terça-feira, 26 de junho de 2012

Meu problema com as apologéticas

Apologética

Apologética é má teologia, como disse certa vez meu ex-professor Júlio Zabatiero. Primeiro, porque parte do princípio de “defesa da fé”. E desde quando urge que a fé seja defendida? Ora, desde quando ela tem sido “atacada”, diria alguém. Entendo, porém, que precisamos, sim, responder às interpelações feitas a fé, mas sem a preocupação em fazer do diálogo um tribunal onde ela possa ser defendida e, no fim das contas, quando “ganharmos a causa”, ser absolvida de suas acusações – o que já não poderia ser chamado de “diálogo”. Dar razão da esperança que há em nós, como diz Pedro, é diferente de defender a fé, que em si, existe para ser indefesa, frágil, e sujeita a retaliações, como foi Jesus. Ele não defendeu a fé, a causa, a missão, mas procurou integrá-las com divina coragem e discernimento a sua vivência e prática diárias.

Segundo, porque a defesa precisa se assemelhar ao ataque para poder partir para o contra-ataque. Nesse aspecto, a apologética peca, pois ainda persiste num diálogo de surdos com a linguagem científica do século XIX, em pleno século XXI, afirmando “certezas” onde só temos “impressões”, “linguagens”, “interpretações”. A certeza e a verdade que afirmamos, pela fé, afirmamos mais com a vida, e menos com o discurso ou de modo proposicional. O discurso, por sua vez, é recheado de incertezas, de imprecisão, de subjetividades. E assim precisa ser, pois se configura como discurso humano sobre o divino, a parcela falando sobre o todo, ou, parafraseando Ellul, aquilo que há de mais imperfeito e temporal falando sobre o perfeito e eterno. Que conseguiríamos nós com nossa “fala sobre Deus”, senão, expressar uma parte? Ora, o próprio Paulo foi quem disse que hoje conhecemos apenas uma parcela da verdade, e então, quando vier o que é perfeito, conheceremos como também somos conhecidos.

Terceiro, se nossa teologia é, por natureza, recheada de proposições sobre Deus, defendo que estas sejam modestas e assumam-se como um discurso em meio aos outros, e não “O Discurso” e “A verdade”, como a maioria das apologéticas acaba se colocando quando apresenta o Cristo travestido de sua roupagem teológica, sem, porém, que se reconheça as limitações óbvias dessa roupagem. O Cristo Verdade-Caminho-Vida é absoluto como ser, mas acaba sendo (e precisa ser) relativizado quando passa pela via dos conceitos humanos. E todo conceito, como diria Nietzsche, nasce por igualação do não igual. Nesse sentido, igualar Cristo a nossas ideias sobre Ele é uma pretensão para lá de funesta, e é onde pecam muitas das apologéticas, do passado e do presente.

Doutrinas não são absolutas; podem ser, sim, percepções relativas, ainda que fiéis, de um princípio absoluto. A relatividade ou provisoriedade da doutrina não é uma negação ou diminuição do absoluto, mas é a assunção de nossa incapacidade de compreendê-lo. Se for absoluto não pode ser reduzido – e em grande medida isso é o que são nossos conceitos ou percepções de Deus: reduções. Que falham ainda mais quando não se assumem como tais, e ainda se vêem no direito de dizer quem está e quem não está do lado “da verdade”. Mas a questão é: se é absoluta, como pode ser expressa? Pode ser expressa por meio da parcialidade imperfeita do discurso – ou da vida. Afirmar que expressamos ou vivemos em parte, é a maneira como Paulo em 1Co 13 nos ensinou a viver na casa do conhecimento sem abandonar a casa do amor.

Mas antes que confundam o que estou dizendo com relativismo, reitero o que já disse em outro lugar: afirmar que nosso conhecimento não é capaz de “dar conta”, de deter a verdade ou alcançar a verdade objetiva, não significa dizer que “não existe mais uma verdade absoluta”, e sim que não pode haver uma visão (humana) absoluta da verdade. Posiciono-me, portanto, a favor assunção da condição relativa de nossas percepções, e não do relativismo (a ideia de que “tudo é relativo”). Se tudo é relativo, então nada é relativo (?), pois o “tudo” se transforma em “absoluto” no dizer do relativista. No fim, o relativismo acaba sendo outra forma de apologética, tão tacanho e sem sentido quanto esta no tempo em que vivemos. Como disse Elienai Cabral Jr. (@elienaijr), há pouco no Twitter: “Não creio em verdades maleáveis, porque narrativas ou poéticas, e verdades duras, porque racionais ou científicas. Apenas descrições várias”.

Jonathan

terça-feira, 19 de junho de 2012

Não tenho vergonha de Jesus



E por que teria? Talvez porque o simples pronunciar desse nome já cause diferentes reações sociais, especialmente na cidade secularizada, onde o nome dele é tão usado, e às vezes com tanta banalidade, que já ficou desgastado. É como se cada vez que se pronunciasse “Jesus”, uma ideia esquisofrênica não diretamente associada ao Jesus dos evangelhos, mas ao Cristo vulgarizado do dia a dia, nos viesse à mente causando ligeiro desconforto. Será que as pessoas estão pensando que o Jesus sobre o qual falo é esse “Jesus genérico”? O que os diferencia?

Então percebo que meu incômodo é por causa do genérico, não do Cristo vivo. Mas será que tanta gente está tão envergonhada do genérico quanto eu me sinto? Quer dizer, o genérico é mais barato, manipulavel, fácil de comprar e propagar. Já o Jesus de Nazaré foi pregado numa cruz e o pessoal de hoje parece não querer se identificar com uma cruz, a não ser como credo e meio de salvação, e não como um caminho a se seguir. Apesar de tudo, o genérico sempre parece ser mais atraente...

Não tenho vergonha de Jesus... Vergonha tenho de seus detratores e caricaturistas. Tenho especial vergonha de mim mesmo, quando o Cristo que em mim transparece não passa de caricatura daquele que Paulo diz ser o “primogênito de toda criação” (Cl 1.15). Tenho vergonha de quando quando percebo que Jesus é mais objeto de minha fala do que visto em minha vida.

Não tenho vergonha de Jesus, mas tenho vergonha do que fizeram com o cristianismo. Transformaram-no em uma prateleira de ofertas das mais variadas possíveis, onde Jesus não passa apenas mais um artigo de decoração, que todo mundo quer ter em casa porque “é legal e faz bem”... Não me envergonho do Evangelho, como disse Paulo, porque é o poder de Deus alcançando não só o judeus, mas também gregos, mas me envergonho daquele “outro evangelho” e da “outra graça”, que são produto da adoração oferecida em altares de barganha religiosa. 

Não tenho vergonha de Jesus, especialmente porque ele é a expressão viva do amor de Deus pela humanidade, tendo ele mesmo encarnado, assumido forma e condição humanas e abraçado a vida na terra com tudo o que isso implica. Contudo, eu me envergonho do que fizeram com o Cristo ressurreto; tiraram dele a cruz e a coroa de espinhos, rejeitando todo o fracasso, dor e fragilidade por ele assumidos, e lhe deram uma coroa de rosas sem espinhos, celebrando uma vitória sem lutas, um sucesso sem falhas, e uma vida que tem ojeriza ao sofrimento . Esqueceram o sentido do que ele mesmo disse a Nicodemos em João 3: Quem nasce uma vez, morre duas, quem nasce duas, morre uma (releitura usada pela Aliança Bíblica do Brasil há certo tempo). Para não se envergonhar de e nem envergonhar a Jesus é preciso nascer de novo. 

Não tenho vergonha de Jesus, sobretudo, porque Ele escolheu dar o primeiro passo, me amando primeiro, não se envergonhando de mim. Mas como ele mesmo disse, se a gente se envergonhar dele ele também se envergonhará da gente diante do Pai; mas se o confessarmos diante dos homens, Ele também nos confessará perante seu Pai. Me envergonho, porém, da disfarçatez de um Pedro, que garatiu que o seguiria até o fim, mas no raiar do sol do medo, perigo e ultraje, negou-o não apenas uma, mas três vezes. Ruborizo diante da religiosa hipocrisia de quem grita, chora, se derrama com o nome de Jesus nos lábios em momentos de êxtase, mas que, no calor dos acontecimentos que requerem de nós posição, decisão e coragem, preferem o escombro sórdido do silêncio, da omissão e da covardia.  Por isso tenho insistido que precisamos urgentemente de uma teologia do saco roxo, que não se omita nem se envergonhe diante de sua inglória tarefa profética, e cuja preocupação principal não seja a de servir primáriamente a nenhum outro ser, senão a Deus. E suponho que Deus não se agrada de teólogo covarde e meia-boca, dividido entre a busca pela integridade e o desejo por adulação e popularidade.

Enfim (mas não finalmente), não me envergonho de Jesus, porque o Jesus a quem sirvo e por quem vivo não dá a mínima para o negócio da religião, ou para os louros da fama e da boa reputação. Ele não trocaria jamais a graça de ser chamado de “meu filho amado em quem tenho prazer” pela honra de ser profeta ou apóstolo das multidões. Ele não rechaçou as multidões, teve compaixão delas; mas rechaçou o cheiro de glória falsa que emana de sua empolgada aclamação e de seus elogios. Pois, profeta que é profeta, não pode se balizar pela boa, nem pela má fama, tampouco pode viver de amor ao próprio pescoço...  Quem, hoje, tem abraçado e abraçará o fardo desta vocação?

Jonathan

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Eclesiasticando

illuminated

A cada dia que passa tenho mais certeza de que manter a integridade - a coerência entre o que acreditamos, somos e vivemos - está acima de qualquer vantagem que essa vida debaixo do sol possa dar. Realmente não vale a pena ganhar o mundo todo perdendo a própria alma. Melhor é se contentar com um pequeno bocado e dormir em paz do que se fartar (de poder, prestígio, bens, etc.) - passando como trator sobre a honra e a dignidade alheias - e viver num pesadelo.

Portanto, não desperdice sua vida tentando controlar, prever ou prevalecer se tiver que desistir do principal, que é simplesmente viver: intensamente, generosamente e em paz, com gratidão a Deus e a vida, dando valor primário às pessoas as quais e com as quais se ama e se aprende a viver e amadurecer. "Carpe diem", amigos, mas com a consciência de que quase tudo nessa vida "é vaidade e correr atrás do vento"...

Jonathan - em livre parceria com O Pregador

(Imagem: Iluminated, de Vincent Van Gogh)

terça-feira, 5 de junho de 2012

O rosto poético da Teologia da Libertação



Todos os seres humanos nascem com uma vocação em comum: a vocação para a liberdade. Alguns entendem (ou simplesmente vivem, sem entender) que é possível realizar esta vocação em cativeiros. Outros, porém, muito cedo acordam para uma realidade mais ampla, complexa e difícil, de que esta vocação só pode ser concretizada à medida que o ser que a vive se indispõe contra os muitos condicionamentos a que está sujeito, se colocando como antítese de toda forma de cativeiro. Rubem Alves é um desses homens que, em nome de uma visão de liberdade, se rebelou contra os sistemas de clausura, seja do pensamento, da ação, da escolha e da vida humanas. 

Mas, para entender quem é Rubem Alves, talvez seja melhor começar por quem ele foi, mas não considera mais ser. 

Rubem Alves foi um militante protestante contra o que chamou de “protestantismo de reta doutrina” em busca do “princípio protestante”, que aponta para um protestantismo que um dia protestou, mas que se viu perdido em suas expressões teológicas, confessionais e eclesiásticas. Queria de volta um protestantismo do canto, pois dizia que “as pessoas comuns cantaram a Reforma antes de entendê-la”. Afirmava ter se tornado protestante por seu gosto pela diferença. Deixou de ser protestante quando nele não enxergava mais nem o canto, que “dá asas aos pés”, nem o gosto pela diferença. Foi também pastor presbiteriano, e teólogo. Inspirou-se no exemplo de Albert Schweitzer, que conseguia simultaneamente ser teólogo, organista, médico, e ainda ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Em tempos de ditadura, foi denunciado e perseguido pela própria Igreja Presbiteriana do Brasil em que servia, por causa de suas ideias consideradas liberais e subversivas demais. Teve que sair pela porta dos fundos, lotado entre os “hereges”. Para além da teologia, navegou pelos mares da filosofia, da literatura, da educação e da psiquiatria, cruzando com proficiência as fronteiras do saber, da escrita e do ensino. Por isso é respeitado muito mais fora do que dentro do apequenado universo teológico brasileiro.

Atualmente, Rubem Alves se considera um “teólogo livre e com alegria”, educador não-ortodoxo, amante de poesia e literatura. Os golpes duros que recebeu o conduziram a estes campos; respondeu aos inquisidores e seus tribunais com poesia e bom-humor. Há muito não se considera mais teólogo, nem religioso. Já havia dado indícios desse caminho nos idos de 1960-70, quando publicou ensaios como “O vento sopra onde quer... confissões de um protestante obstinado”, onde dizia: “Quem quer que se atreva a liquidar os dissidentes está possuído da ilusão de ser o detentor do monopólio divino e sucumbe à tentação e à crueldade da espada – eclesial ou secular, não importa”.  Um de seus últimos suspiros na esfera acadêmica da teologia se deu através de sua tese de doutorado em Princeton: “Towards a Theology of Liberation Corpus”, publicada primeiramente em inglês com o título “Theology of Human Hope” (1969), e depois em português já com título semelhante ao da obra em análise: “Por uma teologia da libertação” (relançada pela Fonte Editorial em 2012). Na ocasião desta obra, Alves já não era pastor, abraçava com avidez tanto o humanismo como o liberalismo, e dava início a uma linguagem que se popularizou, pela via do realismo, mais em seio católico (embora seja muito consumida por leitores-pesquisadores protestantes): a teologia da libertação.

Ao ler este livro (em seus seis capítulos), é possível, especialmente para um assíduo freqüentador das obras de teólogos da libertação, notar que a filiação de Alves com esta teologia, que amadureceu e cresceu especialmente entre teólogos católicos, é fundamentalmente nomenclatural. Esta pode ser uma tese básica sobre este livro. O propósito que o livro advoga, por sua vez, é o da entrada definitiva da teologia no campo do humano e do político, deixando para trás a linguagem da metafísica e as metanarrativas, buscando adotar uma nova linguagem, que deve ser expressão de sua condição histórica e relativa. 

A título de apreciação crítica mais pontual sobre esta obra, gostaria de falar apenas sobre uma importante contribuição e uma evidente lacuna que nela observo. 

Primeiro, ela contribui, especialmente para os estudiosos do tema da teologia da libertação e da temática da liberdade, a perceber as interpolações que se pode observar entre a linguagem (os termos, conceitos, ideias) utilizada por Alves e aquela que foi apropriada, recriada ou re-significada por teólogos da libertação na América Latina como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Juan Luís Segundo e outros em suas abordagens. A concepção de um sujeito da história, artífice de seu próprio destino, que emerge a partir de uma nova consciência e com uma nova linguagem, de libertação, me parece ser a mais significativa. A concepção de que, no caminho rumo à liberdade, existe sempre a possibilidade e o risco de se perder, mas nem por isso devemos abandoná-lo, uma vez que é da natureza da liberdade o arriscar, é outra ideia importante que este livro aponta, como subsídio a uma compreensão teológica da liberdade.

Segundo, ainda falando sobre esse sujeito da história, postulado por Alves, é evidente a lacuna que este autor não preenche – e que os teólogos da libertação o fazem com mais propriedade – que é a de conferir um rosto a este sujeito. Qual é a sua cor, nacionalidade, classe, contexto, particularidade, causa ou necessidade concreta? Simplesmente não há resposta para nada disso. Assim, embora Rubem Alves, ou seu livro (como uma espécie de canto do cisne), possa ser considerado um referencial teórico ou inspirador da linguagem da libertação, lhe falta o que é fundamental nas teologias da libertação posteriores a ele mesmo: o elemento contextual e da eficácia, sobre a qual ele fala apenas de passagem. A crítica, portanto, é que, no fim das contas, o que Alves parece defender é, paradoxalmente, uma concretude abstrata, um sujeito sem rosto e uma libertação sem causas históricas, fruto talvez de sua veia mais poética que propriamente realista ou comprometida visceralmente com causas históricas. 

Por fim, e a despeito da crítica acima, vale dizer que a leitura desta obra é indispensável ao público acadêmico de teologia especialmente; também aos estudiosos interessados nas raízes histórico-teológicas do movimento da teologia da libertação, e aos estudantes pesquisadores, curiosos ou apaixonados pelo tema da liberdade e as inúmeras facetas que ele pode assumir em uma análise de cunho teológico. 


[Imagem: Extraída do site da Assembléia de Deus Betesda].
Jonathan