quarta-feira, 27 de maio de 2009

Sexo é bom demais (II)

Deve-se enfatizar que o sexo, portanto, não é pecado em si. Pecados sexuais não são nem menos e nem mais pecados que os demais. C. S. Lewis disse que transformamos a sexualidade no centro da moralidade cristã. Mas, se o centro está em alguma coisa, esse centro para ele está no orgulho (o“grande pecado”, e mais perfeito estado da alma anti-Deus). É preciso ainda diferenciar cultura de revelação. A revelação é coisa divina. A cultura é coisa humana. É coisa divina também, mas porque Deus fez o ser humano à sua imagem. Contudo, há na cultura as marcas do pecado. Logo, tendemos a fazer uma confusão. Porque a revelação não se dá de modo independente da cultura, tendemos a não conseguir separar o que é revelação do que é cultura.

Assim, é preciso conhecer bem a revelação pra poder diferenciar o que são pecados sexuais, e pecados sexuais atribuídos pela cultura. Nem sempre os absolutos da igreja são absolutos de Deus. Aliás, não somos nós que alcançamos o absoluto, é ele quem nos alcança, de modo que nossa visão é sempre uma apreensão parcial do absoluto, mas nunca o absoluto em si. Precisamos levar em consideração a multiplicidade de fatores que envolver o ser humano, para analisar o sexo não da forma míope e legalista com que a igreja tem feito hoje, e sim sob múltiplos pontos de vista.

Buscamos o conhecimento como redenção, paz perpétua, e não como conflito. Por isso, caímos nos risco de dizer “sexo é...”; “isso não é...”; “isso é pecado, é absoluto”. Assim, para nós é 8 ou 80; se uma coisa é A, não pode ser B; se é B; não pode ser C. Ao passo que se consideramos o paradoxo da existência humana, deveríamos dilatar essa perspectiva e perceber que A pode ser B sim, como pode ser C, como pode haver uma fusão A_B_C.

Não podemos ser cínicos ao ponto de ficar dizendo “sexo é bom”, do nosso confortável mundo matrimonial, e olhar para os jovens e dizer “mas você não pode, viu”. É como colocar um pote de sorvete com tudo o que tem direito na frente de uma criança, dizer “hum, está muito gostoso”, para em seguida afirmar: “ah, mas você não pode, porque vai te dar gripe”. É torturante, desonesto e uma negação da vida.

Termino com uma frase de Sören Kierkegaard, escrita em 1844, em O Conceito de Angústia:
"Todo o problema da importância da sexualidade nos mais diversos domínios tem sido, até o presente, insuficientemente tratado e, sobretudo, raras vezes no tom justo. Produzir gracejos a este respeito não passa de uma arte bem miserável; fazer de censor, é demasiado fácil; extrair daqui sermões, passando por cima da dificuldade, não é menos doentio; mas falar sobre o problema de maneira verdadeiramente humana, eis o que constitui toda uma arte".
Jonathan

Sexo é bom demais (I)

Fui convidado pelo grupo de jovens de minha comunidade para ser um dos interlocutores de uma discussão sobre esse tema: "Sexo é bom". Gostei do convite, da participação, e especialmente da premissa de afirmação que está explícita no tema escolhido: "é bom". Isso, pois durante muito tempo o demiurgo (deus menor) de Platão continuou a ser afirmado por nós, cristãos, todas as vezes que relegamos o corpo, a matéria, a um plano de inferioridade em relação à alma, ao mundo ideal, perfeito, à santidade, e assim por diante.

Nossa idéia de perfeição cristã esteve e, em muitos casos, ainda está associada com uma vida "fora" ou de negação do corpo e do mundo. Daí, começar uma discussão sobre sexo afirmando sua qualidade de bondade e benção, não somente é um empreendimento ousado como mais do que necessário à igreja, que em pleno século XXI ainda se vê às voltas com casos como o da proibição de camisinhas pelo Papa, excomunhão, repressão e outros processos de de-formação ainda vigentes, isso, paradoxalmente, em meio a um mundo cada vez mais "cabeça aberta" para uma série de questões e pluralístico. Eis algumas de minhas contribuições ao debate:

Deus nos fez seres corpóreos. O corpo é parte da criação que Deus disse ser “boa”. Dizer que o corpo é ruim, inferior à alma, mau, é coisa platônica. “O cristianismo é um platonismo para o povo” (F. Nietzsche). Deus nos criou igualmente corpos sexuados. A sexualidade não é um fruto da queda, é parte do plano original de Deus (Gn 2.24-25). Se o corpo e o sexo são bons, isso significa que o prazer também é bom. Gozar é de Deus! Mas com a queda, as coisas que originalmente eram boas foram corrompidas pelo pecado. Não a coisa em si, mas o uso que dela se faz. A lei de Deus, por sua vez, veio para coibir o “mau uso” da coisa em si. Mas o pecado também fez com que fizéssemos um “mau uso” da lei, que deveria servir à vida, mas acabou militando contra ela.

Logo, o que era para coibir o mau uso, acabou coibindo a coisa em si, pelo fato de não conseguirmos, por nós mesmos, vencer o mau uso (Rm 7). O pecado (outro ser que em nós habita), desse modo, provou-se mais forte que a própria lei. Assim, Deus se fez lei em nosso lugar (Cristo) e carregou nosso fardo. Passamos, assim, a viver pela graça. A graça não é a negação e nem o fim do pecado, é a redenção do pecador – “A minha graça te basta”! Assim, a graça é essa dádiva de Deus, única capaz de conduzir-nos de novo ao bom uso daquilo que ele declarou bom – o sexo.

(continua no outro post).

Jonathan

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Sobre teologia e a arte de nomear as coisas (III)

De que maneira relaciono essa reflexão sobre “dar nome às coisas” à teologia? Para finalizar essa série e responder a tal questão quero aqui me valer da discussão feita por Jacques Ellul em seu livro A palavra humilhada. Certa vez, ouvi de um professor o seguinte: “Para tudo o que é, a linguagem cala”. E logo me lembrei da passagem bíblica em que Moisés pede uma alcunha para Deus, como se dissesse: “Esse povo aí irá me perguntar a Quem estou dizendo para eles seguirem; embora eu tenha dito que é ‘o Deus de vossos pais’, eles vão querer um nome; então que nome eu dou pra você, quem é você afinal?”. E a resposta do Senhor foi emblemática: “EU SOU O QUE SOU”. E para tudo que é... Se a discussão é sobre se ele é verdadeiro ou não, a resposta é: “EU SOU”. Pronto. Contente-se com isso, Moisés, com a impossibilidade de expressar a verdade por meio da sua linguagem. Como diz Ellul, “se a verdade é a verdade acima de nossas apreensões e estimativas, ela é. Ponto final. Permanece, forçosamente, ela mesma”. Logo, completa ele, “a verdade nada mais é do que o absoluto ou o eterno, e de cujas margens não somos sequer capazes de nos aproximar”.[1]

Certo então, a linguagem se cala diante da verdade, pois dizer a verdade compreensivamente (em tudo o que ela é) seria o mesmo que matar a própria verdade. Entretanto, como até aqui temos visto, o ser humano se serve o tempo todo desse meio improvável chamado de linguagem, de modo que se poderia indagar: “Ora, se somos irremediavelmente ligados a essa atividade de nomear, como posso me calar diante de tudo aquilo que vejo”? Eis a questão, difícil aporia, nós somos “incaláveis”, se me permitem o neologismo. De tal modo que a relação e ansiosa busca pela verdade estão intimamente associadas com a fala. A verdade (ou, a verdade para mim) é... Assim, a verdade torna-se sinônimo do verbo, idêntica à palavra, efêmera e fugaz, ao que é dito, “igualação do não igual”. Trata-se, como diria Ellul, de nosso instrumento mais lábil, incerto, referindo-se ao que é mais certo. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Mas como saberemos o caminho? O que é a verdade? Que vida é essa? Continuamos tentando descodificar a verdade na linguagem.

Nossa referência ao real está sempre em busca de correto e incorreto. Fazer teologia, até aqui, tem sido julgamento do incorreto pelo correto. Embora a verdade que desejamos tanto deter, nos escapa, porque somos detidos por ela e não o contrário, ainda assim insistimos em nos mover num universo de exatidão, em busca da única resposta, a solução correta, o paradigma exato. Quando, na natureza do paradigma em si mesmo, mora a imprecisão. Como diz Ellul: “Não existe experiência imediata da verdade, nem da mentira, nem do erro. (...) O que vem da palavra nunca é evidente. O real pode ser evidente, a verdade, nunca”.[2] Um leitor um pouco mais impaciente que o resto, poderia perguntar: “Mas então porque devo continuar nisso se já descobri que a verdade não pode ser descoberta”?

É simples, e é complexo: porque é ela que confere sentido ao nosso existir. A impossibilidade da linguagem deveria, assim, nos conduzir a uma tarefa mais honesta, humilde, dependente daquilo que somos e temos, e da graça de Deus e, por tudo isso, alegre e celebrativa. Eis o extraordinário, diria Ellul: é uma benção para o ser humano viver assim, cativo da linguagem, distante da completude e, ao mesmo tempo, em busca dela, pois do contrário, acrescentaria eu, não seriamos seres humanos e sim deuses, ou semideuses. Parafraseando Ellul, nossas certezas teológicas podem ser falsas quanto à exatidão da revelação (quando assim pretendemos), mas são elas que nos permitem viver. O maior milagre e a maior benção da teologia, bem como da vida humana, é também sua maior limitação: não em expressar a verdade (quanto mais a divina) por vias exatas, mas em encontrar fragmentos dessa verdade na inexatidão da linguagem. “Assim se situa esta vida maravilhosamente humana. O sentido mais garantido dirigindo-se ao mundo mais incerto. O sentido mais frágil, exprimindo o indiscutível”.[3]

Jonathan
Notas
[1] ELLUL, Jacques. A palavra humilhada. São Paulo: Paulinas, 1984, p. 35.
[2] Ibidem.
[3] Ibid., p. 43.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Sobre rótulos eclesiásticos

Caros colegas,

a mim também soou um pouco (embora não totalmente) estranha essa discussão. Não pelo fato das nomenclaturas em si – até porque, creio que essa é uma discussão até atual, em meio a tantos “novos” títulos eclesiásticos que têm pipocado na igreja evangélica brasileira – mas pela grande importância que se deu a se chamar ou não "reverendo" ou "pastor". O anseio pelas nomenclaturas tem a ver com o exercício do poder e institucionalismo humanos. É algo enraizado no modo de ser humano. Não penso que serei menos “pastor” porque me chamam de Jonathan, nem menos “pastor presbiteriano” porque não me chamam de reverendo, sendo o contrário também verdadeiro. Mas as pessoas lidam o tempo todo umas com as outras muito mais por aquilo que fazem (Dr. Fulano de Tal, Empresário Beltrano, etc.), do que propriamente pelo que são – e vejam, quando digo “as pessoas”, estou incluindo “nós”. É a velha crise entre ser e ter de novo na praça, num mundo em que claramente mais se tem optado pelo ter, pela ostentação, pelo status quo, do que pelo ser em si – talvez porque tenhamos perdido o sentido do que seja o tal "ser". Afinal, o que é o ser?

Ou seja, estamos irremediavelmente ligados a essa atividade de instituir, nomear, intitular. Assim sendo, penso que, se o poder como dominação, ostentação e status quo, bem como a bajulação a quem ostenta, é algo do ser humano, este imerso em pecado, mudar o nome ou deixar de chamar "X", "Y" ou "Z", de nada adianta, porque se ataca assim o que é periférico, perdendo-se a raiz do problema, que está no coração humano. Antes de mudar os nomes, ou deixar de dizê-los, precisamos mudar, sim, os relacionamentos, as posturas, e a idéia de sacerdócio em si, quando (cada caso é um caso) assim necessário. O problema não é poder, nem são os títulos, mas o que fazemos com eles. Lembremos do que disse Pedro aos presbíteros: “Pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangimento, mas espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa vontade; nem como dominadores dos que vos foram confiados, antes, tornando-vos modelos do rebanho” (1Pe 5.2-3).

Deveríamos ter mais coragem de pregar contra nós mesmos e contra as posturas e relacionamentos que muitas vezes endossamos, do que simplesmente “mudar os nomes” ou as formas de tratamento. Não julgo, com isto, a atitude dos irmãos da IPI de Maringá. Se, bem ou mal, essa foi “a solução” por eles encontrada, respeito. Mas não creio que seja uma discussão fértil, caso se fique atacando apenas os “nomes”, se esquecendo do princípio que está por trás de quem os profere e de quem os aceita e ostenta.

Com isso, quero dizer que ser chamado de reverendo, pastor, etc., é o que menos importa, quando, no fundo, em meus relacionamentos e posturas, procuro deixar bem claro que existe uma pessoa, humana, falha, mas que está tentando acertar com a graça de Deus, por trás do rótulo; e que se difere das outras apenas pelo chamado específico de Deus, o que não confere a ela lugar superior ou mais importante, apenas um lugar “diferente”, e não somente diferente, como também insuficiente, se não contar com o apoio das demais partes que forma o todo. Precisamos de uma revolução nas atitudes! Continuemos a pensar...

Fraternalmente,
Jonathan

Pastor ou Reverendo?

Há poucos dias atrás, recebi um email de um colega pastor, que encaminhava uma discussão feita por uma igreja presbiteriana de Maringá, PR, sobre títulos eclesiásticos, mais precisamente sobre se deveria chamar seus pastores de "reverendos" ou simplesmente de "pastores". O assunto parece ter começado com a recusa de certos pastores de serem chamados por seus membros de "reverendos". Abaixo trancrevo a parte final do artigo assinado por Ednaldo Michellon, que leva o título dessa postagem: "Pastor ou Reverendo?". No post seguinte, publicarei minhar resposta a tal discussão, enviada primeiramente a meus colegas do Presbitério Grande Londrina (PRGL).

Jonathan

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(...) Perguntamos: POR QUE SE RECUSAR EM SER CHAMADO DE PASTOR? O salmo mais conhecido alhures diz: "O Senhor é meu pastor...". Já pensou numa tradução que dissesse: "O Senhor é meu reverendo"? Ridículo, não? Se for ironizar com humanos deveríamos dizer: "O fulano de tal é o meu reverendo e tudo me faltará". Sim, porque alguém que ouse roubar o lugar de Deus não ficará impune. O final do Apocalipse não deixa dúvidas: "Adora a Deus".

Por isso irmandade presbiteriana independente e demais membros do corpo de Cristo, vamos repensar essa questão de REVERENCIAR seres humanos ao invés de nosso Deus; e, aproveitemos para parabenizar aqueles pastores que negam a ser chamados de forma diferente daquela dada por Deus, pois o próprio Senhor nos diz que ele é um PASTOR. Penso que precisamos derrubar as castas que tentam se levantar no meio cristão, antes que voltemos para a prática de cultos pagãos, como éramos obrigados a engolir outrora. Para pensar: você acha que Jesus Cristo aceitaria ser chamado de reverendo?

Vamos erguer bem alto o Estandarte da Reforma: Só Cristo, Só a Fé, Só as Escrituras, Só a Graça, Só a Deus Glória. Concretamente, propomos a discussão para abolir o termo reverendo da IPI local, e se possível, do Brasil, e quiçá, do mundo, pois é uma ofensa ao único que se deve adorar: o nosso Deus Todo Poderoso. O SENHOR É MEU PASTOR.

Ednaldo Michellon

(Trechos do documento aprovado pelo Conselho da 1ª IPI de Maringá em 2004)

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Um Nenhum - por Viviane Mosé

Senhor arqueólogo, foi muito difícil encontrar um lugar a partir do qual pudesse me dirigir ao senhor. Infinitas são as perspectivas que nosso tempo nos permite, desintegrado que está por tantas razões que não caberiam nesta cartinha. Então, resolvi falar de um lugar comum. O lugar de um homem.

Todo homem é comum mesmo não sendo. O não ser comum do homem parece estar em sua forma própria de ser comum. Em seu jeito singular de sofrer, brincar, envelhecer. Em sua necessidade de construir, simbolizar, criar. Um homem não deixa de ser comum mesmo entre letras, livros, máquinas, sistemas, signos. Um homem é sempre uma trajetória que declina. Que ascende, mas que declina. O comum do homem é sua aparição relâmpago, o seu constituir e o seu perecer. O comum do homem é sua necessidade de dizer, manifestar, inscrever, perpetuar. Ao mesmo tempo sua impossibilidade de permanecer. Todo homem constitui-se na tensão entre viver e morrer, entre dizer e calar, entre subir e descer. Mas, por razões extensas e difíceis, a história humana parece ter se ordenado em torno da vontade de não ser.

Não envelhecer, não sentir dor, não se cansar, não se aborrecer. O homem parece envergonhar-se de ser: pequeno, sensível, mortal, humano. E organiza-se em torno de um ideal de homem, sem corpo. O homem envergonha-se de seu corpo. Não de seu sexo ou de seu prazer, mas de suas vísceras, de seus excrementos, de seus sons e odores, de seu processo bioquímico, fisiológico, orgânico. O homem envergonha-se de morrer e vai acuando-se, escondendo-se, perdendo-se em torno de uma idéia, de uma imagem. Em sua luta por não ser comum, o homem tornou-se nenhum. Todo homem virou nenhum. Nenhum homem na rua, em casa. Nenhum homem na cama. Nenhum homem, mas um nome. O homem se reduziu a um nome. Não um nome próprio, mas um substantivo.

Mas um homem é sempre maior que um nome mesmo que não queira. E uma outra história foi sendo tecida por trás desse desejo de não ser. Enquanto construía seus mecanismos de não corpo, enquanto se constituía como idéia, pensamento, imagem, a humanidade proliferava em seus excessos contidos, em suas angústias não canalizadas, em suas paixões não vividas, em seus pavores maquiados. E um corpo invertido, nascido de tantos corpos abafados, foi constituindo-se socialmente, foi ganhando força e vida. Uma vida invertida, mas uma vida.

Tóxica, ela foi se alastrando pelas casas, pelas ruas, em forma de morte. A morte negada, as perdas e dores abafadas, saíram às ruas reivindicando seu espaço. O que antes esteve circunscrito aos campos de batalha, às margens, aos guetos, agora ganha as escolas, os metrôs, os restaurantes, as praias. Não há mais lugar seguro, carros blindados, condomínios fechados. Agora todos somos igualmente passíveis. Vivemos a democratização da violência. Vivemos o predomínio daquilo que foi por tanto tempo obstinadamente negado.

A violência trouxe-nos de volta a urgência pelo corpo, pela vida, pelo tempo. E apartou-nos de nosso sonho de perenidade, de futuro, de verdade. Agora, todos estamos órfãos de nosso medíocre projeto de felicidade. Agora é preciso viver, temos urgência do instante, precisamos do corpo, mesmo gordo, magro, estrábico. E aqui, de meu lugar comum, de mulher comum, enquanto lavo a louça do café olhando a cor insistente da tarde que passa, me pergunto por quê? Por que não os dias nublados, as dores do parto, os serviços domésticos? Por que não o escuro, o delírio, a solidão? As lágrimas, os espinhos no pé, as quedas?

Dizem que o homem, como conhecemos, tende a desaparecer. É possível que uma espécie mais forte possa surgir, uma espécie capaz de um dia divertir-se com este nosso hábito demasiadamente humano de negar o inexorável, de controlar o incontrolável, e, não conseguindo, de esconder-se em cápsulas virtuais, em psicotrópicos de ultima geração, em imagens. Um homem que talvez tenha sempre existido pode começar enfim a surgir. Um homem capaz de viver a dor e a alegria de ser mortal, singular, sozinho, comum. Um homem capaz de gritar sua dor impossível. Um homem capaz de cantar. Um homem capaz de viver.

Viviane Mosé
(Extraído de http://www.vivianemose.com.br/)

domingo, 10 de maio de 2009

Sobre teologia e a arte de nomear as coisas (II)

Encerrei a primeira reflexão dessa série falando sobre nossa irremediável condicionalidade à linguagem e à arte (no sentido de criação e invenção aplicado por Nietzsche) de nomear as coisas. É preciso retornar a isto para dar contorno à segunda linha de argumentação que aqui desejo propor, que na verdade se expressa em continuidade com a anterior. Na primeira parte de A gaia ciência Nietzsche faz uma menção mais direta desse problema da linguagem quando afirma que para nós “mais importa saber como se chamam as coisas do que o que elas são”. Penso que exatamente por não sabermos o que as coisas são em sua essência é que nos aferramos na atividade de nomear, de dizer “isto é assim”, “aquilo é assado”. Mas, pergunto: quem está livre de tal condicionalidade? Com isso, Nietzsche denuncia o abismo existente entre nós e o mundo tido como essencial. Nossa relação com ele não é mediada pela correspondência, e sim pela criação: “Só os criadores podem destruir! Mas não esqueçamos isto: basta criar novos nomes, apreciações, novas verossimilhanças para criar, com o tempo, novas coisas”.

Parto, porém, do pressuposto de que vivemos (nós, teólogos, mais intensamente) pautados pela negação de que somos criadores, pois tal negação nos permitiria sobreviver na ilusão “necessária” de que aquilo que produzimos discursivamente, os significados que damos ao mundo, correspondem à verdade. Essa é, aliás, a ilusão do fundamentalismo. Tal ilusão é nosso escudo de proteção contra a conflitividade gerada pela consciência de que não lançamos mão de verdades e sim de interpretações, o que automaticamente desautorizaria, nosso discurso perante um rebanho, uma coletividade. É preciso, portanto, manter os signos e os códigos combinados, a fim de que continuemos não só protegidos pela “nossa verdade”, mas pela crença coletiva na identidade. E só permanecemos nessa crença, diz Nietzsche, graças à nossa capacidade de esquecer. Como analisa Viviane Mosé, “sem esquecer a pluralidade sensível que gerou a palavra, o homem não teria chegado a concluir que a identidade forjada pelas palavras pudesse corresponder efetivamente às coisas”.[1]

Em uma palestra ministrada semana passada na Universidade Estadual de Londrina, Mosé afirmou que a palavra não passa de uma “moldura vazia”; e, à medida que é lançada, cada um faz o que quer com ela, isto é, preenche-se tal moldura como se acha mais conveniente ou apropriado para aquele momento. Se estendermos tal metáfora à comunicação, perceberemos que a comunicação, que desejamos ser uma possibilidade (de entendimento e correspondência de pensamento entre duas ou mais pessoas), é, na realidade, cheia de fissuras e impossibilidades. Como já diriam os estudiosos em comunicação, mas sem muito aprofundamento, a comunicação, ou mais precisamente a “fala”, é cheia de “ruídos”. O problema surge quando, ou como quase sempre acontece, nos esquecemos de que tendemos a reter muito mais os ruídos do que propriamente a intenção original de um sujeito no ato de dizer ou significar algo. Assim, nossas significações das coisas (atos de fala) são produtos criativos de outras significações. Tudo passa, até nós mesmos, pelo filtro da linguagem.

Por fim, vale ressaltar outra questão que me chama atenção na fala de Viviane Mosé, ao apontar para nossa interpretação do mundo, que segundo ela é baseada na fragmentação, numa racionalidade que origina um pensamento pautado por julgamentos, divisões, descrições, mas que, em virtude da ilusão em torno da qual gravitam, pretendem atingir a totalidade. Ao pretender atingi-la irremediavelmente se exclui a pluralidade de possibilidades que envolvem a compreensão de uma coisa. Ao excluir a pluralidade, exclui-se a diferença. Nossa visão míope, mas pretensamente totalitária, nos conduz à exclusão, ao afastamento da diferença. Isso me dá pelo menos uma pista importante para entender as razões que nos mantêm no campo da intolerância (de múltiplas naturezas) num mundo cada vez mais plural; ela está no princípio de nossa forma de conhecer, de nossa aversão às diferenças, de nosso fundamentalismo oculto ou sofisticado.

(Continua...)

Jonathan

Nota

[1] MOSÉ, Viviane. Nietzsche e a grande política da linguagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 73.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Sobre teologia e a arte de nomear as coisas (I)

O ser humano moderno foi acusado pelos seus opositores, os pós-modernos, de naturalizar o conhecimento, isto é, de tentar dar ao conhecimento o caráter de algo que sempre aí esteve, à disposição, para se descoberto por meio do estudo dos objetos. O conhecimento, nesse sentido, seria algo dado, um produto pronto, prévio e independente da ação e intervenção humanas, cuja parte seria apenas a de apreensão e representação ou re-apresentação desse conhecimento. Os conceitos nasceram para dar conta do mundo, para ser uma designação fiel das coisas às quais eles remetem. Se digo, por exemplo, “Deus”, o dizer em si já remete à entidade a qual desejo designar. Parte-se do pressuposto da correspondência entre a palavra e a coisa em si.

Não foram só os pós-modernos que denunciaram a ilusão dessas pretensões modernas. Vozes solitárias no século XIX como a de Nietzsche, contribuíram para o questionamento das bases dessa quimera. Em um texto seminal, de 1873, intitulado “Verdade e mentira no sentido extramoral”, esse filósofo lança mão de aporias do tipo: por que razão o mundo se mostraria como ele é? Seria a linguagem um simples espelho da realidade? Assim, a partir de uma fábula possível, ele propõe a tese de que o conhecimento humano é relativo e que, portanto, é arrogante e ilusória a pretensão dos filósofos – teólogos, no caso aqui proposto – de querer “dar conta” da realidade a qual se referem.

Nietzsche parte da tese de que o conhecimento foi inventado. Isso na primeira frase do texto: “Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que os animas inteligentes inventaram o conhecimento”.[1] Na percepção de Michel Foucault[2], quando Nietzsche usa a palavra “invenção” tem sempre em mente uma palavra que se opõe à “invenção” – e que, diga-se de passagem, foi por muito tempo cara aos teólogos – que é a palavra “origem”. Quando ele fala que o conhecimento foi inventado, significa, portanto, que o conhecimento não tem uma origem, isto é, não existia antes de ser inventado, não é “dado” pelo universo.

Foucault usa um exemplo da análise desse filósofo, que é o da religião. Nietzsche critica seu mestre, Schopenhauer, que em sua visão cometeu o erro de buscar a “origem” da religião em um sentimento metafísico – como também fizera Friedrich Schleiermacher, para quem “religião é sentimento” – “que estaria presente em todos os homens e conteria, por antecipação, o núcleo de toda religião, seu modelo ao mesmo tempo verdadeiro e essencial”. O protesto de Nietzsche, nas palavras de Foucault, é que essa é uma análise da história da religião “totalmente falsa, pois admitir que a religião tenha origem em um sentimento metafísico significa, pura e simplesmente, que a religião já estava dada, ao menos em estado implícito, envolta nesse sentimento metafísico”.[3] Em outras palavras, as religiões, assim como a cultura e a história, não são dadas, são fabricadas. Parafraseando Nietzsche, são fabricações da linguagem.

Com isso, parte-se de dois princípios: 1) somos irremediavelmente ligados à atividade de nomear; 2) “nomear é dar forma ao mundo”, pelo menos à parcela do mundo cabível à nossa compreensão e explicitada pela linguagem. Nomear não é nem representar, nem dar conta do mundo. Nomear é criar. Logo, o conhecimento – não um dado, mas uma produção – é apenas uma visão parcial do objeto conhecido. A linguagem conceitual não é uma tradução, mas uma invenção. Não há afinidade entre o conhecimento e seu objeto. Dizer “isso é fé”, não significa dar conta da coisa em si, fé. Mas essa é uma condição indissociável do conceito, que segundo Nietzsche nasce por “igualação do não igual”. Assim, todo conhecimento é uma violação de seu objeto...

(Continua...)

Jonathan

Notas

[1] NIETZSCHE, Friedrich W. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 53.
[2] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Naw, 2002, p. 14.
[3] Ibid., p. 15.