segunda-feira, 19 de setembro de 2016

O risco de se perder e a graça de ser achado

“Ele estava bem longe, na estrada, quando o pai o avistou...” (Lc 15.20)
Certa vez, um grupo de religiosos – ou de gente que se considerava bastante justa – viu um de seus mestres acompanhado de uma turma que eles consideravam ter uma “reputação duvidosa”. É que gente religiosa costuma se preocupar mais com reputação que com integridade. Então, começaram a fofocar entre eles sobre o absurdo daquela situação.
Ouvindo atento àquela conversa, mas sem responder às acusações ou se preocupar com os rótulos que recebera só de aparência, aquele homem, um perito em contar histórias, resolveu emendar umas duas ou três parábolas, que falavam de “perdição” – assunto, aliás, que não saía da agenda daquele grupo, afinal gente que se acha justa demais se preocupa tanto em arbitrar sobre o fato de uma pessoa ser perdida, que se esquece de espalhar a boa-nova de ser achado – mas também, voltando às histórias, falavam de reencontro, perdão e celebração. Uma me chama a atenção em especial, que gostaria de retratar aqui.
A história recontada[*]
É a história de um pai que tinha dois filhos.
O mais velho era um daqueles tipos dedicados, trabalhador responsável, fazia tudo direitinho e gostava de ver tudo nos conformes. Perfeccionista que era, quase nunca faltava na escola e era o primeiro de sua turma. Cedo mostrou interesse em ajudar o pai a tocar os negócios da fazenda, mas fez questão de trabalhar duro para mostrar serviço e comprometimento.
O mais novo era o oposto de seu irmão, o típico “ovelha negra” da família. Irreverente, extrovertido, criativo – se focava mais em pessoas que em tarefas – encantado pela música, tinha um “fraco” evidente por mulheres, nunca fez questão de ser o melhor nos estudos, mas sempre dava um jeito de tirar a nota necessária para “passar raspando”. Ao contrário de seu irmão, nunca demonstrou grande interesse pelos negócios da família. Seu irmão e empregados mais chegados o viam como um bon vivant (alguém que vive a vida para valer), “cabeça de vento”; por vezes era possível ver o mais velho indignado quando pegava o caçula saindo mais cedo do batente só para contemplar o cair da tarde da varanda ao som de boa música, poesia, vinho e diversão com os amigos até altas horas. Embora reprovasse veementemente o comportamento desregrado do irmão, em seu íntimo, silenciosamente, nutria certa inveja da vida que ele levava...
O pai procurava entender e lidar com o jeitão e as aptidões de ambos, cuidando meio que à distância, tentando possibilitar a vocação de seus filhos, sem frustrar-lhes a liberdade, mas obviamente preocupado com o futuro dos dois, especialmente com o do caçula, que era quem menos dava margem para a intervenção do pai.
Certo dia ele lhe deu um susto. Primeiro, quando fez um inusitado pedido: queria antecipadamente a parte que lhe cabia na herança que um dia receberia. O pai, tentando ser generoso e justo ao mesmo tempo, embora desolado e aflito, o atendeu. Dividiu a herança em partes iguais entre os dois filhos. Dias depois vieram o susto e a desolação maiores: repentinamente o filho mais novo surgiu com a ideia de deixar a casa do pai.
O que efetivamente aconteceu e ele partiu para um país distante. Enquanto em casa, vivia com a sensação de que estava desperdiçando a vida, de que havia muito pra ver; quando partiu, foi com um único desejo em mente: aproveitar a vida!
E ele aproveitou “até às tampas”, ao exagero, à fadiga total do corpo e de alma: consumiu, aproveitou, curtiu a vida “adoidado”, experimentou os extremos, e, sem se dar conta, torrou toda a grana que tinha. O seu muito virou bem pouco diante da imensidão de possibilidades e das escolhas que fez.
Logo veio uma fome que atingiu toda a região onde ele se encontrava. E ele não havia se preparado para aquilo. Sem dinheiro, sem teto, sem abastecimento e sem emprego, ele teve que trabalhar pesado – coisa que até então não conhecia, pois nunca tinha feito na casa do pai – tomando conta de porcos. De repente se viu tão esfomeado que já estava até desejando saborear a iguaria comida pelos porcos. Mas nem aquilo podia ter. finalmente ele chagou no fundo do poço.
Foi quando se deu conta do absurdo daquela situação. Então se lembrou do pai. Resolveu voltar, pedir perdão ao pai, assumir sua transgressão e esperar pela misericórdia de, pelo menos, poder ser achado como mais um entre nos empregados da fazenda do pai, uma vez que um dia ele sacrificou e maculou o lugar sagrado que graciosamente tinha ao lado do pai. É, meus irmãos, o amor é como um solo sagrado: não pisamos no de muitas pessoas, nem são tantas pessoas que pisam no nosso; mas quando esse solo é corrompido, a dor que fica é humanamente irreparável. E o filho pródigo sabia disso, compreendia que nada do que ele fizesse poderia reparar o mal causado no passado.
Alguns dias depois, estava o pai sentado na fazenda de sua casa, exatamente pensando em seu filho, sangrando a dor da distância, corroído pela saudade, aturdido por imaginar que o filho estava perdido, ou quem sabe morto. Fechou os olhos por um momento o cochilou. Acordou com uma revoada de pássaros e a ventania e, na estrada, para além do portão da fazenda, ainda distante, avistou o maltrapilho filho caminhando, ou melhor, cambaleando, de volta para casa. O coração do velho disparou. Ele não quis esperar, já tinha esperado demais, e saiu correndo ao encontro do filho e, chegando, o abraçou e o beijou. O filho, sem entender muito bem o calor daquela recepção, tentou começar o discurso de retratação que havia preparado. O pai cobrindo-o de beijos e ele, por sua vez, tentando das explicações! Mas o amor do pai não pedia explicações, pedia o abraço reconciliador, cedia o perdão gratuito, e transbordava a graça que festeja o retorno, a volta do perdido que foi achado.
Sem ouvir o que o filho dizia, ainda coberto de euforia, o pai gritou aos seus empregados e ordenou: – “Venham, tragam roupas e o vistam. Coloquem o anel da família no seu dedo e calçado em seus pés. Apanhem o melhor e mais gordo carneiro e o assem. Nós teremos festa! É tempo de celebrar! Meu filho está aqui – dado como morto, agora vive! Dado como perdido, agora foi encontrado!”. E foi a maior festança, como nenhuma festa antes vista.
O pai é assim, se regozija em cada reencontro, e faz de cada reencontro um evento singular, nunca visto, jamais repetido. O amor personifica, gentifica!
Mas não nos esqueçamos que havia outro filho, que havia ficado em casa. Ele voltava do campo naquele dia, cansado do trabalho. Se aproximando da casa, percebeu um movimento incomum na parte dos fundos, música, gente falando e rindo alto. Logo foi informado que o pai oferecia uma festa em comemoração ao retorno de seu irmão pródigo, a quem dava por totalmente perdido. Quando se deu conta, já estava revoltado e, é claro, recusou participar da festa.
O pai, atento a tudo, sentindo a ausência do outro filho, foi atrás dele e tentou conversar. Mas seu primogênito não o ouvia. Só conseguia sentir mais raiva, até que disse: – “Olha pai, por quantos anos eu permaneci aqui te servindo, nunca te dando uma dor de cabeça sequer, e você jamais ofereceu uma festa dessas para mim e meus amigos?!”. O pai ficou em silêncio por alguns segundos, demonstrando tristeza com aquelas palavras. Mas logo, com misericórdia e paciência, típicas de pai, ele olhou para o filho e disse:
– “Filhinho, você não entende! Você está comigo esse tempo todo e tudo o que é meu é seu também. Mas esse é um momento único, maravilhoso, e temos que festejar! Porque seu irmão estava morto, mas reviveu! Estava perdido, mas foi achado!”. Duvido que ambos tenham voltado para a festa naquele dia... Pois o mesmo pai que festeja é o pai que também sangra quando vê um filho/a perdido por alguma razão...
Imagens e percepções finais...
Essa história é uma das mais impactantes e que melhor resumem o espírito do Evangelho, e o espírito de Jesus Cristo: é a história do amor do Pai nos encontrando onde quer que seja em qual seja a condição em que nos achemos. E nos abraça com um amor que não se pode medir, substituir ou comparar!
E a grande moral da história não está em saber quem são, apontar ou identificar os perdidos da história. A questão é saber quem não é, ou quem nunca foi perdido? Os dois filhos da parábola estavam perdidos; a diferença é que um estava perdido fora de casa, e o outro dentro. Porque não é preciso sair de casa para viver perdido; basta se desconectar das pessoas que amamos e de Deus.
Então, antes de tudo, percebe-se que esta é uma história para ninguém em específico e para todo mundo em geral; pois, em alguma dimensão da vida, todo mundo é pródigo (parafraseando Gerson Borges). E é aos pródigos, aos maltrapilhos, aos pobres de espírito, aos pequeninos que o Senhor, paradoxalmente, escolheu convidar para o banquete do reino. Em outras palavras, o que Jesus estava fazendo enquanto andava com aquelas pessoas não é em nada incoerente com o que ele anunciou a vida toda.
Essa história, contudo, mostra que é possível permanecer perdido, mesmo sem nunca se deixar perder, sem nunca ter partido, como é o caso do filho mais velho.
Esse é um dos paradoxos da parábola: quando dizemos que já fomos achados, que nada mais resta para ser redimido, aí é que perdidos estamos e de modo permanente, invisível. Quando, porém, reconhecemos que perdidos estamos, mesmo que por pouco, significa que há esperança de ser encontrado ou reencontrado...
Sendo honesto, então, preciso admitir isso: sou um eterno reincidente! Não há um dia sequer de minha vida em que, por muito ou por pouco, eu não caia. Essa é uma verdade inconveniente sobre mim: eu vivo caindo! Nem todos sabem; poucos gostam de admitir, mas Deus o sabe...
A inconveniência dessa verdade está não somente no fato de que ela me expõe como pessoa, mas também de que ela mostra que o cair não precisa ser inimigo do estar de pé, de levantar, de poder se reerguer. Na verdade, como diz o ditado, “para cair, basta estar de pé”.
Ou, melhor ainda, como disse Paulo, “quem pensa estar de pé, cuide para que não caia”. Cuide, e não negue; cuide, e não reprima; cuide, o que significa, lide com a possibilidade sempre iminente da queda...
Por isso, é importantíssima no filho mais jovem a atitude de reconhecimento, também crucial a todos nós, em que se admite: “Estou perdido”! Sem isso, não há encontro possível. Quem nunca se sentiu perdido na vida não pode reconhecer a alegria e a satisfação de ser encontrado... É preciso honestidade para se identificar com o filho mais novo, como fez Henri Nouwen quando declarou: “Sou o filho pródigo toda vez que busco amor incondicional onde não pode ser encontrado”.
O que mais tem me chamado a atenção, ao reler esta parábola ultimamente, é que não somente os dois filhos são as figuras vulneráveis e perdidas da história. O pai também é. Não da maneira dos filhos, é claro; o pai é “perdido de amor”.
É essa imagem de Deus que a parábola me revela: a imagem de um Deus de amor, que também se encontra “perdido” em busca de seus filhos perdidos e não descansa até que, finalmente, os encontre. Um Deus que nos ama com um amor incondicional, incansável, imponderável, às vezes tolo, insano e nada justo aos nossos olhos.
Aposto que todos nós aqui já tivemos o sentimento de irmão mais velho, dizendo: – “Eu estou esse tempo todo aqui, ralando, me esforçando para não pisar na bola, e nunca recebi nada ‘extra’ por isso, enquanto esse meu irmão ferra com tudo, enfia o pé na jaca feio, e ainda é recebido com festa! Simplesmente não é justo!”. Agora eu pergunto: quem disse que o amor é justo? Se o amor fosse justo, como imaginamos que deva ser, o que seria de nós? Como qualquer um de nós poderia receber e dar amor?
É para esse tipo de loucura que Deus está nos chamando, para amar conforme um tipo de amor que o mundo desconhece, que é motivo de espanto, escândalo, e até mesmo frustração. É um amor que não força, não se apossa, agarra ou empurra; é um amor que liberta da obrigação do amor, para a possibilidade do amor...
No fim das contas, se nossa consciência nos acusa, se nosso coração nos condena, como o do pródigo, lembremos: Deus, o Pai de amor, é maior que nosso coração, e sabe o que é melhor para seus filhos/as. Pode reprovar com veemência quando maculamos o solo sagrado que há entre nós e Ele; mas, enquanto houver arrependimento, haverá perdão, e o convite para uma nova festa, e um novo reencontro.
Jonathan

[*] A história aqui reimaginada e recontada é uma narrativa baseada no texto de Lucas 15.11-32, conforme as traduções Nova Versão Internacional e The Message, de Eugene Peterson.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Morte e vida, gêmeas siamesas


É necessário muito tempo para a gente aprender a viver. Porque somos lentos, frágeis e teimosos demais.

Ou simplesmente porque, repetindo o jargão, viver não é fácil – especialmente para gente tão complicada quanto eu.
Mas nem sempre temos esse tempo todo para aprender. 
Pois é necessário apenas um instante para que a vida seja ceifada, e com ela, os anseios de um hoje não vivido e de um amanhã melhor. 
É, o amanhã não existe mesmo. Tecnicamente, talvez, mas na prática nunca se sabe. Por isso eu nunca aposto no amanhã; aposto no hoje.
Pois, mesmo com o desejo de ter vivido mais, e mesmo sendo cedo demais para alguns, é possível partir com a certeza de que a vida que vivemos valeu à pena.
E, assim, a saudade pela partida, para quem fica, se torna menos carregada e a dor pode andar de mãos dadas com a gratidão – ao menos eu acho...
Você pode querer sublimar, fazer de conta, buscar consolos fáceis ou ilusões úteis que te façam esquecer da realidade e te projetar para outra, menos “real”, menos cruel...
Mas a realidade é uma só: a morte é um fato inescapável, e ela não tem preferidos.
Cedo ou tarde, ela virá. E “tudo o que era sólido se desmancha no ar” (Marx), ou melhor, na terra ou debaixo dela.
Só que Bauman nos disse que hoje, já, agora, o sólido tem virado líquido. Bem, mas não apenas de hoje...
Há milhares de anos, Eclesiastes já tinha dito que tudo é fumaça, que nada faz sentido. E eu acrescento: nada permanece!
Nada mesmo?
A única certeza que tenho é a do instante, e preciso fazer dele o melhor possível enquanto tenho oportunidades. Mas só o agora oferece oportunidades.
Posso morrer sem ter mudado muitas coisas na minha vida e no mundo a meu redor; mas quero morrer bem ciente de que tentei ao máximo. De que fiz o que pude. De que que arrisquei. De que me tornei disponível aos outros.
E, mais importante, de que amei. Do começo ao fim – permitam-me contradição – só o amor permanece.

Jonathan