domingo, 10 de maio de 2009

Sobre teologia e a arte de nomear as coisas (II)

Encerrei a primeira reflexão dessa série falando sobre nossa irremediável condicionalidade à linguagem e à arte (no sentido de criação e invenção aplicado por Nietzsche) de nomear as coisas. É preciso retornar a isto para dar contorno à segunda linha de argumentação que aqui desejo propor, que na verdade se expressa em continuidade com a anterior. Na primeira parte de A gaia ciência Nietzsche faz uma menção mais direta desse problema da linguagem quando afirma que para nós “mais importa saber como se chamam as coisas do que o que elas são”. Penso que exatamente por não sabermos o que as coisas são em sua essência é que nos aferramos na atividade de nomear, de dizer “isto é assim”, “aquilo é assado”. Mas, pergunto: quem está livre de tal condicionalidade? Com isso, Nietzsche denuncia o abismo existente entre nós e o mundo tido como essencial. Nossa relação com ele não é mediada pela correspondência, e sim pela criação: “Só os criadores podem destruir! Mas não esqueçamos isto: basta criar novos nomes, apreciações, novas verossimilhanças para criar, com o tempo, novas coisas”.

Parto, porém, do pressuposto de que vivemos (nós, teólogos, mais intensamente) pautados pela negação de que somos criadores, pois tal negação nos permitiria sobreviver na ilusão “necessária” de que aquilo que produzimos discursivamente, os significados que damos ao mundo, correspondem à verdade. Essa é, aliás, a ilusão do fundamentalismo. Tal ilusão é nosso escudo de proteção contra a conflitividade gerada pela consciência de que não lançamos mão de verdades e sim de interpretações, o que automaticamente desautorizaria, nosso discurso perante um rebanho, uma coletividade. É preciso, portanto, manter os signos e os códigos combinados, a fim de que continuemos não só protegidos pela “nossa verdade”, mas pela crença coletiva na identidade. E só permanecemos nessa crença, diz Nietzsche, graças à nossa capacidade de esquecer. Como analisa Viviane Mosé, “sem esquecer a pluralidade sensível que gerou a palavra, o homem não teria chegado a concluir que a identidade forjada pelas palavras pudesse corresponder efetivamente às coisas”.[1]

Em uma palestra ministrada semana passada na Universidade Estadual de Londrina, Mosé afirmou que a palavra não passa de uma “moldura vazia”; e, à medida que é lançada, cada um faz o que quer com ela, isto é, preenche-se tal moldura como se acha mais conveniente ou apropriado para aquele momento. Se estendermos tal metáfora à comunicação, perceberemos que a comunicação, que desejamos ser uma possibilidade (de entendimento e correspondência de pensamento entre duas ou mais pessoas), é, na realidade, cheia de fissuras e impossibilidades. Como já diriam os estudiosos em comunicação, mas sem muito aprofundamento, a comunicação, ou mais precisamente a “fala”, é cheia de “ruídos”. O problema surge quando, ou como quase sempre acontece, nos esquecemos de que tendemos a reter muito mais os ruídos do que propriamente a intenção original de um sujeito no ato de dizer ou significar algo. Assim, nossas significações das coisas (atos de fala) são produtos criativos de outras significações. Tudo passa, até nós mesmos, pelo filtro da linguagem.

Por fim, vale ressaltar outra questão que me chama atenção na fala de Viviane Mosé, ao apontar para nossa interpretação do mundo, que segundo ela é baseada na fragmentação, numa racionalidade que origina um pensamento pautado por julgamentos, divisões, descrições, mas que, em virtude da ilusão em torno da qual gravitam, pretendem atingir a totalidade. Ao pretender atingi-la irremediavelmente se exclui a pluralidade de possibilidades que envolvem a compreensão de uma coisa. Ao excluir a pluralidade, exclui-se a diferença. Nossa visão míope, mas pretensamente totalitária, nos conduz à exclusão, ao afastamento da diferença. Isso me dá pelo menos uma pista importante para entender as razões que nos mantêm no campo da intolerância (de múltiplas naturezas) num mundo cada vez mais plural; ela está no princípio de nossa forma de conhecer, de nossa aversão às diferenças, de nosso fundamentalismo oculto ou sofisticado.

(Continua...)

Jonathan

Nota

[1] MOSÉ, Viviane. Nietzsche e a grande política da linguagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 73.

3 comentários:

Daniel Guanaes disse...

Fala John,
muito bom o post, hein. Comecei a reler "para além do bem e do mal" (li há alguns anos). Lendo seu post, me lembrei tb do discurso de Lacan, sobre significado e significante. Excelente. Vale a pena dar uma conferida, se você ainda não leu.
Abraço
Ps: Vamos colocar pra frente nosso projeto, hein!

Jonathan Menezes disse...

Já li alguma coisa de Lacan. Na verdade ambos (Nietzsche e Lacan) são a base de Foucault, pela proximidade com o problema da linguagem. Estou tentando ler algumas coisas de Nietzche que ainda não li no bolo de tantas coisas que tenho pra ler. A obra que tenho em mente agora é "Genealogia da moral". E sim, vamos colocar nosso projeto em prática...
Abração!

Anônimo disse...

Estava pensando há umas duas horas atrás sobre a [in]capacidade que as pessoas revelam ao se depararem com as palavras...pensando no uso arbitrário do significante e a singularidade que impõem ao significado...o que resulta em um pseudo-conhecimento...E, de repente, encontro o seu texto. rs.
"...se exclui a pluralidade de possibilidades que envolvem a compreensão de uma coisa.".
Great text.