quinta-feira, 16 de maio de 2013

Da manipulação à falta de discernimento

Photomanipulation-Self-Portrait-08A essa altura do campeonato muita gente já deve ter assistido e já deve estar familiarizada com o vídeo-denúncia em que a advogada-pastora, Damares Alves (sobre quem eu nunca havia ouvido falar antes), trata sobre supostos “escândalos sexuais” (que estariam acontecendo e por se agravar, envolvendo sobretudo pedofilia e homossexualismo) de aliciamento infantil nas escolas públicas, por meio de materiais (cartilhas, livros, etc.), de suposta iniciativa e autoria do governo federal. Recentemente, também saiu uma analise detalhada do conteúdo do vídeo, escrita por Magali Cunha (ambas, a fala de Alves e a resposta de Cunha, podem ser vistas aqui).

Após ter visto e lido ambas, resolvi compartilhar (o link acima, do site Genizah) em minha ‘timeline’ do Facebook, com a seguinte descrição: Cansado dessas teoriazinhas de conspiração evangélica de plantão. Bora enfrentar a realidade com coragem e discernimento, minha gente! Como, todos sabemos, esta é uma questão candente e como muitos já haviam de antemão endossado quase que 100% da fala e do tom da advogada-pastora, recebi algumas boas reações. Boas, digo, porque, em se tratando do clima de hostilidade que cerca a questão no Brasil poderia ser ruim. Assim, resolvi compilar aqui, tanto algumas das reações (devido ao espaço), como minhas respostas a elas.

Janderson Resende: Com todo respeito, meu professor. Acho mesmo que os evangélicos sempre se acham como vitima. Mas tem muita "merda" com os póliticos brasileiros que só querem ferrar com os evangéicos.

Resposta: Caro Janderson, de fato, tem muita "merda" de todos os lados, isso é inegável, pois não existe "pureza" na política, nem em Brasília, nos movimentos em prol disso ou daquilo, ou nas cúpulas eclesiásticas. Por isso discernir é preciso, como entendo que muitos não o fizeram diante desse vídeo e de outras coisas que orbitam pela web sobre esse mesmo assunto. Reconhecer a farsa dos políticos ou da mídia em relação aos evangélicos, outros grupos religiosos e outras partes da população é uma coisa; transformar isso em uma onda gigante de conspiração contra a família e os "bons princípios" é outra bem diferente. Há muitos exageros de todos os lados. E a prudência e o bom senso sempre devem nos levar a desconfiar de exageros, mesmo que neles haja algum fundo de realidade.

Diogo Magalhães: Se é pra exercitar o discernimento, lá vai então. Pergunto: qual é a vinculação política da Dra. Magali do Nascimento Cunha? E da Revista Genizah? Ambos são adeptos da neutralidade epistemológica, ideológica e religiosa? Cremos na objetividade ou na objetivação? Se a Dra. Damares acreditou na ingenuidade do povo evangélico brasileiro, parece-me que estes também são partidários dessa mesma crença! Ou então, todos são manipuladores! A palavra da "doutora" aqui também é apresentada com ares de "verdade"! Se é pra sermos críticos, que sejamos com tudo e com todos! Exercitemos a "dúvida metódica" e que nos "provem" a verdade! Chega de manipulação e de sofismas vindos da direita, da esquerda, "de baixo, de cima, de fora e de dentro"!

Resposta: Caro Diogo, concordo com você que o Genizah apresentou o discurso da Magali com "ares de verdade", e verdade quase absoluta eu diria. Como para mim é ponto pacífico que não existe "Verdade", senão "verdades" no nível proposicional de nossas falas, científicas ou não, não compartilho com essa tendência reacionária do Genizah de trazer a coisa para o nível da "refutação". Prefiro o diálogo. Minha intenção foi apenas compartilhar o texto da Magali que, a meu ver, tem a pretensão de mostrar a ausência clara de fundamentação presente no discurso de Damaris, e a manipulação ideológica que isto pode ocultar. A mim soou mesmo como teoriazinha (e muito barata) de conspiração, e ainda fico pasmo (embora não deveria) como nós somos crédulos diante das primeiras informações com tom sensacionalista que se nos apresentam. E veja: a própria Damaris disse, com todas as palavras que, por falta de melhor recurso, ela estava trazendo tudo aquilo com o propósito de chocar mesmo, a fim de que nós, "evangélicos", acordemos e façamos alguma coisa. O problema, assim, para mim é duplo: a leviandade da advogada-pastora, em montar um dossiê furado em termos de informações para defender a tese de que o governo está tentando implantar a devassidão e imoralidade à todo custo em nossas crianças (evangélicas, é claro!); e, mais que isso, me incomoda que, outra vez, a razão de tanta indignação venha da área da sexualidade, e endossando outra vez um moralismo despolitizado, desinformado e ultrapassado. Tenho a impressão de que nos cercamos de todas as razões (e ai de mim se disser que não!) para nos preocupar com a situação moral de nosso país. Mas se alguém vem e começa a falar de luta contra injustiça, corrupção, falsidade ideológica, abuso de poder (inclusive eclesiástico), necessidade de melhores políticas públicas para toda a população, contra os usos e abusos da propriedade privada, pela reforma agrária, em favor do meio ambiente, etc., o interesse já não é o mesmo, e essa pessoa ainda pode ser chamada de "de esquerda", socialista ou comunista. Sinceramente, essa luta monolítica é cansativa, pelo menos para mim. Agora, quanto a ideologia dos manifestantes - Genizah, Magali, etc. - não sei exatamente qual é, mas sem dúvida são falas ideológicas. Aliás, não há fala, por mais "objetiva" que pretenda ser, que seja livre de ideologias. Viver, como diria Robinson Cavalcanti, é tomar partido. E que, de novo, tenhamos coragem e discernimento no momento de tomarmos os nossos.

Diogo Magalhães: O que me deixou irritado no discurso da interlocutora foi o tom tão ideológico e dissimuladamente político apresentado, escondido por detrás de um discurso "científico", já que a Genizah fez questão de apresentar o currículo acadêmico da doutora e esconder o currículo ideológico da mesma e seus possíveis vínculos políticos. Se a assessora parlamentar foi tendenciosa em sua apresentação, a doutora foi tanto quanto ela, enfocando apenas alguns elementos do discurso, mas tentando desconstruir a totalidade do mesmo.

José Idamar Evangelista: Mas a coisa junto as massas só funciona assim, na base do panico... Só sei que a tempos eu nao via alguem defender aquilo que crê com tanta coragem e determinação, diferente do muito que a gente tem visto nos ultimos dias... Se existe oportunismo ou interesses secundários, nao sei... Mas de vez em quando é bom ver alguem derrubando as mesas e espantando os vendilhões...

Resposta: O que me encabula não é tanto a perspectiva ideológica ou interesses secundários - sobre isso, por enquanto podemos fazer apostas apenas, de ambos os lados. O problema é que a assessora parlamentar faz muita generalização, atira pra todo lado, e compromete muito a credibilidade de seu discurso. Precisamos aprender a dar o peso devido às coisas e esse vídeo não contribui pra isso a meu ver; serve mais pra alarmar, criar terror e menos pra fazer refletir ou esclarecer. Isso sem falar na homofobia evidente em suas declarações, que pode combinar com parte dos evangélicos, mas não com o evangelho de Jesus. Coragem e determinação sem o tempero da sabedoria e do discernimento não produz muita coisa além de barulho, confusão e rebeldia sem causa. O que afinal esse vídeo vai ajudar a mobilizar? Religiosos enfurecidos para que o estado proteja seus filhos e não os exponham à devassa moral da sociedade? Ótimo, contribuem muito para a cidadania com isso! Por que não aproveitam e exigem logo que a educação volte a ser confessional ou que implante cartilhas de escola dominical ou catequese? Só não poderá ser sobre sexualidade, pois nas igrejas não se fala nisso a não ser judiciosamente, isto é, em termos proibitivos e condenatórios. Mas muitos se esquecem de que seus filhos não precisam sair do conforto e da suposta fortaleza de seus lares para terem acesso a tudo isso e muito mais, ou que nem os pais, nem os líderes das comunidades que eles frequentam, têm se disposto a discutir os assuntos ora condenados com abertura, inteligência e embasamento. Não me espantaria se esses mesmos manifestantes em favor "da família" e dos "bons costumes" se juntassem à luta pela diminuição da maioridade penal - em nome de um "deus justo" -, mas nem de perto se preocupassem com uma educação de qualidade ou aumento salarial dos professores - a classe trabalhadora a quem eles terceirizam a educação dos filhos deles - ou com denunciar os abusos de poder (incluindo assédio moral) nas instituições, incluso as eclesiásticas, que eles aplaudem com tanto entusiasmo, etc. Enfim, assim prosseguimos com nossa ética seletiva, coando mosquitos, engolindo camelos e infantilizando mais ainda nosso povo. A pergunta é: até quando?

Jonathan

terça-feira, 7 de maio de 2013

Da identificação com a cruz

Wooden Christian Cross

Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me” (Lucas 9.23).

Meu ponto de partida aqui é que não é com a cruz que nos identificamos, mas com o Cristo. Quando nos encontramos com ele, como consequência, nos deparamos com a cruz e seu chamado a segui-lo. Não me encontro com a cruz sem Cristo. Esse seria um encontro falido, sem sentido. A cruz, para nós, só tem sentido se for a cruz de Cristo. Sem Cristo, hoje como no passado religioso de nossa América Latina, ela não passa de símbolo religioso, ou de um ídolo.

Em Cristo, a cruz permanece sendo símbolo de morte, mas que gera vida. Na cruz, Ele perdeu a sua vida para que ganhássemos a nossa. Ao terceiro dia ele ressuscitou confirmando nossa esperança, não na cruz, mas Nele. Cristo, e não a cruz, é a nossa esperança. Mas, como sabemos, não há ressurreição sem cruz. Encontramos-nos naturalmente com a “nossa cruz”, na medida em que aceitamos o convite para sermos seguidores do Cristo. Assim, o caminho do cristão não é o de uma “opção preferencial pela cruz”, mas pelo encontro com Cristo, que põe diante de mim a mensagem viva da cruz, como expressão do discipulado.

Toda-via, a expressão humana mais anti-cruz e mais anti-Cristo que há, mais até talvez que aqueles que se auto-declaram assim, se chama ego (ou pelo menos começa nele). O que seria o “ser crucificado com Cristo”, “negar-se a si mesmo”, “tomar a sua cruz”, senão um chamado à conversão do ego? Por outro lado, uma tendência tão prejudicial quanto a de ser anti-cruz (ou “abandoná-la”), é a de iconizar a cruz. Quando transformamos a cruz é um ícone, nós a despersonalizamos, pois nos esquecemos que foi Jesus de Nazaré, filho do homem, muito humano, que carregou, sofreu e morreu na cruz.

É perigoso, também, porque isso pode se transformar numa “tendência” infrutífera e segregacionista: nós somos “os da cruz”, e eles (o resto que não pensa ou age conforme nossa visão de evangelho), são “anti-cruz” e “anti-Cristo”. Por amor de Cristo, evitemos essa tentação. Abraçar a cruz, como expressão do seguimento de Cristo, implica em, antes de olhar para o outro, assumir e reconhecer “o impostor que vive em mim” (Manning). E que, por todas as razões demasiado humanas, que já sabemos de cor quais são, não quer nada com o “credo da cruz”, a não ser reforçar o bordão que diz “cruz, credo!”. Não sendo masoquistas, e sendo honestos com Deus, como Cristo foi no Getsêmani, certamente diremos, diante do sacrifício: “Afasta de mim esse cálice”. Mas em nós opera, pela graça, outra marca da cruz que é a marca do “está consumado”, e é ela que nos capacita a dizer: “Contudo não seja feita a minha, mas a tua vontade”.

Então, dizer que nos identificamos com a cruz, e que ela “continua jovem”, não significa carregar a cruz como bandeira. Pois, como bandeira, o imperador Constantino no século IV, os cavaleiros ou paladinos das Cruzadas dos séculos XI-XIII, e as organizações racistas da Ku Klux Klan no século XX, também carregaram, e a gente sabe com que motivações. São exemplos de que Cristo e a cruz podem ser utilizados como instrumentos do anti-Reino e do anti-Cristo. Não podemos, assim, tratar a cruz como “crachá”: só é crente se adotar “o discurso da cruz”, se “falar da cruz”, se “usar a cruz”. Não faz sentido, simplesmente porque nada disso é garantia de uma identificação visceral com Cristo. Essa identificação, antes de passar pela cabeça, precisa passar pelas entranhas, pelo compromisso gerado na consciência de, pela graça, ser chamado Filho, e de que tudo o mais na vida é secundário à luz dessa básica identificação.

Por fim, ninguém carrega a cruz por amor à cruz em si, mas por amor ao amigo. Jesus disse que não há maior amor que esse, de alguém dar a vida em favor de seus amigos. E assim o fazemos porque cremos que Deus, em Cristo, desde a fundação do mundo, está reconciliando consigo mesmo todas as coisas. Ele é o centro. Não sou o “Cristo” de ninguém, mas minha vida é (espero que seja) uma expressão do amor de Cristo pelas pessoas. E isso para mim é a cruz: a expressão mais concreta, divina e humana, de esvaziamento de si mesmo, bem como do (anseio pelo) poder absoluto em nome de outro poder, o poder do amor de Deus. Um poder onde não estamos no controle de nada, Deus está.

Jonathan