terça-feira, 28 de março de 2017

Transformando inteligências e não inflando 'egos'


“Não imitem o comportamento e os costumes deste mundo, mas deixem que Deus os transforme por meio de uma mudança em seu modo de pensar” (Rm 12:2a, NVT).

Talvez não haja sentimento humano pior que o de estar dividido: entre mundos, desejos, valores, amores, escolhas e estilos de vida opostos ou conflitantes. A sensação é a de violação interior: somos violados internamente todas as vezes em que não conseguimos ser quem somos e, simultaneamente, agradar a todas essas forças que o tempo todo parecem guerrear dentro de nós, ora nos empurrando para um lado, ora puxando para outro. É uma espécie de escravidão, porque são essas forças e não nós mesmos (muito menos Deus) que temos o controle sobre nossas vidas. 

O exemplo neotestamentário clássico é o de Paulo, em Romanos 7, quando apóstolo narrou seu drama interior entre desejar fazer um tipo de coisa – por entender, pela lei de Deus, que era bom e correto – e ver-se seguindo a via completamente oposta, pela força da “lei do pecado” que habita em seus membros. “Quero fazer o bem, mas não o faço. Não quero fazer o que é errado, mas, ainda assim, o faço” (Rm 7:9, NVT). E, como ele deixa bem claro naquele texto, a força para vencer (ainda que não de uma vez por todas) esse conflito não reside nele mesmo, mas na graça de Jesus Cristo.

Ou seja, ao mesmo tempo em que aprendemos que estar dividido faz parte da experiência humana – pois é fruto da angústia de querer e não poder, ou de não querer, e ainda sim fazer –, também sabemos que isso é tremendamente destrutivo, pois nos faz escravos do pecado e de nosso ego (o que dá no mesmo). O ser dividido é um ser adoecido, carente de seu brilho humano original. 

No próprio texto de Romanos 7 Paulo relembra o nome desse mal: “cobiça”. A cobiça é o que me faz desejar algo que está além de minhas possibilidades; e, quando ela toma conta dos meus membros, é também o que interdita o bem que eu quero fazer, mas não consigo. Ela normalmente começa com um pensamento (falo como mestre da cobiça!), um simples e aparentemente inócuo pensamento. Na medida que vai tomando forma, esse pensamento vai chamando outros pensamentos e corporificando um desejo, que logo toma conta do coração (o centro da volição, segundo o AT), e quando ocupa o coração se enraíza e faz morada ali, se espalhando para os membros do corpo e demandando atitudes concretas de satisfação. Nesse âmbito, a lei de Deus já não tem poder algum a não ser o de aguçar a concupiscência (o desejo pecaminoso).  

A cobiça é, portanto, a mãe e a mestra da alma dividida!

Em Romanos 12, Paulo deixa claro que a transformação passa pela entrega de nosso ser inteiro a Deus como “sacrifício vivo e santo, do tipo que Deus considera agradável” (Rm 12:1). Que tipo de sacrifício é esse? Não se trata de uma oferta tipicamente religiosa, porque o sacrifício vicário, último e suficiente (de Jesus na cruz) pôs fim à necessidade de ofertas dessa natureza. O que “está consumado” não pode ser revogado, tampouco barateado no altar das “oferendas espirituais”. Trata-se precisamente do nosso coração. Ou seja, até para que a cobiça não mais tome conta do coração e faça dele um escravo, é necessário oferecê-lo inteiramente a Deus. Somente assim o coração – e tudo o mais no ser humano – poderá ser livre ou rumar para a liberdade.

O passo conseguinte dessa liberdade está em não mais ter de mimetizar os modos de ser e pensar de nossa cultura, especialmente aqueles que nos conduzem ao velho problema da cobiça e, portanto, são conflitantes com a vida de e em Deus. E aqui entra em questão o que mais quero chamar atenção nesse caso: a transformação pela qual alegamos ter passado, no momento de nossa conversão (ou da entrega de nosso coração a Deus), implica em um modo novo e diferente de pensar: do pensar que se conforma ao pensar inconformado

O primeiro é o que segue as tendências, modismos e flutuações de seu tempo e cultura; é o pensamento que se adapta de acordo com os ditames de seu entorno, que “se mundaniza” ao se curvar ao modus operandi e às urgências de seu tempo. Em contrapartida, o segundo é o que quero chamar aqui de "pensamento mutante". É mutante porque está mudando constantemente não apenas por não aceitar os moldes impostos por seu entorno (e aqui me refiro tanto a conteúdos quanto a formas), quanto e principalmente porque procura seguir o sopro do Espírito de Deus – o mais selvagem sopro do universo! E na medida em que o Espírito de Deus, como sabemos, nunca para de soprar – a despeito de nossa incapacidade de escutar o que Ele sopra – o pensamento de quem procura segui-lo nunca para de mudar, de amadurecer, de se trans-formar. 

Por isso esse pensamento é, no geral, in-con-formado; suas formas são assumidamente provisórias; sua teologia é feita a partir do caminhar e da jornada e, por isso, resiste a moldes ou formatações permanentes. É construída a partir de constantes esboços de saber e agir à luz da Palavra, e como resposta crítica às necessidades de seu contexto. E assim, pela graça, vai “experimentando” aqui e acolá relances da “boa, agradável e perfeita vontade de Deus para vocês” (Rm 12:2b). E aqui está um claro contraste entre apenas conhecer e experimentar: há muitos que conhecem cognitivamente a vontade de Deus (como o Paulo de Rm 7 dizia conhecer bem “a lei de Deus”), mas somente aqueles que permitem ser transformados por Deus e sua graça é que a experimentam de fato. Mas o que isso significa concretamente?

Bem, há vários sinais dessa transformação que Paulo nos vai apontando ao longo do capítulo 12, sendo o mais marcante deles, a meu ver, a capacidade de se humilhar. Começando por ser “honestos em nossa autoavaliação” (12:3), andando de acordo com o que Deus nos deu e não se julgando maior nem melhor do que ninguém. Por outro lado, o comportamento cobiçoso é irmão do comportamento orgulhoso: na medida em que almejamos ser mais do que nos cabe, isso vem acompanhado de querer ser mais que os outros – e logo achar que sabe mais, que é mais inteligente, e que a luz de seu pensamento reluz tanto que torna o do outro uma mera sombra. 

Não se trata aqui de negar quem somos e o que sabemos, tampouco de esconder isso, mas de saber que no Reino de Deus não há espaço para “egos inflados”. O dom de Deus foi feito, sim, para ser externado e partilhado, e realizado com excelência: que o profeta profetize na medida do dom de Deus; que o mestre ensine bem; que o servo que sirva com dedicação; já o que lidera, que o faça de modo responsável (cf. 12:6-8). No ato de partilhar, porém, precisamos aprender não usurpar o lugar uns dos outros, porque, como lembra Paulo: “Somos membros diferentes do mesmo corpo, e todos pertencemos uns aos outros”. E, como diz a poesia de Beto Guedes na canção “O Sal da Terra”: 
Vamos precisar de todo mundo, um mais um é sempre mais que dois | Pra melhor juntar as nossas forças é só repartir melhor o pão | Recriar o paraíso agora para merecer quem vem depois.
A inteligência transformada é fruto de um coração transformado; fruto da cabeça que incha no mesmo compasso em que incha o coração. Que sabe que no reino de Deus maior é o que serve, que honra o caminhar de quem veio antes e pavimenta o caminho para quem vem depois, porque reconhece que todo mundo precisa de todo mundo

Jonathan

segunda-feira, 13 de março de 2017

O péssimo hábito da literalidade e do pré-juízo


Um dos grandes descaminhos do saber se encontra no que chamo aqui de “péssimo hábito da literalidade e do pré-juízo”. Pois, como já insisti em posts anteriores, tomar as coisas como dadas, tal como emergem na superfície, pode comprometer o juízo e a interpretação que oferecemos sobre as situações, os objetos de estudo, e as pessoas. O desafio aqui é desconfiar do dito e de meus pressupostos inicias sobre ele; é indagar sobre os possíveis “não-ditos” ou “mal-ditos” subjacentes nos ditos. Em suma, nem tudo é sempre tão óbvio quanto pode parecer. Ilustro com uma história.

Recentemente meu amigo Kleber Lucas cantou “Epitáfio”, dos Titãs, junto com sua banda em um dos cultos da “Soul Igreja Batista” no Rio de Janeiro, onde ele atua como pastor. Em seguida, publicou um vídeo em sua conta no Instagram, e (como já era de se esperar) foi execrado por uma massa de “irmãos” (digo com certa relutância) na fé, não só por cantar uma música “secular” num culto cristão, mas por ser esta uma canção cujo refrão diz: “O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído”. Duas questões me preocupam nesse caso, sobre as quais quero comentar aqui. 

A primeira questão nasce do mui antigo dualismo sagrado versus secular

O pressuposto, nesse caso, é: existe música “do mundo” e existe “música de Deus”. Na igreja a gente só pode ouvir e cantar música de Deus (isto é, gospel), nunca do mundo. Escuto essa baboseira sectária desde que me conheço como cristão, mas para mim ela nunca fez sentido. Porque tem música que se diz ser “pra Deus”, mas que simplesmente não consigo cantar (ou sequer suporto ouvir), porque fere meus ouvidos de tão ruim no conjunto letra, teologia e a melodia. Pode até comover, mas não muda um centímetro da vida; fala de Deus, mas só pra massagear o ego. 

Além disso, não me fazem pensar, não mexem com minhas entranhas, não me instam a olhar para o próximo, ao micro e macro ambientes que me cercam, a relacionar a Palavra com as questões do cotidiano, a adorar a Deus e celebrar a vida em comum-unidade, até porque centram-se quase inteiramente no indivíduo e seus problemas particulares. Como diz João Alexandre, são variações do mesmo tema, “meras repetições” – e me pergunto até quando insistiremos em repetir e variar, em segregar e não pensar, em vociferar e não dialogar? Certas coisas parecem ser insuperáveis.

Em contrapartida, tem tanta música feita por gente “do mundo” que consegue fazer o que falta a muitas canções cristãs: cantar as belezas divinas, sem necessariamente falar o nome de Deus, e retratar os dramas da vida humana e os gemidos da criação. Para citar só um exemplo dentre tantos: “Sol de primavera”, de Beto Guedes, é uma canção “do mundo” que pode ser entoada como hino a Deus, pois fala de dor, fraternidade e esperança, sobre semear a boa nova, sobre andar a segunda milha com quem chora, sobre aprender a viver e ser melhor. [É óbvio que tem muita música cristã que também faz isso com competência, mas esse texto não é sobre elas].

Ora, eu sou de Deus e eu faço parte do mundo; o mundo é de Deus (embora boa parte dele seja tomado pelo maligno), e todas as coisas boas nele existentes são fruto de Sua Graça; atributos invisíveis, como disse Paulo; imagem e semelhança do Criador. Se eu respiro, ando, vivo, canto, choro, sofro e me alegro dando ações de graças “em tudo”, não tenho razão alguma para perder tempo com dualismos religiosos infantis. Logo, não existe música de Deus versus música do mundo; existe música boa versus música ruim, e para todos os gostos. Portanto, discernir é preciso; segregar não é preciso. Agora, se não gosta ou não aprova; se para você esse tipo de fazer não convém a sua forma de fé, ao menos não julgue nem discrimine quem vivencia sua fé com liberdade e gratidão. Somente Deus conhece e examina o coração, lugar por excelência do louvor.

A segunda (e central) questão diz respeito ao péssimo hábito da literalidade e do pré-juízo

A música “Epitáfio”, dos Titãs (2001), parece-me ser apropriada para uma reflexão sobre essa vida que vivemos. “Epitáfio” nada mais é que aquela inscrição da lapide do túmulo no cemitério. Geralmente ali se escreve aquilo que a pessoa foi, uma qualidade dela. Exemplo: “Aline, esposa fiel, mãe dedicada, mulher irrepreensível”. A música, porém, inverte isso e apresenta uma lista de coisas que a pessoa queria ter feito, mas não fez. Em suma, é como se ela dissesse: “Eu queria e devia ter vivido melhor, curtido intensamente os momentos singulares da vida, mas não consegui”. 

É uma linda canção, que fala de ideais de vida possíveis, mas de um lugar de impossibilidade: o instante da morte. Embora tratemos a morte com extrema recusa, estranhamento e medo muitas vezes, ela tem uma função pedagógica: lembrar-nos sobre como temos vivido e que valor damos à vida e às pessoas a quem mais amamos. A poesia dos Titãs, porém, chama atenção a dois problemas pelo menos (um prático e outro teórico) - que, por sua vez, não anulam a meu ver sua beleza poética e sua utilidade para a reflexão, nem a torna “proibida” de se cantar na igreja (desculpe, mas me sinto ridículo nesse comentário). Primeiro, mostra que, nos últimos instantes de vida, quando não há mais nada a ser feito, alguém lamenta o que poderia ter sido feito, mas não foi ou não fez. Segundo, afirma que “o acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído”. 

Aqui chegamos ao coração da questão: o acaso – que diz respeito a coisas que acontecem sem aparente (e previsível) causa ou razão – ao que me parece, não escolhe a quem vai atingir, nem tampouco tem “protegidos”. Se tudo depender do acaso, então minha vida está nas mãos daquilo que há de mais incerto e implacável. O que pouca gente sabe, porém, é que o acaso é considerado biblicamente como parte integrante da existência, e não um mal a ser extinto (nem poderia). Senão, examinemos brevemente o famoso versículo do livro de Eclesiastes em que a palavra aparece:
Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois o tempo e o acaso afetam a todos. (Ec 9:11, NVI)
O autor aqui desvela uma verdade inconveniente: nem sempre o que era para acontecer, segundo uma ordem esperada de coisas, acontece. O honesto nem sempre “vence na vida”; atos de bondade nem sempre são recompensados do mesmo modo; ou ainda, como se diz em outra tradução, “as pessoas mais capazes nem sempre alcançam altas posições. Tudo depende da sorte e da ocasião” (NTLH), ou do tempo e do acaso. A palavra em inglês para acaso é chance, e diz respeito a ausência de controle e presciência sobre tudo o que de bom ou de ruim acontece debaixo do sol. “Cedo ou tarde”, afirma-se na tradução A Mensagem, “a má sorte atinge a todos”. Isso mesmo: todos! Mesmo os que creem na proteção divina, não estão blindados contra ele. O acaso, portanto, pode não ter protegidos, como sugere o autor da canção, mas ninguém passa por esta vida sem ser afetado/a por ele.

O péssimo habito da literalidade não nos permite questionar, não nos capacita a lidar com os paradoxos, a ponderar o imponderável, porque não admite “contradições” de toda sorte – embora as Escrituras mesmas coloquem essas contradições  bem diante dos nossos olhos, só não vê quem não quer. Então, julgamos quem canta a música dos Titãs como “traição à fé” (resta saber qual), sem saber o que cada um carrega no coração quando canta, e como se apropria da canção. Os detratores do pastor e sua comunidade não estiveram na "Soul" naquele dia, e não poderiam ter a dimensão do significado que aquela canção teve para aquelas pessoas ali reunidas. Não obstante, como é usual no meio evangélico, deixaram-se levar pelas aparências, optaram pelo caminho da segregação, do ódio e do julgamento típicos de uma certa religião. Afinal, sempre é mais fácil julgar do que compreender, condenar do que discernir, empregar fórmulas mágicas do que enfrentar a complexidade da vida de peito aberto e com a franqueza de às vezes poder dizer “eu não sei”. 

Eu, porém, ainda fico com o bom senso advindo da Palavra de Deus, que me instrui aqui e acolá a evitar a frivolidade dos caminhos fáceis e a leviandade das respostas prontas, cujo convite é o do discernimento, da coragem e do enfrentamento da vida e suas intempéries, com confiança e esperança no Deus de amor, sabedores de que Ele caminha com a gente, desde as montanhas mais altas aos vales mais escuros; das avenidas iluminadas aos becos da existência, sem que saibamos exatamente o “como” nem o “porquê”. Que o péssimo hábito religioso da literalidade e do pré-juízo, bem como o seu famigerado gosto por repetições, não mais nos impeçam de encontrar Deus no lugar improvável, no aparentemente escuso e no inesperado. Pois teologia e fé que não se deixam surpreender por Deus são coisas tremendamente enfadonhas e pouco frutíferas; de novo, meras repetições. 

Jonathan

terça-feira, 7 de março de 2017

Livrai-nos dos consoladores molestos!


Vocês falam como especialistas. Até parece que, quando morrerem não sobrará ninguém para ensinar outros a viver. (Jó 12:1, A Mensagem)

Em meu tópico anterior falei sobre “o fazer que há no saber”. Neste falarei sobre os limites que a complexidade da vida impõe ao saber, e o transpassar desses limites por quem acha que o saber (teológico) tem resposta para tudo, pode sistematizar tudo, e até mesmo possui presciência sobre a vida, sobretudo a dos outros. Meu estudo de caso aqui será sobre Jó e seus “amigos”, aos quais chamarei aqui de “doutores destino” – em clara alusão ao personagem “Doutor Destino” das histórias em quadrinho da Marvel, cuja característica principal é o orgulho exacerbado. Não fica difícil, portanto, identificar o alvo principal de minhas preocupações aqui: o chamado “orgulho intelectual”. 

O livro de Jó é como uma grande peça teatral, com personagens marcantes assumindo falas em diferentes atos. Não se trata de um livro doutrinário ou sistemático, mas de uma poderosa e inquietante parábola sobre a vida e o sofrimento humanos. O enredo conhecemos bem: Jó, um homem íntegro e fiel a Deus, tinha uma vida próspera e era um dos homens mais importantes de todo o Oriente. Indo prestar contas ao Eterno, Satanás coloca a integridade e fidelidade de Jó em cheque, dizendo que ele se portava assim porque tudo ia bem com ele. “Retire tudo o que ele tem, e veremos onde vai parar essa fidelidade!”. O Eterno, então, permitiu que tudo lhe fosse retirado, porém, sem nenhuma consequência fatal. 

E assim se fez, tudo na vida de Jó entrou em colapso como num efeito cascata: primeiro foram os bens materiais, depois a família e, por fim, a saúde de Jó. E nada de Jó pecar. Vieram seus amigos (Elifaz, Bildade e Zofar), que permaneceram a seu lado em silêncio, velando-lhe o profundo sofrimento durante setes dias e sete noites. Ao final daquele tempo, Jó, não suportando mais a dor e miséria absurdas em que caíra, quebrou o silêncio e começou a amaldiçoar o dia de seu nascimento, questionar a razão de ser de sua existência e a despejar toda a sua revolta em Deus, colocando em pauta a questão do “sofrimento do justo”, tema recorrente nos livros de sabedoria do AT.

Sua indagação central foi: por que Deus permitiu que eu, um homem reto e bom, viesse a sofrer tamanho revés, tamanha miséria e a experimentar tão grande amargura na vida, a ponto de desejar a própria morte? Onde foi que eu errei para que a morte invadisse minha vida dessa maneira? Como o infortúnio lhe atingiu de modo certeiro e avassalador, Jó não tinha em quem descontar, de modo que o alvo mais natural nesse caso era o Eterno, a quem ele servia e era fiel. “Por que, Deus!? Por que eu? Por que dessa forma tão cruel?”. Quando o infortúnio e as más notícias batem à porta, as respostas tendem a sair logo correndo pela janela. A sensação de solidão e abandono é recorrente. E quem mais poderia suportar-nos nessa hora senão o Eterno?

Os “amigos”, porém, não entenderam assim, e logo também saíram das sombras e do silêncio, bancando os paladinos de Deus, mas de fato desempenhando o papel de “advogados do Diabo”. Sabe aquele grupo que liga as antenas logo que vê alguém falando de Deus e não perde a oportunidade de pular no pescoço de quem quer que possa estar dizendo algo que venha “machucar Deus” (ou o Deus de sua ortodoxia ou de sua teologia)? Os amigos de Jó foram capazes de ficar em silêncio compreensivo só enquanto o amigo igualmente permanecera em silêncio, como se sua dor fosse menos “doída” e (para eles) menos escandalosa porque silente. Mas quando ele passou a gritar e a lamentar, eles saíram da condição de amigos para a de juízes e “doutores destino”, sabedores do que Deus pensa e porque as coisas acontecem como acontecem, implementando uma lógica própria: a de causa e efeito. A teologia dos amigos de Jó, como bem notou Caio Fábio em seu livro O enigma da graça, é a “teologia moral de causa e efeito”. 

Para eles, a vida de pessoas inocentes e íntegras de fato não pode acabar em desgraça, porque elas não semeiam isso; quem semeia bondade só colherá bondade. Para eles, somente “aqueles que cultivam o mal e semeiam a desgraça colhem exatamente isso”, como disse Elifaz (Jó 4:8). Segue-se que o problema de Jó e a situação em que se encontrava tinha uma causa ou razão certa: é porque ele estava em pecado, e é porque não era justo nem íntegro como reivindicava ser. De fato, a sabedoria bíblica atesta que “não há uma única pessoa perfeita no mundo; nenhuma que seja pura e sem pecado” (Ec 7:20). A retidão de Jó indicava um caminho de obediência, mas não uma vida sem pecado. Inteiramente diferente é, porém, dizer que ele caiu nessa situação porque era pecador; se assim fosse, como explicar a situação de tantas pessoas que vivem em pecado, mas não sofrem o mesmo tipo de consequência? O problema do sofrimento do justo é, portanto, consentâneo ao problema da prosperidade do ímpio. 

De mais a mais, com um raciocínio tão simplista baseado na lei do “toma lá, dá cá” (alguém só recebe aquilo que realmente merece), os conselhos não poderiam ser menos molestos do que os que foram por eles apresentados, como os de Zofar a Jó: é o seguinte, você pecou, fez besteira e isso é um fato, do contrário não poderia estar na situação em que está. Então, abra o coração para Deus e peça ajuda; se você abandonar o mal, limpar das mãos o pecado, “você poderá encarar o mundo sem sentir vergonha e andar seguro sem medo nem culpa. Você esquecerá das suas angústias: elas não passarão de cagas lembranças”. E mais: “o sol vai raiar e brilhar para você, e toda sombra será dispersa ao romper da manhã” (Jó 11:13-16). Simples assim. Praticamente uma formula mágica! Ora, a resposta de Jó não poderia ser outra e provavelmente ocorreria a qualquer ser humano sensível, e se revela no sentimento de traição e desamparo: “Alguém desesperado pelos amigos deveria ser amparado, mesmo que desistisse de confiar no Todo-poderoso (...). Vocês apontam o que há de errado em minha vida, mas respondem à minha angústia com conversa fiada (Jó 6:14, 26).

As respostas honestas de Jó me lembra das considerações de C. S. Lewis em seu livro A anatomia de uma dor, escrito por ele em seu período de luto pela morte de sua esposa. Ali Lewis revela que em sua busca por Deus em meio a luto, tudo o que conseguiu encontrar foi “uma porta fechada na sua cara, ao som do ferrolho sendo passado duas vezes do lado de dentro. Depois disso, silêncio”. Também assevera que a dor não diminui nem o tormento vai embora com consolos e conselhos molestos, por mais bem-intencionados que sejam, nem com “evasivas”, discursos com ornamentação rebuscada ou explanações teológicas de toda sorte. Em sua experiência, o luto não foi menor porque alguém disse que sua esposa estava melhor porque estava com Deus. E conclui acertadamente que, “quando você está lidando com Deus, é possível cometer toda sorte de equívocos”. Jó podia (e tinha, de certo modo, permissão para) estar equivocado porque ele falava de um lugar equívoco, o lugar da dor excruciante. Como cobrar bom senso e doutrina reta de alguém nessa situação? Mas o equívoco dos “amigos” foi maior, pois falavam de Deus priorizando a retidão da letra e não a singeleza do coração. Se o coração for duro, insensível e indolente, a letra, mesmo quando reta, será letra morta.

Não é à toa que Jesus não veio chamar gente (que se acha) justa e reta, mas pecadores ao arrependimento. Usando a metáfora de Brennan Manning, ele não veio para a elite espiritual e teológica, o pessoal da “auréola apertada”, mas para os maltrapilhos, isto é, a turma da “auréola torta”. Só quem passa pela grande miséria – ou que ao menos reconhece sua miséria – pode também passar pelo grande arrependimento. Portanto, minha oração final é simples: que Deus me ensine a fazer teologia a partir do lugar da incompletude, da falta e, por isso, do arrependimento. Que Ele me livre dos consoladores molestos, sim! Mas que me livre, sobretudo, de me tornar um; que afaste de mim o orgulho intelectual. Pois não há risco humano mais óbvio que o de nos tornamos apenas mais uma variação ou versão sofisticada daquilo que mais abominamos. 

Jonathan