenas com as boas, como se o otimismo e o pensamento positivo nos garantissem vitória e vida longa. Contudo, de nada adianta espernear, fechar os olhos ou negar a realidade. Quem pensa que a vida de fé pode blindá-lo contra o sofrimento, facilmente envereda pela rua do engano e da ilusão. Primeiro, porque não há nenhuma garantia cósmica de que ter fé é ter proteção e segurança; segundo, porque não há nenhuma garantia bíblica, no sentido global, que sugira isso. Muito pelo contrário. Andar nos caminhos da fé, por sua própria natureza e pela natureza da vida, implica em enfrentar dificuldades várias, como foi o caso dos anti-heróis de Hebreus. Experimentaram, sim, a proteção divina em algumas circunstâncias e até viram algumas promessas sendo cumpridas, mas também “enfrentaram abusos, açoites e, sim, algemas e prisões”; alguns “foram apedrejados, serrados ao meio, assassinados a sangue frio”. Vaguearam pela terra, sem teto, força ou amigos, “vivendo como podiam nas periferias cruéis do mundo”, que, como diz o autor, não era digno deles! (11.32-38, A Mensagem).

E o autor de Hebreus finaliza claramente expressando o paradoxo em questão: “Entretanto, nenhum desses exemplos de fé puseram a mão na recompensa prometida. Deus tem um plano melhor para nós: que nossa fé se junte à deles, para formar um todo completo, como se a vida de fé que eles tiveram não fosse completa sem a nossa” (11.39-40, A Mensagem). Caminhar na fé, segundo Hebreus, implica em lançar-se nos paradoxos sem seguro de vida ou de triunfo. Aliás, Kierkegaard foi taxativo e um tanto duro a esse respeito, seguindo a lógica ilógica de Hebreus, quando disse que:
Em verdade, se ocorresse à fé alguma vez a ideia de avançar assim, triunfalmente en masse, então ela não precisaria autorizar alguém a cantar refrões satíricos, porque de nada adiantaria proibi-lo a todos. Mesmo que os homens emudecessem, ouviríamos sobre esta louca procissão uma risada estridente como aqueles sons zombeteiros que a natureza faz ouvir no Ceilão; pois a fé que triunfa é a mais ridícula de todas as coisas. Se a geração contemporânea de crentes não teve tempo de triunfar, nenhuma outra o conseguirá; pois a tarefa é a mesma, e a fé é sempre militante; mas enquanto ainda houver luta haverá a possibilidade de derrota, e por isso, no que concerne à fé, jamais se triunfa antes do tempo, ou seja, jamais se triunfa no tempo [...]. (Kierkegaard, 2008, p. 152-153).

Que vantagem há na fé? Que proveito ela, porventura, traz? Afora as promessas falsas provenientes de uma falsa piedade – porque apartada da vida real –, a resposta honesta pode ser: nenhuma! E quem disse que a fé tem a ver, primordialmente, com vantagem e com proveito? Se algum proveito há na fé – claro que estou falando aqui da fé cristã – esse não está primeiramente voltado para a pessoa em si, mas para o próximo da fé, tanto no presente, quanto no futuro, pois a fé que vive no paradoxo se concretiza de várias formas já, só que plantando sementes para a eternidade. O final do capítulo 11 de Hebreus é sugestivo de que a fé do discípulo não é fé em si ou para si, mas é fé para a posteridade, é a fé que cresce e amadurece nos outros. É, nesse sentido, uma dádiva, um bem comunitário, um tipo de fé que se forja na junção do si mesmo e do/com o outro. Ali germina, ali cresce, e dali se expande para a eternidade.

Jonathan

Referências bibliográficas

KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
_______. Migalhas filosóficas: ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
PETERSON, Eugene. A Mensagem. Bíblia em linguagem contemporânea. São Paulo: Editora Vida, 2011.
RAMOS, Ariovaldo. Convergir. Palestra proferida na Soul Igreja Batista, Rio de Janeiro, 15/09/2015. Ver: . Acesso em 16 set. 2015.
TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. 4ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1957.