segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Carta a Rubem Alves

Rubem Alves 2

"As certezas andam sempre de mãos dadas com as fogueiras...” [Rubem Alves].

Ah, querido Rubem, se você ainda estivesse entre nós, certamente notaria como essa sua assertiva, escrita há algumas décadas, continua sendo tão atual, infelizmente. Lembrando nosso amigo Voltaire, parece que continuamos nos dilacerando "por causa de alguns parágrafos", sendo piores que os tigres, que dilaceram senão para comer. Mas, sabe: o problema, talvez e muito ‘talvezmente’, não seja nutrir determinadas certezas, se me permite uma leve variação de ponto de vista, pois existem convicções (ideológicas, de fé e vida) que, para nós, são tão caras que arriscamos tomá-las como "certezas". Então, não sei, caro mestre, se "todas" as espécies de certezas conduzem a fogueiras - talvez a maioria delas, sim. É que teimosa e relutantemente ainda acredito na profundidade de certos valores (não consigo transvalorá-los todos, como pretendeu nosso outro bom amigo, Nietzsche), como o amor, por exemplo. Mas será que o amor pode ser chamado de certeza, ou mesmo de "valor"? Acho que aqui poderíamos concordar que o amor, se certeza for, é a mais incerta que existe, pois não oferece controle nem garantia de nada. Pela fé, por exemplo, sinto-me convicto sobre o amor de Deus pelo mundo; mas não há, nem nunca houve, garantias de que o mundo abraçará ou compreenderá o amor de Deus, às vezes sinto o contrário: que o mundo, ou seja, nós-mundo nos tornamos antítese desse amor, especialmente quando fazemos coisas horríveis, como sacrificar pessoas, "pelo amor de Deus", ou por amor à sua "verdade". Ironia das ironias: o Senhor amou o mundo, mas o mundo escolheu pregá-lo numa cruz! E ainda prosseguimos numa crucificação sem fim...

É, caro Rubem, as coisas aqui andam muito estranhas, especialmente nesse lugar mais deslocalizado possível chamado Facebook, onde algumas linhas ou imagens podem gerar uma tempestuosa indisposição entre pessoas, às vezes entre amigos, ou até mesmo entre irmãos. Seria por efeito das “certezas”, sobre as quais você falou, ou pela teimosia orgulhosa em não admitir nossas fraquezas, pontos falhos ou cegos? E como poderíamos falar de certezas senão por determinados pontos de vista? E como separá-las das fogueiras, se não mais toleramos os pontos de vista uns dos outros? Que faremos, pois: abolimos as certezas? E como fazer isso sem, de novo, aniquilar as pessoas? O relativismo, no fim das contas, parece mesmo ser um absolutismo invertido. Talvez se nos esvaziássemos, pelo menos, da pretensão de enxergar sempre melhor e mais acuradamente que os outros, da pretensão de preencher todos os espaços vazios, da pretensão ao conhecimento absoluto, a coisa já melhoraria muito, e as “certezas” já não seriam mais tanto um problema.

Quero então tentar uma nota diferente. As certezas que nutro, pela relatividade de meus pontos de vista, do lugar a partir do qual vejo e falo, são e serão decididamente incertas. E não existirão mais para achatar pontos de vista de outrem, pois, se não são capazes de conversar civilizada e respeitosamente, mesmo que em tom declaradamente dissonante, é melhor que permaneçam caladas. Desisto de tentar vencer sempre, pois um mundo onde todos querem a vitória (de seu partido, ideologia, visão doutrinária, religião ou nação), só pode ser um mundo em guerra e, por conseguinte, fadado à destruição. Quero viver uma vida em que as perdas sejam jubilosamente acolhidas como oportunidades, e as vitórias eventuais sejam celebradas humilde e humanamente com poesia e canto, e não com marchas triunfais. Que eu aprenda a abdicar de uma das mais tentadoras para mim: a marcha triunfal do pensamento. Pois ela é tanto triunfal, quanto inquisitória; tanto triunfal, quanto excludente.

Nunca me esquecerei de algo que você disse sobre os teólogos no prefácio ao seu livro “Por uma teologia da libertação”. Você disse que alguns deles se parecem com o galo: “Acham que se não cantarem direito, o sol não nasce: como se Deus fosse afetado por suas palavras. E até estabelecem inquisições para perseguir galos de canto diferente, e condenam outros a fechar o bico, sob pena de excomunhões”. Isso, porque “todos estão de acordo em que existe uma partitura original, revelada, autoritativa, e que a tarefa da teologia é tocar sem desafinar... Qualquer que seja a aposição, todos afirmam que existe um único jeito de tocar a música”. Você sabia o que estava dizendo, Rubem, pois enfrentou essa fúria galinácea na pele, não foi? E, como dizia Voltaire, por seus próprios “irmãos”! Não deve ser nem um pouco fácil ser apunhalado por gente da própria família, que pela frente diz “meu amado”, e pelas costas te condena como liberal, herege ou coisa que o valha, e não me admira que tenhas evitado para si o rótulo de “teólogo” depois disso (eu até acho que teria feito o mesmo). Por essa razão, me junto, sem querer me comparar, a você em prosseguir tentando “inventar outros cantos, sabendo que o sol não vai se zangar e vai nascer sempre, no mesmo lugar”. Gostei também da expressão que você usou para traduzir isso: “Graça”. Permita-me então encerrar transformando suas palavras em uma oração, dirigida agora especialmente a nossos camaradas teólogos/as:

Que produzamos novos cantos teológicos, com coragem e responsabilidade, com inventividade e fidelidade, mas sem medo de desafinar, conscientes de que “a bondade de Deus continua a mesma, sempre, independente de nossas afinações ou desafinações. Ele [o sol] nem nasce melhor quando estamos afinados, e nem nasce pior quando estamos desafinados... Temos, portanto, a liberdade de fazer o que quiser... Eu não suportaria pensar que meu pensamento é tão poderoso que, caso eu pense errado, Deus vai ficar torto”.

Jonathan