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sábado, 9 de maio de 2015

Homossexualidade: saindo de meu armário teológico


Homossexuais. Que seres tão incompreendidos, não é mesmo? E por isso, mal julgados, maltratados, malvistos... Infelizmente, a cada dia comprovo que nossa sociedade, de modo geral, o que inclui os cristãos, não está preparada para lidar com essas pessoas e, portanto, não as trata como pessoas, mas como doentes, depravadas, indignas. E a homossexualidade não é uma doença (por isso o termo “homossexualismo" deve ser evitado), mas uma condição: não almejada nem desejada por ninguém que realmente seja um homossexual, assim penso, afinal, primordialmente, não se trata de uma escolha. E muitos sofrem por serem assim, exatamente pela rejeição e o julgamento que têm e terão de lidar hoje e para o resto de suas vidas. Sim, porque, se consentimos que não é "doença", logo é absurdo buscar uma "cura".

Henri Nouwen, meu grande herói na literatura, era padre e era homossexual, viveu assim e morreu assim – mesmo tendo optado por não se realizar sexualmente, por força de sua vocação sacerdotal – e efetivamente, nada do que penso e sinto sobre ele mudaria se o contrário fosse verdade. Mas ele sofreu as consequências dessa escolha, e como sofreu. Quem não sofreria? Você não sofreria, supondo que seja hétero, se alguém chegasse hoje e dissesse que o universo e a história toda estavam errados? Que a ordem da criação (ou da evolução) da sexualidade humana é uma mentira, e que a verdadeira ordem natural (divinamente aprovada inclusive), é a homossexual? Então você teria de suprimir seu desejo por homens (ou mulheres), e eu, de suprimir o meu por mulheres. Parece absurdo, mas é uma forma bem tosca, mas enérgica, de se imaginar no lugar dessas pessoas. Que coisa mais destrutiva de fé, de corpo e de alma esse negócio chamado de "cura gay"! Quantas pessoas não se alijaram da fé por conta dessa falsa crença – não falsa crença no poder de Deus em si, mas em que são doentes e que só Cristo pode curar. Mas e quando não “cura”, como em muitos casos que conheço de pessoas que oraram por longo tempo, buscaram ajuda, participaram de campanhas, foram a psicólogos, fizeram tratamento médico e até tomaram remédios? E quando supostamente a pessoa se cura, e  passa a ter relações heterossexuais ou então se tornar celibatária, mas o desejo homossexual permanece lá, vivo e caliente? Se a homossexualidade é uma condição, como os muitos estudos existentes e uma observação atenta da realidade me fazem acreditar, então não faz sentido nenhum falar em "cura gay".

Então, você pode estar pensando: "O que nos resta, como cristãos", caso queiramos sair de nossos armários teológicos e doutrinários previamente estabelecidos sobre o assunto? Em primeiro lugar, e o passo mais óbvio, é o de que precisamos amar, sem perguntar nem quem, nem onde, nem por que, nem quando, nem de que jeito. É isso que Jesus me ensina a fazer, como alguém que amava sem condição e abraçava sem perguntar nada. Deixe as perguntas e as tentativas de respostas para depois. Em segundo lugar (pensando aqui que você vive em um ambiente conservador, onde não se discute, apenas se determina qual é a “visão correta”), quando esse momento chegar, procure um pequeno grupo de orientação e reflexão (se ele não existir, crie) onde o assunto possa ser discutido com liberdade de mente e coração, com abertura, sem julgamentos, utilizando as mais diferentes ferramentas de leitura existentes, o que inclui uma leitura e exegese séria dos textos bíblicos que tratam do assunto. Para mim, é relativamente claro que estes textos (como em Levítico, Romanos, 1Coríntios, etc.) literalmente proíbem práticas homossexuais em tais e/ou quais circunstâncias historicamente dadas dentro de contextos culturais específicos. No entanto, me parece temerário defender que estes mesmos textos deem base para: (1) tratar a pessoa homossexual hoje como doente ou depravada – até porque, via de regra, nestas passagens são homens e mulheres heterossexuais deitando-se com outros (e outras) pessoas heterossexuais e, na maioria das vezes, em práticas de culto orgiástico, que, na tradição veterotestamentária, feriam o princípio do culto ao único Deus, Javé ou, como no caso de Sodoma e Gomorra, desobedeciam à lei de hospitalidade a estrangeiros; (2) nem falar em "cura gay", como já enfatizei; ou (3) condenar a condição natural de ser homossexual – mesmo porque provavelmente na antiguidade existiam muitos homossexuais (tanto quanto hoje), mas pouco se sabia sobre a homossexualidade enquanto condição, até porque o conceito de homossexualidade sequer existia. Por que será que Jesus não dirige uma palavra sequer sobre essas pessoas nos evangelhos? E por que Paulo se preocupou, mais que Jesus, com essas práticas orgiásticas de homens com homens, mulheres com mulheres? São perguntas que precisamos fazer, dentre outras, ao abordar o tema biblicamente – e aqui não me estenderei mais a respeito, pois não é o propósito desse breve desabafo. Ademais, precisamos lançar mão do que têm asseverado os psicólogos e cientistas que têm se dedicado a estudar o assunto, uma vez que há tantas pesquisas a respeito, e tão poucas conclusões definitivas sobre isso. Realmente, este assunto ainda dará muito pano para a manga; basta que estejamos interessados em saber mais, saindo de nosso pequeno armário preconceituoso, despótico, autoritário e superficial de julgamento, sobretudo no campo da religião e, mais ainda, do cristianismo.

Minha posição atualmente é a seguinte: quanto à questão teológica, posso dizer que, até agora, não vejo razões na bíblia que claramente me dão base para justificar e embasar a prática homossexual em si – e sinceramente, não é preciso, pelo menos não para mim. A questão não é essa. Não existe a homossexualidade, ou a prática homossexual, fora da pessoa. Então a questão é: biblicamente falando, posso deixar de amar um/a homossexual ou qualquer pessoa que seja? E não um amor cheio de imposições e “senãos”, como muitos oferecem, dizendo coisas do tipo: "ah, amo você, mas não o seu 'pecado" (dá pra separar?); "você é bem-vinda em nossa igreja, pode frequentar, mas não pode batizar e nem se tornar membro" (que oferta irrecusável, não? Jesus deve se orgulhar muito dessa). Não, queridos/as irmãos e irmãs. Amar é abraçar; é dizer "você é bem-vindo/a aqui", é dizer "você é um/a filho/a amado/a do Pai, e por isso é minha irmã, meu irmão”; você, que ama ao Senhor, é parte desse corpo e, portanto, seus dons e talentos são bem-vindos aqui. Como costuma dizer um amigo, “quem chama a Deus de Pai não pode escolher irmãos”. Afinal, o que é mais importante, acolher a pessoa em serviço e amor sincero, ou arbitrar sobre com quem ela dorme ou deixa de dormir? E quem é que pode garantir que os "santificados" heterossexuais da igreja dormem com pessoas a quem amam, por quem prezam, e das quais cuidam, como dizem que fazem? O que torna essa pessoa "autorizada pra entrar aqui", e a outra, homossexual, que tem um/a parceiro/a a quem ama, preza e cuida e é fiel, inapta para o reino de Deus? Aliás, quem é o/a “apto/a” para isso? O reino de Jesus, tal como o evangelho me mostra, existe exatamente para pessoas não aptas, desajustadas, pecadoras; ou, parafraseando Brennan Manning, para a “turma da auréola torta”, e não para a turminha angelical da “auréola apertada” (os fariseus e saduceus que o digam). Sério mesmo que vamos continuar achando que estas pessoas são pecaminosas e ignominiosas, condenáveis por assim dizer, enquanto o presbítero, casado e hetero, ministra a ceia na igreja, mas não deixa de olhar para a calcinha da irmã aparecendo na saia curta, e depois se masturba ou transa com a sua mulher pensando nela? E não venha me dizer que isso não acontece!

Eu, porém, não ouso dizer nada mais além de: "tem misericórdia de mim, Senhor, porque sou falho, não merecedor e não apto". Sendo pecador, ainda que não viva no nem para o, mas eventualmente caia em, pecado, como posso julgar ou condenar meus irmãos e irmãs humanos/as? A mim mesmo me condeno se o fizer, como disse Jesus no Sermão do Monte. Sei que provavelmente muito do que tenho dito aqui você preferia não ouvir assim, não concorda, queria mais “embasamento” ou talvez não pediu para que dissesse. Honestamente, não me importa, isto é um desabafo. E hoje falo assim, não porque acredite que a igreja ou a sociedade estão preparadas para isso, nem abertas para o diálogo e a escuta – na verdade, penso que elas nunca estarão de fato, ou isso está deveras longe de acontecer. Posiciono-me assim, por convicção de fé e humanidade, e pela certeza de que há muita gente sofrendo e até morrendo por essa causa, pelo preconceito, a rejeição, a discriminação e a violência bárbara, física ou verbal, material ou simbólica.

No fundo, é nessas pessoas que penso, e não nos crentes fundamentalistas; são essas pessoas que importam, e não seus detratores e abusadores. E estas pessoas não podem esperar mais para serem ouvidas, amadas, abraçadas; não podem mais ter seus direitos humanos negados; não podem mais orar e esperar pela mudança de visão e coração dos cristãos, dos políticos, da sociedade, enquanto nada muda. Estas pessoas clamam pelo direito de ser gente e de ser quem são. E como cristão, minha missão não é outra senão a de lutar para que sejam, para que possam, para que alcancem esse direito – independente das querelas teológicas improdutivas que gravitam ao meu redor sobre o assunto, às quais não dou mais a mínima. A questão homossexual só deixará de ser uma questão e deixará de ser urgente, quando o amor, a justiça, a igualdade, os direitos e a liberdade se fizerem realidade concreta em nossas vidas. Enquanto isso não acontecer, decidi que não posso e que não vou mais me calar a respeito: decido sair do armário de minhas “médias ponderadas evangélicas”, de minhas posições razoavelmente confortáveis, a fim de clamar pelo direito de gente oprimida, gente pela qual Jesus entregou sua vida.
Jonathan

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Sobre o ato religioso de “passar o bastão”

Auto-coroação - napoleon.org

Recentemente fomos “surpreendidos” por um ato simbólico de um movimento conhecido no cenário gospel brasileiro, em que um grupo de líderes mais experientes foi convidado a fazer uma “transferência de gerações” (não me perguntem o que é isso), em que se passava uma unção ou missão especial para uma geração intermediária, representada por dois irmãos, que por sua vez fizeram a mesma transferência para uma geração mais jovem, numa algazarra típica desses encontros. Então a dirigente virou-se para a plateia dizendo que todos ali faziam parte daquilo, que deveriam sentir-se representados pelos que ocupavam o proscênio. A nova geração, assim, tem a responsabilidade de assumir a tarefa outorgada simbolicamente pela anterior. O interessante é que nenhuma reflexão mais profunda sobre a natureza desta “missão”, para além daquele frenesi, foi endereçada, e imagino que aqueles jovens tenham saído cheios de adrenalina gospel, mas com bem pouca noção do que fazer com aquilo na dispersão da vida cotidiana.

Trago este caso não para repetir críticas clichês e batidas aos envolvidos em si, mas porque isso me faz refletir sobre a natureza dinástica do que chamamos de “ministérios” na igreja contemporânea, à medida que colecionamos cerimonialismos honrosos, como o de jubilar líderes que “passam o bastão” para gerações de líderes vindouros, encarregados de dar continuidade ao que a geração anterior construiu. E fico pensando quando vejo essas coisas se não nos damos conta do quão esquisito (para dizer o mínimo) isso é do ponto de vista do evangelho e do reino de Deus. Jesus não passou cetro nenhum, mas nos chamou a carregar a cruz e, no fim, indagou-nos se seríamos capazes de beber do mesmo cálice que ele beberia, mesmo pedindo ao Pai que o afastasse. Assim, na medida em que o bastão está em evidência, o cálice se afasta.

Tenho a impressão de que estamos transformando um reino feito de amigos que cooperam junto com o rei, por meio de seu Espírito, por sua implantação, em monarquias religiosas privativas em que o que impera é a lógica da sucessão ao trono, típica luta por poder e não é de hoje. O cetro ou o bastão figuram, há milênios, como símbolos de poder e dominação em contextos monárquicos. O problema é que na simples passagem de bastão não se pode transferir integridade, bondade ou competência, apenas um “direito outorgado”. E sabe o que é pior? Não é ver isso nos movimentos apostólicos contemporâneos – isso já se espera deles –, mas é perceber que isso também acontece em movimentos que carregam a bandeira do reino e que, paradoxalmente, neste preciso momento devem estar perplexos em relação a casos como o aludido no começo. Quero dizer, de modo um pouco mais discreto ou tácito, repetem esse ato de passar o bastão com aqueles por eles considerados como representantes dignos da nova geração responsável por tocar o movimento.

Isso tudo é um contrassenso por pelo menos três razões: (1) Gerações mais velhas precisam tomar sobre si o encargo de discipular novas gerações, e não garantir e forjar uma entrega de bastão – como se aqueles devessem continuar do mesmo ponto em que estes saíram de cena; (2) Movimentos, diferentemente do que já conhecemos das instituições, não deveriam, através de alguns de seus participantes ou líderes, poder definir em uma agenda quem são ou não as pessoas que irão liderar ou mesmo dar continuidade ao “trabalho deles” – até porque o trabalho não é só deles, e segundo porque tem muita gente fazendo muita coisa boa fora dos holofotes sem se preocupar com suceder ou não suceder ninguém, mas que fazem o movimento girar; (3) Cada geração precisa ser artífice e sujeito de sua própria história, tendo a chance de decidir o que pode ser mantido e o que deve ser contraposto no trabalho de gerações anteriores, sem ter que prestar contas e nem “pedir a benção” a ninguém para poder respirar novos ares. Afinal, somos todos cooperadores do evangelho, como bem disse Paulo, e se alguém pensa ser algo mais que isso, já perdeu a noção do que é servir no reino. Como bem colocou o companheiro Lyndon de Araújo Santos, está na hora de dizer adeus à era dos avatares e de instaurar um novo processo que seja naturalmente abortivo de qualquer “avatarização” de quem quer que seja. Afinal, fazemos parte de um reino do “lava-pés”, onde existe apenas um rei, que, por sinal, fez-se servo de todos.

Jonathan

[Imagem: “A auto-coroação de Napoleão”, por David].

sexta-feira, 22 de março de 2013

Religião: integridade ou hipocrisia? (Parte 3)

 Afghan refugee children (UNHCR) Pakistan

Desmascarando ilusões com um pouco de utopia e esperança

Até aqui, vimos que uma das principais (e mais bem-sucedidas) tarefas da religião é a de mascarar a realidade: de quem realmente somos, de quem Deus é e do que Ele quer, e da vida “como ela é”. Ou seja, seu papel é negar a complexidade. De que modo, finalmente, o livro do profeta Amós ajuda a desmascarar as ilusões, engodos e falsas promessas da vida religiosa?

Em primeiro lugar, convocando-nos a encarar a dura realidade à nossa frente.

A expressão “Dia do Senhor” significava na religião de Israel o dia do julgamento final das nações, onde os seres humanos encontrariam seu destino final, de danação ou de vida eterna. Havia um sentimento otimista em torno deste dia, pois se acreditava que nele o Senhor, por meio de “catástrofes cósmicas”, derrubaria todos os inimigos de Israel e conferiria a seu povo a vitória final (Cf. Balancin; Storniolo, 1991, p. 32).

Amós, porém, apresenta uma concepção inversa, de que o “Dia do Senhor” é, antes, notícia ruim e, só depois, notícia boa; será “escuridão total”. E, mais do que isso, se aplicará a todos, inclusive (senão primordialmente) ao próprio Israel. Em suma, o “dia do senhor” diz respeito a uma época qualquer “de juízo e condenação para o povo de Deus que não cumpriu a sua parte na aliança” (Zabatiero, 1985, p. 80).

Se havia uma perspectiva de triunfo neste dia, seria apenas para os “remanescentes”, no caso, os oprimidos dentre o povo; nem “toda a família de Jacó” seria destruída (cf. 9.8), somente os opressores e arrogantes, aqueles que dizem “nada de mal vai acontecer no nosso tempo de vida” (cf. 9.10). Isso vem mostrar que Deus não só abomina a religião hipócrita, mas também a religião arrogante dos poderosos, líderes e opressores! Além disso, vem reiterar o fato de que Ele não está interessado em mascarar a realidade, seja ela qual for, mas que rumemos à maturidade na fé a fim de enfrentar toda e qualquer situação.

Em segundo lugar, desmantelando as realizações fúteis da vida presente.

Sobre isto, são significativas algumas passagens que podem ser encontradas no cap. 6:

Ai de vocês que acreditam morar na Rua da Facilidade em Sião, que pensam que o monte Samaria é a própria boa vida. (...) Ai dos que vivem só para hoje, indiferentes à sorte dos outros. Ai dos ‘mauricinhos’ e ‘patricinhas’, que acham que a vida é uma festa preparada só para eles! Ai dos viciados em se sentir bem – a vida sem dor! Os que são obcecados pela boa aparência – a vida sem rugas! Eles não se importam nem um pouquinho com seu país, que está à beira da ruína. Mas vejam o que está chegando de verdade, uma marcha forçada para o exílio (Am 6.1, 3-7 – TAM).

Só essa passagem daria um bom “pano pra manga”. Mas gostaria de me focar nos aspectos que nos conduzem a uma ideologia (porque não dizer, religiosa) presentista. A tradução na linguagem contemporânea de Peterson nos ajuda muito nesta tarefa. Vou pontuar apenas algumas marcas, que, por sinal, ainda são bem atuais:

  1. Associar a “boa vida” com os confortos e facilidades de um lugar (o ideal turístico); pensando na religião, este lugar bem poderia ser algumas igrejas.
  2. Abraçar uma vida fútil de festas, regalias e prazer, não dando a mínima para o que acontece ao seu redor; na religião, seria o equivalente à fruição dos louvores, êxtases e massagens de ego nos templos, desassociadas da missão.
  3. O hedonismo e a negação do sofrimento; no campo da religião corresponde à ideologia do crente feliz, sem crise e sem dor.
  4. A falta de engajamento mais amplo e preocupação com questões que envolvem o coletivo. Para alguns irmãos, o coletivo que mais importa é o da denominação, igreja local ou gueto eclesiástico.

O problema é que todas essas ornamentações serviam como vendas nos olhos de Israel para enxergar o que estava por vir de fato: “uma marcha forçada para o exílio” (6.7). E me pergunto se hoje aquilo que representa, aos olhos de muitos, o triunfo do “povo de Deus”, não pode ser uma marcha lenta e progressiva para a sua ruína?

Em terceiro lugar, demonstrando que a esperança pode superar a fatalidade.

Ao longo da mensagem de Amós, Deus dá vários indícios de que, apesar de estar “fechando as contas com Israel”, não tolerando mais seu pecado, tampouco fingindo que tudo está certo (cf. 8.2), ele ainda era seu Deus, misericordioso e amoroso. Há uma passagem interessante que ilustra isso. No capítulo 7, Amós relata que havia recebido algumas visões, que davam conta de que: (v. 1-2) uma nuvem de gafanhotos estava por vir e nada do que era verde sobraria; (v. 4) um fogo viria e queimaria o mar e a terra prometida. Diante de ambas as visões, o profeta grita a Deus dizendo: “Ó Eterno, meu Senhor. Desculpa, mas o que vai acontecer a Jacó, Ele é tão pequeno”, por duas vezes, e nas duas vezes o texto diz que “o Eterno cedeu”, e que nada aconteceria.

O juízo divino ao pecado de seu povo não é capaz de apagar seu amor e misericórdia, e o profeta parecia saber disso, ao ponto de não esconder sua perplexidade. Somente tal perplexidade diante da realidade pode acender em nós a chama de esperança, que não se confunde com otimismo, tampouco com fatalismo. É significativo, portanto, que o livro de Amós termine com um adicional de esperança de restauração para o povo que havia sido conduzido ao exílio (9.11-15).

A esperança anunciada por Amós é a de uma “utopia possível”, baseada na fidelidade de Deus. Não nega e nem falseia a realidade (como a religião), mas a assume. A esperança que se funda em Deus existe no limiar entre o otimismo e o fatalismo. Dá lugar à denúncia e a condenação do pecado, mas também à misericórdia, que abraça e acolhe o pecador. Abomina a manutenção hipócrita e arrogante dos privilégios da aliança, e afirma uma aliança baseada não no mérito, mas na graça.

Nossa esperança não está nos recursos, nem em nossos planejamentos, na segurança de um lugar ou no conforto de uma condição. Os recursos acabam, os planejamentos falham, e as condições mudam; somos limitados, pecaminosos e precisamos aceitar isto. Mas a esperança em Deus é nossa garantia, pela fé, de que o pecado já foi vencido na cruz do calvário, e de que, apesar de sua presença constante, pela graça, ele não precisa mais ter a última palavra em nossas vidas!

O que significa dar razão desta esperança no mundo religioso e não-religioso em que vivemos hoje?

Jonathan

Bibliografia consultada

BALANCIN, E. M. & STORNIOLO, Ivo. Como ler o livro de Amós. A denúncia da injustiça social. São Paulo: Paulinas, 1991.
BELL, Rob. Love wins. A book about, heaven, hell, and the fate of every person who ever lived. Nova York: HarperOne, 2011.
MOTYER, J. A. A mensagem de Amós. 2ª ed. São Paulo: ABU, 1991.
ZABATIERO, Julio P. T. “Amós e a missão da igreja brasileira na atualidade”. In: Boletim Teológico, FTL-B, São Leopoldo, nº 2, 1985, pp. 47-108.

Traduções da Bíblia utilizadas

Tradução da Bíblia A Mensagem (Eugene Peterson) – TAM.
Tradução da Bíblia na Nova Versão Internacional – NVI.

Photo by Sebastian Rich (www.sebastianrichphotography.com)

quinta-feira, 21 de março de 2013

Religião: integridade ou hipocrisia? (Parte 2)

Livro_de_Eli

A religião e a falta de compromisso com a vida

Essa é uma das obras-primas da religião: podemos passar anos na “casa de Deus” (o templo confundido com “a Igreja”), servindo, trazendo dízimos, ofertando sacrifícios e, ainda assim, nunca ter tido fome e sede de Deus, como diz o Salmista: “Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te busco intensamente; a minha alma tem sede de ti! Todo o meu ser anseia por ti, numa terra seca, exausta e sem água” (Sl 63.1). Tenho a impressão de que talvez a religião produza mais ateístas, na prática, que o próprio ateísmo.

Nesta forma de religião não há compromisso real com a vida, nem no sentido de vivência do que se prega, nem no sentido de amor à vida. Isto, pois o viver (a vida) está associado com o buscar a Deus: “Busquem-me e vivam”, afirma ele, separando isto da religião por eles praticada: “Não façam a tolice de perder seu tempo viajando para Gilgal nem se empenhem em descer até Berseba. Gilgal está aqui hoje, mas amanhã não existirá. E Betel é só teatro, não tem substância” (5.4-5 – TAM).

O amor ao princípio, muitas vezes, nos faz perder de vista a vivência do próprio princípio. A verdade que interessa é somente a verdade agradável, e não a verdade “nua e crua”, como diz Amós (5.10-12).

Há um tempo assisti ao filme O Livro de Eli. Achei interessante a sua crítica, sobretudo aquela dirigida a alguns fundamentalismos religiosos de nosso tempo. Uma das frases marcantes do filme é quando Eli, personagem do protagonista Denzel Washington, afirma: “Todos esses anos que eu o levava e o lia, diariamente, na minha obsessão por mantê-lo a salvo, deixei de viver segundo o que aprendi nele”.

É impressionante como essa frase representa bem o que se tem vivido em termos de história das religiões, dentre elas o cristianismo, até os dias de hoje. Ou seja, quando nos tornamos paladinos cegos de um livro sagrado (no caso do filme, a Bíblia), incorporamos a posição dos fundamentalistas radicais e tendemos a perder de vista a integridade que o próprio livro nos ensina – no caso de Eli, o ensino fundamental esquecido foi: considerar o próximo antes e acima de si mesmo. Isso no conduz ao ponto de partida (não da religião), mas da relação com Deus (que Israel havia perdido de vista): considerar antes e em primeiro lugar o outro (próximo), e só assim estarei mais perto do Outro (Deus).

(Continua…)

Jonathan

quarta-feira, 20 de março de 2013

Religião: integridade ou hipocrisia? (Parte 1)

religion-masksA religião e seus ritos sem substância

Quero iniciar este ensaio – uma provocação bíblica contra um modo de ser próprio no mundo, que estou chamando de “religião da hipocrisia” – com a frase introdutória de Eugene Peterson, em sua tradução da bíblia, A Mensagem, ao livro de Amós:

Mais pessoas são exploradas ou agredidas por causa da religião que por qualquer outro motivo. Sexo, dinheiro e poder cedem lugar à religião como principal motivo de ações maldosas. No momento em que uma pessoa (ou governo, ou religiões, ou organização) se convence de que Deus está ordenando ou aprovando uma causa, vale qualquer coisa. A história de ódio, assassinatos e opressão alimentados pela religião cresce em ritmo acelerado no mundo inteiro. Os profetas bíblicos estão na linha de frente dos que fazem alguma coisa a respeito disso (Peterson, In: “A Mensagem”, p. 1282).

Não tem alguma coisa fora dos eixos quando uma religião, que prega vida, amor (a Deus e ao próximo) e justiça, se degenere, na prática, em violência, exploração e injustiça? Como e por que isso acontece? E o que Deus pensa disso tudo? Amós, no textos que aqui pretendo abordar e em todo o seu livro, nos ajuda a entender...

Primeiro, ele nos mostra, ao londo de seu livro, que nem tudo o que leva o nome de Deus (em nosso caso de “cristão”, “católico”, “protestante” ou “evangélico”) representa e adora, em verdade, a Deus.

Segundo, ele demonstra que certos atos religiosos se traduzem em fazer coisas “para Deus”, mas, no fundo, são cultos de si e para si mesmo. Isto fica evidente no capítulo 4, verso 5 (NVI): “Queimem pão fermentado como oferta de gratidão e proclamem em toda parte suas ofertas voluntárias; anunciem-nas, israelitas, pois é isso que vocês gostam de fazer”. Ora, o culto era uma cerimônia pública. Mas o ato, de “proclamar” e “anunciar” as ofertas, indica autogratificação e não gratidão a Deus. Não é à toa que Jesus, no Sermão do Monte, defende que aquilo que a mão direita faz, a esquerda não precisa saber, referindo-se, porém, ao “dar esmolas” (Mt 6.3).

Em outras palavras, não é preciso “tocar a trombeta” ou fazer um teatro todas as vezes que se realiza um bem, sobretudo, porque é para Deus que se está fazendo. Por isso, Jesus no mesmo sermão, acerca da oração, afirma que não devemos agir como os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, que fazem de suas orações um show particular a fim de serem notados; antes, que se procure um lugar quieto e secreto a fim de não representar nenhum papel diante de Deus (Mt 6.5-6). É uma vida de integridade atuando contra uma religião da hipocrisia.

Terceiro, vemos ainda que a religião nos faz ter Deus nos lábios e na mente, mas não produzem necessariamente “fome de Deus” (3.6). Assim Amós denuncia: “vocês falam do Eterno... como se ele fosse seu melhor amigo. Então vivam de acordo com isso, e talvez isso venha a acontecer” (5.14 – TAM).

(Continua…)

Jonathan

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Para falar da verdade na religião

truth_religion_hope

Religião é dar às pessoas esperança em um mundo dilacerado pela religião – Jon Stewart.

No âmbito plural das religiões contemporâneas, e suas intermináveis variações, ainda nos deparamos com a remanescente questão da “Verdade”, sempre ela. Dizer que a possuímos como quem possui um bem material é insanidade – embora não das mais improváveis. Se alegarmos que ela é atingível em sua plenitude ou dissermos, em contrapartida, que ela não existe, nos enganamos por não reconhecer o caráter contingente de nossos pressupostos – que em parte tem provocado a insanidade da posição anterior. Se defendo, porém, que há a “minha verdade”, em detrimento, embora não necessariamente em conflito, com a “sua verdade”, posso estar abraçando ou um vale-tudo relativista improdutivo e sem sentido, ou ingressando na armadilha de, no fim, ainda que relutante, ter de entrar na discussão de qual verdade é, de fato, “A Verdade Verdadeira” (pleonasmo desesperado). Dada a limitação do saber e da experiência humana, enquanto a metafísica, o orgulho e a pretensiosidade reinarem em nossa “vontade de verdade”, ela será mais um instrumento de separação, violência e exclusão.

O que parece ser, afinal, no domínio da religião, a verdade? Aquilo que escapa até mesmo ao mais sincero dos olhares seja pela via da experiência, do conhecimento ou da própria fé, e que só se oferece por relance, como percepção de canto de olho. Quando se diz “aqui está ela”, é porque ela já passou por ali, deixando pegadas, talvez, mas não se faz presente. Não se detém em palavras, conceitos ou ideias. Não se confunde com os chamados “fatos” do cotidiano e da história, pois um fato – refiro-me a fenômenos humanos e não aos de ordem física ou matemática – é sempre um fato construído, notado e narrado por alguém. Até por isso, sim, contra fatos há argumentos – sei que isso irá incomodar uma meia dúzia que costuma usar esse ditado no sentido oposto. Para estes, retomo aqui o algo que escrevi em outro lugar:

Uma das idéias das quais nos abastecemos – os historiadores mais ainda – é a de que fatos existem lá fora. Um fato pode ser entendido genericamente como um fenômeno humanamente reconhecível, e ordenado a partir do tempo e do espaço. Para muitos, fatos são “dados”, isto é, informações que emanam naturalmente dos ocorridos e que, por uma pura observação, caem em nossos colos prontos para serem divulgados. Não foram mexidos, como podem ser os ovos, nem modificados pelo olhar humano. Aliás, para que um fato seja reconhecido como tal se teria de ignorar o tal olhar. Ademais, nisso tudo ainda se propaga a teoria da “tabula rasa” de David Hume, que pressupõe a pura recepção da mente humana dos dados da experiência, demarcando uma continuidade entre o dado, a recepção e o conhecimento.

Assim, tal teoria se faz disseminar entre nós por meio do senso comum de que “contra fatos, não há argumentos”, já que o fato “fala por si mesmo”, e nosso papel é apenas o de descrevê-lo tal como ele é, sem tirar, nem pôr. Fatos, segundo essa visão, emergem das coisas. Embora muita gente ainda pense assim, há muito tempo existem argumentos levantados por diferentes vozes contra tal percepção de um fato. Como resultado, uma da ideias é a de que um fato não é um dado proveniente do mundo externo, mas uma criação proveniente do olhar humano. Logo, aquilo que recebemos como “fato”, contra qual não se poderia ter argumento, surge precisamente de outros argumentos, ou informações suscitadas por alguém, que não “caíram no colo”, nem foram “dadas” e sim produzidas pelo olhar ou perspectiva e traduzidas em linguagem.

É óbvio que isso se aplica ao campo do conhecimento, que surge precisamente desse olhar para a realidade. Repito, não se trata de ciência exata aqui, mas humana (melhor deixar claro, antes que alguém venha dizer que acredita ser um fato que 2 + 2 é igual a 4). Fatos, assim, são construções, à medida que passam pelo filtro do olhar, que naturalmente resulta em interpretação e, por fim, em um enunciado. Não se pode, por mais que se tente, eliminar todas as interpretações naturais, como defendeu Paul Feyerabend. E toda tentativa de fazê-lo, ainda segundo ele, seria autodestrutiva, ou, como disse C. S. Lewis, é aceitar a “oferta do Bruxo”.

Voltemos agora ao assunto principal. No âmbito do cristianismo, Verdade também não é conceito, é uma pessoa chamada Jesus de Nazaré, Filho de Deus, que declarou ser “o caminho, a verdade e a vida”, mas deixou a pergunta em questão (quando feita por Pilatos, conforme relato de João), “o que é a verdade?”, sem resposta pelo menos no sentido epistemológico-filosófico do termo. Qualquer “resposta” dessa natureza seria como que decretar a morte da própria verdade, pois reduzi-la com um “assim é”, é o mesmo que assassiná-la. Jesus não responde, eu presumo um tanto exageradamente, por não querer cometer suicídio.

Assim, ainda que a verdade (pessoa de Cristo) seja a força motriz da religião cristã – alguns diriam que é o amor, mas, não nos esqueçamos o que disse João, “Deus é amor” –, não deve ser usada como arma, força de argumento ou meio de imposição. O relacionamento, o caminhar com e a vida são mais importantes que a certeza do saber e da doutrina correta. Esse foi o recado para Pilatos, e continua sendo o recado para qualquer um interessado na questão da verdade. E quem “é” é, mostra a que veio, não joga todo o peso na precisão do discurso quanto no exemplo de vida humana. E se a verdade ali germina, não é a pessoa que determina, mas o Espírito da verdade. O que significa, por conseguinte, que não faz sentido dizer que o cristianismo é a única religião verdadeira – pois todas são “verdadeiras” no sentido de que buscam a verdade; menos ainda, dito de outro modo, que é o único a possuir tal verdade – porque nenhuma religião a “possui”. Estar em posse da verdade significa poder manipulá-la, transformando-a em algo diferente de si mesma. Não. Para que seja verdade, é preciso ser livre de qualquer dominação, inacessível como “coisa em si” à linguagem e ao conhecimento. Por isso é que, no caso de Jesus, ele disse “eu sou”, e isso basta e já esclarece muita coisa, embora muita gente ainda não entenda, especialmente quando continua a confundir verdade com doutrina ou sua experiência (religiosa) de Jesus, de Deus ou de qualquer outra divindade que componha seu panteão pessoal.

Compreender isso, mesmo que em um nível mais basilar possível, é fundamental tanto para o diálogo inter-religioso, como para o testemunho de fé num mundo pluralista. Se ainda quisermos, por compulsão, falar em “verdadeira religião” é preciso recordar, ainda que de passagem, que na Bíblia não se assevera em lugar algum que o cristianismo é essa religião – por isso digo, num certo tom paradoxal, que ser seguidor do Cristo não me leva (não mais) a forçosamente ter que defender o cristianismo, versão histórica, institucionalizada e departamentalizada desse seguimento, como “a religião verdadeira”. Cito apenas dois exemplos das Escrituras Sagradas (na tradução “A Mensagem”, de Eugene Peterson), que tratam da religião num sentido mais amplo, e paro por aqui, por enquanto:

O primeiro vem do profeta Amós, num manifesto de repúdio divino contra a escolha de tantos em fazer do teatro e da hipocrisia sua morada permanente em termos de religião, esquecendo o fundamental, aquilo pelo que o Senhor anela no ser humano:

Não suporto os encontros religiosos de vocês. Estou cheio dos seus congressos e convenções. Não me interessam seus projetos religiosos, seus lemas e alvos presunçosos. Estou enojado das suas estratégias para levantar fundos, das suas táticas de relações públicas e criação da própria imagem. Não suporto mais sua barulhenta música de culto ao ego. Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim? Alguém aí sabe o que eu quero? Eu quero justiça – um mar de justiça. Eu quero integridade – rios de integridade. É isso que eu quero. Isso é tudo que eu quero. (Am 5.21-24 – TAM)

O segundo vem do apóstolo Tiago, que trata de algo fundamental em sua carta – e, se lembramos bem do finalzinho do Sermão do Monte, também crucial para Jesus – que é a coerência entre o falar e o viver, mostrando que religião é menos o que se professa e se ritualiza e mais o que e como se faz, com a vida:

Não se enganem, fingindo-se de ouvintes, quando, na verdade, deixam a Palavra entrar por um ouvido e sair pelo outro. Coerência é tudo! Quem apenas ouve e nada faz é como quem se olha no espelho, e, no minuto seguinte, já nem se lembra da própria aparência. Mas quem dá atenção à mensagem de Deus e a vive na pratica – a verdadeira liberdade – e nela se firma, sem ser mero ouvinte – essa pessoa vai longe e será abençoada por Deus. Qualquer um que se considere “religioso” e fala demais está se enganando. Esse tipo de religião é mera conversa fiada. Religião de verdade, que agrada a Deus, o Pai, é esta: cuidem dos necessitados e desamparados que sofrem e não entrem no esquema de corrupção do mundo sem Deus. (Tg 1.22-27 – TAM)

Jonathan

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Sobre a religião e seus derivados (II)

hipocrisia-religião

Quando profetas como Amós, por exemplo, criticam os cultos, encontros religiosos, ritos e formas de se “achegar a Deus”, o que afinal ele está criticando? Ele está denunciando a forma de religião predominante em Israel, sem entrar no mérito de dizer “toda religião”, ou “a religião”. Talvez uma coisa que esteja faltando às nossas genéricas classificações é “dar nome aos bois”. E isto Amós faz. Observem o seguinte trecho (na tradução “A Mensagem”, de Eugene Peterson):

Não suporto os encontros religiosos de vocês. Estou cheio dos seus congressos e convenções. Não me interessam seus projetos religiosos, seus lemas e alvos presunçosos. Estou enojado das suas estratégias para levantar fundos, das suas táticas de relações públicas e criação da própria imagem. Não suporto mais sua barulhenta música de culto ao ego. Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim? Alguém aí sabe o que eu quero? Eu quero justiça – um mar de justiça. Eu quero integridade – rios de integridade. É isso que eu quero. Isso é tudo que eu quero (Am 5.21-24 – Grifos meus).

A religião criticada por Amós é covarde e superficial, porque marginaliza o que realmente importa e põe no centro o trivial e menos relevante. Confunde retidão com justiça própria e santidade com abstinência; faz dos sacrifícios e rituais o último bastião da espiritualidade, dissociando-a completamente da vida, da misericórdia e da sede por justiça. Afirma uma sede incontrolável por Deus e seus mandamentos, mas é incapaz de reconhecê-lo no próximo, no diferente, no samaritano à beira do caminho.

Daí, muitos desses encontros, congressos, convenções e projetos religiosos aos quais se refere o profeta, terem se tornado, para Deus, um negócio insuportável e indigno de atenção. Mais “culto ao ego” que outra coisa. Daí a pergunta: “Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim?”. E o que é viver e cantar “para Deus”?

É anelar por Deus com todo o nosso ser; é deixar ser movido e tocado pelas coisas que mobilizam o coração de Deus (o que sabemos por meio da Palavra); é desejar ardentemente que sua vontade seja feita tanto aqui na terra, como no céu; é lutar para que a justiça corra como rio que não seca; é buscar viver em integridade e afastar ao máximo do nosso caminho a hipocrisia. Mas, como? E seria isto outra forma de religião? Não sei, talvez, quem sabe. Linguagem, tudo passa por ela.

Não é novidade para ninguém que muitos sistemas religiosos se alimentam da hipocrisia e não subsistem sem ela. Muitas igrejas têm sido – até que provem a si mesmas e ao mundo o contrário – ao invés de centros de misericórdia e compaixão e comunidades de reino, covis de hipocrisia, onde o livre pensar é reprimido (sobretudo em assuntos como sexualidade, por exemplo), e o discordar (mais ainda da liderança e da orientação doutrinária) é tratado como pecado. Exceções à regra (os remanescentes) existem, é claro, mas com a sina de ter que “nadar contra a maré”, caso não (ou até que) se deixem corromper pelo “se não pode vencê-los, junte-se a eles”.

A hipocrisia vai, dessa forma, recebendo outros nomes, e vai sendo ornamentada com vestes outras, mais sofisticadas quem sabe (embora não menos vorazes) e se torna peça indispensável ao bom funcionamento da engrenagem, mascarada pelo discurso de que assim estaremos “no centro da vontade de Deus”. Como corolário disso e de outras tendências já bastante enraizadas, como a privatização da espiritualidade e a religião de consumo, as pessoas vão à igreja apenas para nutrir o lado “lúdico” da fé, que congrega e agrega a massa dos que querem distância do conflito e que relega aos ditos apóstatas, hereges e perdidos o lado trágico (e sombrio) da existência.

A hipocrisia tenta eliminar o sofrimento a todo custo e promover uma espécie de narcótico gospel como sustentáculo para uma fé “que funciona”. Uma fé que desconhece a compaixão, porque só age para aliviar a dor; que tem desconfiança em relação ao mistério, ao desconhecido e às incertezas; que pensa que testemunhar é igual a fazer propaganda de sua fé, e se distancia da prática da justiça por estar tão ofuscada com as celebrações e homenagens, públicas e privadas, ao “seu Deus” – o “meu Deus isso”, o “meu Deus aquilo”.

Essa fé é substrato da hipocrisia. Irracional e inconscientemente, muitas vezes, ela canta: “Hipocrisia, eu quero (eu preciso de) uma pra viver!”. Nos lugares onde ela é vivida, as palavras de Jesus – “Acautelai-vos do fermento dos fariseus!” – ecoam como gritos em uma terra de surdos.

Porque acautelar-se, talvez, implique em passar pela via da admissão honesta de que, no fundo, todos (digo, os que nos servimos do sistema religiosos, ou os que se encontram, como eu, em processo de libertação de suas entranhas) somos um pouco como os fariseus ou hipócritas – o que seria um total absurdo e falta de espiritualidade, para muitos. Se toda mulher é meio Leila Diniz, como diz a canção “Todas as mulheres” de Rita Lee, então (digo isso contra meu melhor senso) todo crente é meio hipócrita e, por natureza, religioso (no sentido que Amós abomina), até que prove o contrário lutando contra tal orientação.

Jonathan

(Imagem extraída de: http://uma-verdade-inconveniente.tumblr.com/)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Sobre a religião e seus derivados (I)

Religião que seguem
No atual momento, vemos tomar corpo um movimento de pessoas que se dizem apaixonadas por Jesus, mas que não gostam mais da igreja, detestam as instituições em geral, e desenvolveram uma ojeriza pelo que chamam de “religião” – a meu ver, a religião institucionalizada. Estes estariam dentro dos 7,9% da pesquisa acima exposta. O mote de sua trajetória está no slogan: “Mais Jesus e menos religião”. O problema é que, nesse meio termo, apareceram outros apresentando outra visão de religião, mais positiva talvez, alegando que a religião faz parte da história humana desde sempre e tem oferecido contribuições importantes a ela. Em outras palavras, por mais que critiquemos a religião, não vivemos sem ela. Nesta discussão pouco criteriosa, termos como religião, religiosidade e espiritualidade acabam sendo utilizados de modo intercambiável, como se um fosse ou pudesse ser sinônimo para outro. E a confusão se vê armada. Podemos desatar este nó?

Em primeiro lugar, a discussão sobre as terminologias (religião, religiosidade, espiritualidade, etc.) é in-termi-nável. Todas são palavras polissêmicas, se considerarmos o diálogo interdisciplinar, ou mesmo o senso comum. Em segundo lugar, esse movimento (por um cristianismo não-religioso) não é novo. Já vimos isso no século XX, através de Karl Barth, e mais fortemente na teologia de Dietrich Bonhoeffer, na teologia secular (Cox) e da morte de Deus (Robinson e Cia), dentre outros.

A diferença para o que tenho visto atualmente é que esses últimos me parecem ter sido mais intencionais, proposicionais e consistentes (quer se concorde com eles ou não) no sentido de formular respostas relevantes aos problemas e movimentos de seu tempo, e não um flash mob de descontentes, como parece se apresentar grande parte do movimento atual. É preciso conferir mais coerência e conteúdo aos nossos descontentamentos.

No que diz respeito às terminologias, Tillich, por exemplo, falando sobre a clássica diferenciação entre religião e revelação em sua Teologia Sistemática, afirma que toda revelação pressupõe um receptor. E, considerando não haver receptor “puro” (isto é, livre da influência de sua cultura e da ideologia), e consequentemente nenhuma forma de fé, interpretação ou verdade universalmente válida, a recepção em si já é uma religião. Assim, o que Tillich chama de “religião” seria o processo de recepção e, por conseguinte, de significação da revelação. Nesta acepção, não há revelação sem religião e todos os que vivem conforme a revelação de Deus poderiam ser considerados religiosos.

Então, para começo de conversa, precisamos tentar entender qual religião esse movimento atual quer de menos, e qual Jesus ele quer de mais, para poder avançar no debate, não acham? Arriscar-me-ei, então, no próximo post a expor algumas impressões mais particulares sobre o tema. 

Jonathan

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Hipocrisia, eu quero uma pra viver!

Hipocrisia: a arte de viver convincentemente uma mentira, sabendo que é uma mentira, mas fazendo os outros crerem que é uma verdade para você/eu, impostor, e para eles; só que enquanto a mentira se aplica frouxamente a você, os outros a carregam como um fardo pesado e, caso não despertem do sono escravizador, logo se acostumarão à mentira e perceberão que ela pode ser uma mentira-verdade, à medida que houver gente (e sempre haverá) que nela acredite e dela faça sua razão de viver.

A hipocrisia existe desde que o ser humano existe; se a associarmos, por exemplo, com seu irmão gêmeo, o cinismo, está aí desde quando Adão resolveu dizer pra Deus que a culpa de ter comido do fruto foi “da mulher que me deste”, ou quando a mulher replicou dizendo que culpada foi “a serpente que me seduziu”. A hipocrisia, assim, é um subterfúgio para lá de eficaz, pois o problema sempre é do outro, nunca é meu. “Eu estava no caminho certo e dele nunca saí, até que apareceu você”; ou “Estava tão bem lá em tal lugar, até que fulano me tirou de lá e agora está me usando e minha vida está arruinada”, são frases comuns, para um problema comum e mal tratado. Sobrinha do orgulho, a hipocrisia precisa do outro para existir, pois usa a comparação como defesa: “Não sou tão santo quanto é o João Beato, mas quase um anjo em relação à Maria da Perdição”.

A hipocrisia é covarde e superficial, porque marginaliza o que realmente importa e põe no centro o trivial e menos relevante. Confunde retidão com justiça própria e santidade com abstinência; faz dos sacrifícios e rituais o último bastião da espiritualidade, dissociando-a completamente da vida, da misericórdia e da sede por justiça. Afirma uma sede incontrolável por Deus e seus mandamentos, mas é incapaz de reconhecê-lo no próximo, no diferente, no samaritano à beira do caminho...

Não é novidade para ninguém que sistemas religiosos se alimentam da hipocrisia e não subsistem sem ela. Muitas igrejas têm sido – até que provem a si mesmas e ao mundo o contrário – ao invés de centros de misericórdia e compaixão e comunidades de reino, covis de hipocrisia, onde o livre pensar é reprimido (sobretudo em assuntos como sexualidade, por exemplo), e o discordar (mais ainda da liderança e da orientação doutrinária) é tratado como pecado. Exceções à regra (os remanescentes) existem, é claro, mas com a sina de ter que “nadar contra a maré”, caso não (ou até que) se deixem corromper pelo “se não pode vencê-los, junte-se a eles”.

A hipocrisia vai, dessa forma, recebendo outros nomes, e vai sendo ornamentada com vestes outras, mais sofisticadas quem sabe (embora não menos vorazes) e se torna peça indispensável ao bom funcionamento da engrenagem, mascarada pelo discurso de que assim estaremos “no centro da vontade de Deus”. Como corolário disso e de outras tendências já bastante enraizadas, como a privatização da espiritualidade e a religião de consumo, as pessoas vão à igreja apenas para nutrir o lado “lúdico” da fé, que congrega e agrega a massa dos que querem distância do conflito e que relega aos ditos apóstatas, hereges e perdidos o lado trágico (e sombrio) da existência.

A hipocrisia tenta eliminar o sofrimento a todo custo e promover uma espécie de narcótico gospel como sustentáculo para uma fé “que funciona”. Uma fé que desconhece a compaixão, porque só age para aliviar a dor; que tem desconfiança em relação ao mistério, ao desconhecido e às incertezas; que pensa que testemunhar é igual a fazer propaganda de sua fé, e se distancia da prática da justiça por estar tão ofuscada com as celebrações e homenagens, públicas e privadas, ao “seu Deus” – o “meu Deus isso”, o “meu Deus aquilo”. Essa fé é substrato da hipocrisia. Irracional e inconscientemente, muitas vezes, ela canta: “Hipocrisia, eu quero (eu preciso de) uma pra viver!”. Nos lugares onde ela é vivida, as palavras de Jesus – “Acautelai-vos do fermento dos fariseus!” – ecoam como gritos em uma terra de surdos. Porque acautelar-se, talvez, implique em passar pela via da admissão honesta de que, no fundo, todos (digo, os que nos servimos do sistema religiosos, ou os que se encontram, como eu, em processo de libertação de suas entranhas para reencontrar Jesus de um modo renovado) somos um pouco como os fariseus ou hipócritas – o que seria um total absurdo e falta de espiritualidade, para muitos. Se toda mulher é meio Leila Diniz, como diz a canção “Todas as mulheres” de Rita Lee, então (digo isso contra meu melhor senso) todo crente é meio hipócrita, até que prove o contrário lutando contra tal orientação.

E o que Deus pensa disso tudo? Nada temos acerca disso senão indícios ou ecos (pela Palavra) de um constante manifesto de repúdio divino contra a escolha de tantos em fazer do farisaísmo e da hipocrisia sua morada permanente. Nas palavras do profeta Amós, com as quais quero encerrar, essa repulsa fica mais do que escancarada.
Não suporto os encontros religiosos de vocês. Estou cheio dos seus congressos e convenções. Não me interessam seus projetos religiosos, seus lemas e alvos presunçosos. Estou enojado das suas estratégias para levantar fundos, das suas táticas de relações públicas e criação da própria imagem. Não suporto mais sua barulhenta música de culto ao ego. Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim? Alguém aí sabe o que eu quero? Eu quero justiça – um mar de justiça. Eu quero integridade – rios de integridade. É isso que eu quero. Isso é tudo que eu quero. (Amós 5.21-24 – Da Bíblia “A Mensagem”, de Eugene Peterson)
A questão é: quem será o primeiro a ter coragem de vestir a carapuça? Quem ousará romper com as correntes (frouxas ou apertadas) da hipocrisia? Quem será capaz de avançar uma milha mais rumo a uma entrada (definitiva?) em um cristianismo não-religioso? Sei lá... Eu decidi tentar.
Jonathan

terça-feira, 28 de junho de 2011

Monumento à Bíblia "Sim", Praça Islâmica "Não"!

Dias atrás, recebi uma carta do Conselho de Pastores de minha cidade, chamando a uma mobilização contra um projeto de Lei proposto por um vereador desejando erigir um monumento islâmico em uma praça da cidade, que passaria a se chamar “praça islâmica”. O argumento do conselho para ser contrário a tal projeto tem uma dupla face. Primeiro, é porque um vereador (homem público) não pode querer privilegiar no espaço público e no exercício de sua função uma religião em detrimento de outra – engraçado, os políticos evangélicos da cidade fazem isso o tempo todo e não vejo o mesmo conselho se manifestando contrariamente. Segundo, porque os islâmicos em seus países de origem estão longe de tratar os cristãos com a mesma condescendência, então não há motivos para facilitarmos as coisas para eles (ou seja, quase que uma ideologia do “olho por olho e dente por dente”!).
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Nesse caso, a gente vê uma defesa de uma laicidade esquizofrênica (sem confundi-la aqui com “neutralidade”). Quando convém, somos laicos e reivindicamos a condição de laicidade do público. Quando nossa liberdade é supostamente ameaçada, queremos uma laicidade mais frouxa, e protestamos pelo direito de expressar nossa crença. O engraçado é que nessa mesma cidade existe um “Monumento à Bíblia”, que não é questionado. Assim como o crucifixo e a santa na parede da escola pública não são questionados. Então, parece que Gianni Vattimo foi assertivo em sua tese sobre o ocidente liberal, quando diz que “o espaço leigo do liberalismo moderno é mais religioso do que o próprio liberalismo e o pensamento cristão estão dispostos a reconhecer”.
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Se quisermos defender com radicalidade que se arranque da comunidade islâmica (tão ínfima, pra não dizer marginal entre nós) o direito de ter publicamente seus símbolos religiosos, assim como os cristãos têm tido, mesmo numa sociedade que se diz liberal, democrática e secular, não poderemos estranhar quando o mesmo princípio se voltar contra a comunidade cristã e nossos símbolos passarem também a ser extintos do espaço público (o que não seria de todo ruim, apenas a aplicação de um princípio que se afirma na teoria na prática e para todos). Precisamos, em contrapartida, corroborando ainda aqui com Vattimo, “favorecer uma presença conjunta, livre e intensa de múltiplos universos religiosos”, reforçando a vocação laica da cultura ocidental e do cristianismo.
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Quando a luta pela verdade se desassocia da luta pela liberdade, e as duas deixam de ser parceiras, geradas e geradoras uma da outra, um possível resultado é o que a história já tem nos mostrado há milhares de anos: violência, intolerância, guerras, inquisições, fogueiras santas. A vivência radical do amor de Deus no mundo deve ser um grande “basta”! Bastam guerras santas, cruzadas ou inquisições (com ou sem fogueiras). O recado de Gilberto Gil, na música “Guerra Santa”, ainda é válido neste contexto: “O bom barraqueiro que quer vender seu peixe em paz deixa o outro vender limões”.
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Não podemos mais sacrificar o relacionamento (e matar a caridade) no altar da verdade. Talvez tenha chegado a hora de conjugar o “carregar a nossa cruz” no contexto urbano pós-moderno com a coragem de fazer morrer (junto com nossos egos “espirituais” inflados) nossas paixões, crenças e verdades dogmáticas em favor dos relacionamentos de vida. Como ouvimos aqui, a vida está acima da lei. E o amor é a lei que está acima da própria Lei, parafraseando Peter Rollins.
Jonathan