domingo, 26 de setembro de 2010

Oração e integridade (III)

Para finalizar esta série, gostaria de compartilhar alguns trechos de pensamentos de autores a quem admiro, não por me ensinarem 10 passos sobre como orar, ou a fórmula da oração bem-sucedida; longe de mim coisas assim, e dos autores aos quais me referirei. Admiro-os, pois, ao falar sobre a oração, não escondem a dificuldade implícita nessa atividade, embora a considerem preciosa e importante; nem tampouco seguem a linha do determinismo crente, de que orar pode mudar céus e terra ou move o coração de Deus, desde que oremos “do jeito certo”.

Definitivamente, não! Reconhecem que a oração muda a gente em relação a Deus e não Deus em relação à gente. Tampouco ignoram o fato de que, pessoas de oração são, antes de tudo, gente de carne e osso, humanos, demasiadamente humanos. E isso me encanta, porque posso me distanciar cada vez mais do lugar religioso do cinismo, hipocrisia e da falsa piedade, e me aproximar mais de um lugar onde posso me considerar, quem sabe, um homem de oração, sem deixar de ser homem e nem almejar que minha oração “mova montanhas”, ocupando o lugar de Deus. Isso é o que ainda me mantém fascinado, ou seja, a chance de poder constatar que a oração, em si, não tem poder algum; quem o tem é Deus. E Ele parece não estar disposto a dividir esse posto com ninguém.

O primeiro autor a ser referendado não fala de oração (pelo menos não aqui). Mas fala sobre ser humano ou sobre a condição humana, coisa que nunca deixamos de ser, principalmente quando oramos. As palavras de Paulo Freire, admirável ser humano e brilhante educador, me inspiram a gostar desse paradoxo que é ser humano:

Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável, que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu “destino” não é um dado, (sic) mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade (Pedagogia da autonomia, p. 58-59).

Oração é, na vida de fé, o ato em que entramos diante de Deus em postura consciente e deliberada de falar e ouvir – relacionamento do Criador com a sua criação e dela com Ele. A qualquer tempo que nos concentramos, focamos os pensamentos e prestamos atenção, nós oramos. Orar significa ter consciência, exercitar a atenção, estimular e desenvolver a intensidade pessoal diante de Deus. (...) A oração é linguagem ousada para se dirigir a Deus, não para explicá-lo nem para falar sobre Ele. É resposta. O evangelho tem a missão de nos fazer parar de falar sobre Deus e nos levar a falar com Ele. (...) O verdadeiro conhecimento de Deus jamais é conhecimento sobre Ele; é sempre relacionamento com Ele (Trovão inverso, p. 128, 129).

A segunda referência foi de Eugene Peterson, para quem oração significa prestar atenção em Deus e manter o foco de nossa vida Nele. A terceira e última citação vem de Henri Nouwen, exemplo de integridade, como foi Jeremias; o que ele escrevia, ele vivia; e o que ele vivia, era expresso com enorme e inexorável franqueza em seus escritos. Com sua sensibilidade e brilhantismo ele deixou um legado espiritual incomparável para nós, cristãos. Em todos os seus livros praticamente se fala sobre oração. Mas em no Diário de seu último ano sabático, encontrei o que, para mim, são as palavras mais humanas e livres até então por ele escritas sobre o assunto.

Primeiro, ele começa falando sobre seu entendimento do que vem a ser a oração:

A oração é a ponte entre a minha vida inconsciente e consciente. Ela conecta meu pensamento com meu coração, minha vontade com minhas paixões, meu cérebro com meu estômago. A oração é a única via para deixar o Espírito vivificante de Deus penetrar todos os recantos do meu ser. É o instrumento divino de minha completude, unidade e paz interior (Diário, p. 20).
Em seguida, ele compara essa definição com sua vida de oração, fazendo uma confissão honesta acerca de si mesmo, um idoso de quase 64 anos de idade, que passou a vida falando sobre espiritualidade e oração, tendo um alto grau de aceitação e sucesso por isso, mas que, no fim da vida, se vê diante da encruzilhada tenebrosa de ter que admitir certos paradoxos em sua espiritualidade:

Se é assim, o que posso dizer sobre minha vida de orações? Gosto de orar? É meu desejo orar? Reservo tempo parar orar? Francamente, a resposta é “não” para todas as três questões. Depois de 63 anos de vida e 38 de sacerdócio, minha oração parece tão morta quanto uma pedra. (...) A verdade é que não sinto nada de singular quando oro, se é que sinto alguma coisa. Não há emoções intensas, sensações físicas, ou visões mentais. Nenhum de meus cinco sentidos é tocado – nenhum cheiro especial, nenhum som especial, nenhuma imagem especial, tampouco algum movimento especial. Se por um bom tempo o Espírito agiu tão claramente em minha carne, agora não sinto nada. Vivi na expectativa de que a oração se tornasse mais fácil à medida que eu envelhecesse e me aproximasse da morte. Mas parece estar acontecendo o contrário. As palavras escuridão e aridez parecem ser as melhores para descrever minha oração hoje (Diário, p. 20, 21).

Por fim, Nouwen nos brinda com a tentativa de avaliar sua própria confissão anterior, admitindo a grande dose de realismo nu e cru que nela há, sem, no entanto, perder de vista as possibilidades escondidas mesmo em seus mais áridos desertos espirituais, tampouco a perspectiva bíblica de que, no fim das contas, o Espírito “nos ajuda em nossa fraqueza, pois não sabemos como orar, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis” (Rm 8.26, NVI):
Será que a escuridão e aridez de minha oração são sinais da ausência de Deus, ou são sinais de uma presença mais profunda e vasta que meus sentidos podem abarcar? A morte de minha oração é o fim de minha intimidade com Deus ou o início de uma nova comunhão, para além das palavras, emoções e sensações corporais? Na meia hora em que me sento para estar na presença de Deus e orar, não acontece coisa sobre a qual poderia comentar com meus amigos. Mas talvez esse tempo seja uma maneira de morrer com Jesus. O ano à minha frente deve ser um ano de oração, embora eu diga que minha oração está tão morta quanto uma pedra. A minha certamente está, mas não a oração do Espírito em mim (Diário, p. 21).

Jonathan

Um comentário:

Unknown disse...

Muito filosófico e espiritualmente grandioso!