segunda-feira, 22 de março de 2010

No jardim da filosofia (II): Martelo e sua crítica

Martelo, por sua vez, lança seus espinhos na direção da verdade, especialmente atacando o centro propulsor da subsistência da aura de legitimidade do jardim, a chamada Física do andar Superior (metafísica). Essa física levara no bico todas as plantas do jardim, fazendo-as crer na necessidade constante da durabilidade (se é durável, é verdadeiro), e na busca por aquilo que tem raízes, o que é permanente. Conhecendo as raízes, diriam os caules da Física do andar superior, poderia se conhecer a árvore. Assim, todo o solo (história) desse jardim foi marcado pela busca daquilo que é (enraizado) em detrimento daquilo que muda (a própria vida).

Eis um dos espinhos lançados por martelo contra a planta do esclarecimento: o espinho da mudança. Toda a argumentação da planta do esclarecimento girava em torno de um ideal de flor (de sujeito), que seria a flor do esclarecimento. Essa flor, pelo uso correto de sua seiva, e pelo bom manuseamento da devida organização, poderia chegar até a árvore do conhecimento, que lhe entrega nas mãos as chaves do jardim e, por sua vez, o conhecimento da verdade.

Martelo, em resposta, desbanca todo esse papo de flor ideal e verdade como sendo uma grande terrível mentira. A diferença, para essa rosa, entre a beleza e a organização era de que a primeira mente, sem esconder que mente; já a segunda, também mente, mas chama a sua mentira de verdade.

Dessa maneira, Martelo irá atacar a noção de verdade como sendo o mais mentiroso artifício criado pela Física do andar superior, que, num primeiro momento, havia sido aniquilada pela denúncia ao desejo de levar as plantas até o Deus Girassol, mas que, num segundo momento, declarara sua independência deste, por meio do domínio da seiva poderosa, que por sua vez fora transformada também num deus. A grande martelada nessa física, bem como nas pretensões da planta do esclarecimento, foi o lançamento do mais afiado espinho: a declaração de morte ao Deus Girassol, que na verdade era uma declaração de morte aos fundamentos do solo, como sendo enganosos.

Assim, a verdade pretendida, nada mais era do que um monte de folhas e galhos que caem da árvore do conhecimento, cada uma fragmentária e contendo apenas uma parte da realidade expressa por essa árvore. E a noção de flor – essa independente e verdadeira – seria apenas uma ficção criada pela planta do esclarecimento para reforçar sua pretensão ao absoluto.

O solo do jardim entra em erosão... Nada foi igual após o brotar da rosa martelo e seus muitos espinhos. A própria idéia de jardim seria transformada com as posteriores mudanças no solo. Nada é cíclico, nada se repete, tudo se transforma - já vi essa idéia em algum lugar! O solo é mudança, e o jardim, metamorfose ambulante.

Jonathan

quarta-feira, 17 de março de 2010

No jardim da filosofia (I): A planta do esclarecimento

Quero pensar, alegoricamente, na Filosofia como um grande jardim. Um jardim complexo, é verdade, pouca gente se arrisca a passar por ele; muitos o negam, não conseguindo encontrar sentido e função para a existência desse jardim. E estes ainda acusam aqueles que ingressam nesse jardim como sendo loucos, excêntricos, ou quem sabe gente que fala numa linguagem que a maioria das pessoas não entenderia, e até por isso, não darão a mínima...
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Pensemos que esse jardim (filosofia) tem um solo (aqui entendido como a história da filosofia), um solo fértil de onde brotam todas as flores e plantas (os filósofos e suas correntes), todas elas derivadas (ou derivadoras, diriam alguns) de uma grande árvore, a “árvore do conhecimento”. Afinal de contas, o conhecimento e suas infinitas conexões com a vida e com o “real”, em termos de possibilidade ou de impossibilidade, são áreas de interesse filosófico. Imaginem que neste solo surgem diferentes espécies de plantas ou de pequenas árvores, que produzirão frutos na medida de sua posição no solo, e sua perspectiva ou posição em relação à árvore.
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Num certo lugar desse jardim, em uma dada posição no solo, surge a planta do esclarecimento. Essa planta queria representar uma espécie de “virada na flora do jardim”. Ela nasce pautada na argumentação de que as plantas até então existentes no jardim viveram debaixo de tutelas de plantas parasitas da árvore do conhecimento, ligadas a uma força estranha chamada de Física do andar superior (a metafísica, para os filósofos). E que as grandes culpadas disso eram elas mesmas, pelo mau-uso da “seiva” (representação da razão) que a todas é peculiar. O que importa para essa planta não é tanto o quê se deve saber, mas como podemos saber. E para estabelecer os modelos do “como”, ela, primeiro, apresenta os “limites desse saber”.
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A produção de frutos (conhecimentos por derivação), portanto, está vinculada a esses limites. O reconhecimento deles permite que se chegue ao verdadeiro esclarecimento. O verdadeiro conhecimento que brota da árvore-mor é conhecimento concreto, de coisas concretas (fenômenos), e não conhecimentos que pertencem ao mundo imaginário das flores do céu. Pautados nesse mundo imaginário das flores do céu, é que o jardim se viu contaminado por um falso conhecimento, gerador de subordinações (tutelas) improdutivas, que serviram, até então, como impedimento ao esclarecimento.
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Porém, como eu disse, há outras “flores” no campo, plantas dissonantes, raízes que não se desprenderam do solo, mas que clamam por vida e sustentação (pensamento) próprios. E uma dessas flores foi uma rosa vermelha espinhosa chamada martelo. Ela nasce de uma inquietação já presente no campo por meio de pequenos jardins e cores que foram arrancados dali por se julgar que não contribuiriam para o alvorecer da era do esclarecimento. Mas esse esclarecimento ultrapassou os limites por ele mesmo criado. E essa rosa martelo ataca as fraquezas, escancara os limites da era do esclarecimento no jardim.
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Uma de suas acusações é de que a era do esclarecimento criou uma oposição entre a organização (ciência) e a beleza (arte). Para que houvesse mais organização era preciso ter menos beleza, pois se cria que os reflexos da beleza prejudicam a boa organização no jardim. Somente uma boa organização, destituída de beleza, seria capaz de conduzir as pessoas à verdade, produto tão requerido pela árvore do conhecimento.
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(Continua...)
Jonathan

segunda-feira, 15 de março de 2010

Aprendendo a lidar com as incertezas (III)

Priscila, obrigado uma vez mais pelos comentários e pelas dicas, tentarei me lembrar delas todas as vezes que for me aventurar em narrativas.

Sobre seus comentários, meu objetivo está mesmo em ficar mais no campo da epistemologia (ciência do conhecimento) do que nas ciências exatas, que me parece ter sido o foco de seus comentários. Minhas críticas partem mais de meu próprio campo, que é o das ciências humanas, onde fazer ciência não é e nem pode ser "a busca por respostas exatas", visto que o humano tem muito pouco de exato. Todavia, concordo com você: não podemos abandonar certos alicerces e até mesmo "certezas", verdades, etc. Não sou defensor do relativismo e nem do absolutismo. Para mim, os extremos são sempre perigosos, pois me dão a sensação de que, cada vez que a eles me rendo, mais longe ainda em encontro do alvo. Parto apenas da admissão das incertezas presentes mesmo em nossas mais caras (e cuidadosamente investigadas) certezas, e de que isso é um fato inelutável ao ser humano.

Não penso que fazer ciência, mesmo as chamadas humanas, seja um “vale tudo” do tipo "o que estiver certo pra mim, estará certo, ainda que esteja errado". Porque assim deixa de ser ciência – que visa, obviamente, acertos, ainda que nem sempre “acerte”. O "erro" como você bem interpretou, é a lacuna. E disso não creio que poderemos fugir; ainda que a verdade seja meu foco, creio que nossa relação com ela é por aproximação, nunca por correspondência, e aqui obviamente não me refiro às “exatas” ou obviamente observáveis. Afinal, ninguém precisa dizer que está chovendo lá fora, quando eu olho pela janela e posso ver que está chovendo.

Contudo, grande parte da realidade a qual nos referimos – e aqui penso em termos mais da filosofia da ciência – não é transparente aos nossos olhos. Como diria Clément Rosset, a realidade resiste ao conhecimento, que por sua vez, até pode se remeter à realidade, mas inevitavelmente criando o duplo da realidade (que pode ser o duplo de si mesmo) e não a realidade em si. E como complementa Edgar Morin: "As idéias e teorias não refletem, mas traduzem a realidade, que podem traduzir de maneira errônea. Nossa realidade não é outra senão nossa idéia de realidade". E se, para alguns, isso pode parecer tragédia (ou mesmo relativismo), para mim é redenção, a idéia de que tenho de aprender a conviver com os mistérios da realidade que minha mente não pode desvendar por completo...

E se fôssemos pensar nas ciências que menos podem “errar”, como é o caso das ciências médicas, por exemplo, ainda assim ficamos sabendo de casos nevrálgicos e quebra-cabeças dificílimos de resolver, mesmo ao mais talentoso cientista, o que requer, muitas vezes, uma boa dose de conhecimento intuitivo – para entender o que estou dizendo, basta assistir a um episódio da serie “House” – isto é, um conhecimento que nem sempre pode dar a razão exata de seus procedimentos.

Afora, estão também os muitos erros médicos cometidos, seja por imprudência, descaso, falta de recursos ou mesmo por falta de explicações exatas, certeiras, para problemas da vida humana. Igualmente (falo, obviamente, como leigo-observador e não especialista), podem-se considerar as possibilidades de encontrar diferentes formas de tratamento para um mesmo problema (fruto de pontos de vista matizados), em que haverão aqueles que tratarão algumas dessas formas como mais ou menos eficazes que outras, enquanto outros poderão ver certas possibilidades como tão eficazes quanto outras, num princípio que leva em consideração a complexidade da vida humana e o valor da investigação particular de cada caso, que é um caso, sem considerar o todo.

Bem, pelo jeito sofro do mesmo “mal” que você, um mal necessário, quem sabe, que é o de falar tanto, ao querer explicar, e acabar falando mais para si mesmo – como forma de esclarecer seu pensamento. Enfim, o debate continua aberto, caso você ache necessário prosseguir. Afinal, somos todos aprendizes nas trilhas labirínticas do conhecimento...

Jonathan

terça-feira, 9 de março de 2010

Aprendendo a lidar com as incertezas (II)

Escrevo esse post em deferência e resposta às indagações de Priscila Monteiro ao meu texto anterior. É mais fácil escrever livre e levemente do que explicar a si mesmo. Mas não custa tentar, afinal, o objetivo, ainda que não pareça, é comunicar alguma coisa.
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O “erro” a que me referi no post anterior – embora tenha usado exemplos mais concretos e relacionados com a fé no início do texto – em geral, diz respeito ao conhecimento e à maneira como lidamos tradicionalmente com ele, como se a condição de sobrevivência de uma ciência fosse apenas as certezas e acertos que ela defende e outorga. Tentando dialogar mais detidamente aqui com Edgar Morin, mas tendo também outros pressupostos de leituras anteriores em mente, percebo que essa foi umas das armadilhas do conhecimento entre os modernos – a não admissão das suas lacunas, da imprecisão de suas “verdades”, e da plausibilidade do erro.
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Gostaria de aqui reproduzir o que falei numa série anterior de posts sobre pós-modernidade: uma das posturas da vida acadêmica que deveríamos transpor é a de continuarmos sendo modernos no sentido de buscar a suficiência e evitar o erro a todo custo, como se ele fosse o câncer da ciência. Pelo contrário, o câncer da ciência se chama sufi-ciência! É quando o cientista ou intelectual pensa que a ciência (ou o campo da racionalidade) tem todas as respostas e é capaz de tudo e mais um pouco. Essa falsa assunção é (foi) sua ruína. Pois o erro não é defeito, mas é a condição de continuidade e processualidade da ciência, pois “ciência sem erro é dogma”, afirma Pedro Demo, e mais: “A renovação do conhecimento é diretamente proporcional a presença do erro”.
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Isso pode parecer um pouco “low profile”, resignação ou como uma celebração do erro; e em parte é mesmo. Parte do reconhecimento do que Morin chama de um princípio de incerteza racional. Segundo ele, é preciso desbancar os mitos da razão todo-poderosa e do progresso garantido. Nesse sentido, Morin diferencia “racionalidade” de “racionalização”. A segunda é fechada por natureza e a primeira é aberta, fruto do debate e não da detenção de idéias; é autocrítica, reconhece seus limites, e “sabe que a mente humana não poderia ser onisciente, que a realidade comporta mistério”.
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Dessa forma, o oxigênio de qualquer proposta de conhecimento é dar vazão às dúvidas sobre nossa possibilidade de conhecer, mesmo quando queremos defender certos pontos de vista, expor certas teses e fazer afirmações de forma segura e objetiva. Uma das facetas do conhecimento objetivo reside precisamente na subjetividade que o comporta, elabora e o transmite. E como não podemos eliminar a subjetividade inerente a toda proposta de conhecimento objetivo, não podemos eliminar o erro, tampouco a incerteza.
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A assunção de tal realidade, pelo menos a mim tem conduzido a um exercício mais modesto da “arte” de conhecer, e nem por isso menos cheio de santa inquietude: eu ainda não terminei, ainda não estou acabado, não cheguei à reta final. É a celebração de uma vida que aprende (mesmo a duras penas) a lidar com as incertezas e a ser aberta às possibilidades do presente e do porvir...

Jonathan

terça-feira, 2 de março de 2010

Aprendendo a lidar com as incertezas...

"As certezas andam sempre de mãos dadas com as fogueiras" (Rubem Alves).
Você já ouviu aquele ditado (acho que é um ditado), que diz: “O maior erro é não reconhecer o erro”? Pois é, nossos pais, ou quem sabe nossos avós já tinham essa consciência. Há também outra palavra similar, agora vinda da Bíblia, acerca de nossa natureza humana: “Se afirmarmos que estamos sem pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós... Se afirmarmos que não temos cometido pecado, fazemos de Deus um mentiroso, e a sua palavra não está em nós” (1 Jo 1.8,10).

Se aceitar o erro é sinal de sabedoria, e reconhecer o pecado princípio de redenção, porque temos tanta resistência em admitir tanto o erro como o pecado na vida?

Minha tese é a de que fomos criados dentro de certa ditadura da perfeição, que nos induz à ilusão de não errar, e a um conhecimento “cego” acerca da vida e de nós mesmos. Que tipo de conhecimento pode ser considerado “cego” e que tipo de “perfeição”, ditatorial?

Conhecimento cego é aquele que pretende ser espelho das coisas ou do mundo externo; subestima o problema do erro, visto que, segundo Edgar Morin, “todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão” (2000, p. 19).

Perfeição ditatorial é um pré-requisito ou exigência da forma cega de conhecimento; porém, ainda que visemos à perfeição (completude), nossos meios são imperfeitos e incompletos. Em nossa maneira de ser e conhecer, desde cedo, fomos “doutrinados”. O problema é que doutrinas, em geral, pertencem à ditadura da perfeição, não admitem erros, pois admiti-los representaria a sua ruína.

Admitindo que outra forma de conhecimento seja possível e necessária, considerando os processos de criação e recriação pelos quais passa um mundo mutante, Morin, em seu livro "Os sete saberes necessários à educação do futuro" (2000), defende que a educação do futuro (no sentido de que algumas de suas proposições ainda estão distantes da realidade presente) precisa identificar e reconhecer erros, ilusões e incertezas do conhecimento que produz e ensina.

Será possível à educação teológica hoje desenvolver um tipo de racionalidade e, como consequência ou fruto, de prática que ensine e aprenda a lidar com as incertezas do conhecimento e da vida?

Jonathan

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Eu abomino a religião de vocês!

Em vez disso, corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene!” (Amós 5.24).

Através dos profetas, Deus anunciou justiça, paz, retidão, necessidade de arrependimento e misericórdia. Irou-se contra as instituições dos homens, que serviam como forma de “adorá-lo” e servi-lo na casca, e mascarar a opressão que reinava entre os do povo, inclusive “religiosos”.

Nesse texto de Amós, capítulo 5, Deus está abominando a religião de Israel. Como se estivesse dizendo: esse Deus a quem vocês dizem estar tão próximos, definitivamente não sou eu. Vocês acham com sacrifícios e com uma exterioridade pia, vocês podem “me conquistar”. “Banana pra vocês”. Vocês não podem me conquistar com elogios e adornos. Eu tenho nojo disso.

Isso mesmo, nojo. Nojo, porque eu sei que isso não vem do coração. Nojo, porque é impossível servir a dois senhores ao mesmo tempo; afinal, “foi a mim que vocês trouxeram sacrifícios e ofertas durante os quarenta anos no deserto, ó nação de Israel? Não! Vocês carregaram o seu rei Sicute, e Quium, imagens dos deuses astrais, que vocês fizeram para si mesmos” (v. 25-26).

Nojo, porque não dá pra dizer que anda próximo de mim quando se despreza e se oprime o próximo, seu irmão, o pobre, o órfão e a viúva que andam perto de você, e sobre quem você usa e abusa do poder de expropriação em sua causa própria. Ah, se você soubesse como eu detesto a sua religião, você nunca me chamaria de “Seu Deus”, porque no coração de vocês definitivamente eu não sou. “Pois eu sei quantas são as suas transgressões e quão grandes são os seus pecados. Vocês oprimem o justo, recebem suborno e impedem que se faça justiça ao pobre nos tribunais. Por isso o prudente se cala em tais situações, pois é tempo de desgraças. Busquem o bem, não o mal, para que tenham vida. Então o SENHOR, o Deus dos Exércitos, estará com vocês, conforme vocês afirmam” (v. 12-14).

Quem diz que ama a Deus, odeia o mal e não o pratica. Quem odeia o mal, faz o bem em contrapartida, como fruto da sua relação de vida com Deus, que se estende por tabela aqueles e aquelas a quem chamamos “próximo”. O “próximo” não é apenas aquele que está “perto”, mas é “aquele com quem eu me comprometo” (Segundo Galilea). Então, saibam: eu não quero o sacrifício de vocês, pois sacrifício sem misericórdia é abominação aos meus olhos. Eu trocaria tudo isso por uma coisa muito simples: “Em vez disso, corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene!” (v. 24).

Jonathan

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Frente a frente com o paradoxo

Sooner or later bad luck hits us all” (Ec 9.11 – The Message)

Não fomos ensinados a sermos amigos das contradições e paradoxos. Paradoxo diz respeito àquilo que é contrário à opinião comum (doxa); que contra-diz, que apresenta um desequilíbrio e denota algum tipo de inconstância. Na nossa vida em rebanho (como diria Nietzsche), somos tentados a seguir a “doxa”, ao pensamento da maioria, à tirania do normal, do bom e do belo; a declarar (quase como que um mantra) que a vida é bela, a despeito dela não ser.

Todavia, como o pregador (questionador), há aqueles que pararam para pensar na realidade tal como ela é, e viram na beleza da vida alguns traços de feiúra, rastros do pecado que habita no coração do ser humano (cf. Ec 7.29). E como nós cristãos lidamos com desequilíbrios e paradoxos, nos quais temos parte? Para exemplificar o modo como vejo esse enfrentamento (ou não), usarei uma tríade: Negação – Combate – Saídas Baratas.

Negar parece ser sempre a primeira e instintiva reação (até certo ponto, normal) do ser humano diante dos paradoxos. Não queremos encará-los, reconhecer que eles existem, dar a eles uma atençãozinha sequer. Porém, com o caminhar, os mais lúcidos (os que mais sofrem) se dão conta de que abraçar a vida sem aceitar os paradoxos que lhe são inerentes é o mesmo que querer segurar uma rosa sem tocar nos espinhos.

Circunstancialmente, portanto, criamos modos de combate ao paradoxo, sendo a própria negação um deles, como primeiro passo. Queremos a todo custo a “paz perpétua”, a resolução do conflito, resgatar quem sabe o marasmo de antes, tão melhor que a angústia de agora. Contudo, nem o mais fervoroso dos cristãos está livre dela. A angústia talvez não seja assim um “bicho-papão”. Ela pode ser o combustível que nos move na direção contrária a do abismo, direto para os braços do Pai, que nos recebe amorosamente.

Entretanto, invariavelmente a gente se depara com o que chamo de “saídas baratas”, que são as fórmulas fáceis do cotidiano provenientes de um emaranhado de propostas de auto-ajuda, que arrebanham milhares com promessas de uma vida mais fácil, leve, próspera e feliz. Ser cristão, nesse ínterim, é seguir corretamente os passos indicados, o que significa “boa sorte” sempre e não tem como ser diferente, tem? Tem sim, diria o Eclesiastes.

A “má sorte”, como diz a tradução indicada no início, “cedo ou tarde, atinge a todos nós”. Tudo o que respira está sujeito às intempéries do tempo de do acaso. Eis que então nos vemos diante do desequilíbrio e o paradoxo: aquilo que era pra ser não é, e aquilo que é, não era pra ser (ver Ec 9.11). O tempo da calamidade cai de repente sobre nós, cedo ou tarde (Ec 9.12). A questão, de novo, é: como lidamos com essas situações, como enfrentamos o paradoxo?

Nas situações paradoxais, muitas vezes entramos em litígio (conflito, controvérsia) com Deus; supomos que Ele tem de intervir positivamente nas situações. E se Ele não fez, então permitiu. E se permitiu, por quê? Não vejo um grande mal no litígio com Deus. Jó, Davi, Jeremias, Jesus e tantos outros entraram no litígio, e nem por isso naufragaram na fé. O exemplo deles me ensina que estar com Deus não me isenta das contingências, mas me ajuda a passar por elas com outra perspectiva (a da fé).

A vida na fé, ao contrário do que muitos pensam, é opção por situações e posturas contraditórias, do ponto de vista humano. É uma vida aberta às possibilidades e ao paradoxo. A fé é a certeza que nos leva à luta, apesar das incertezas e em meio a contradições, imprevistos e situações infelizes. Na vida humana o paradoxo existe, é um dado, não pode ser extraído e nem explicado; é para ser assumido.

Jonathan

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

IV. A aceitação jubilosa de si mesmo

O remédio para a doença – ainda que amargo e nem sempre tão eficaz e instantâneo como um tranqüilizante narcísico – pode ser expresso pelo que Rosset chama de “aceitação jubilosa de si”, ou o que Tillich chama de “coragem de ser a despeito de não ser”, e que o apóstolo Paulo denominou “limitar seu orgulho à esfera que Deus lhe confiou” (2Co 10.13) e “viver de acordo com o que já se alcançou” (Fp 3.15-16).

Tomando de empréstimo todos esses termos, eu diria que a aceitação jubilosa de si mesmo passa por uma profunda assimilação – tão profunda que penetre não somente o intelecto, mas o âmago, as “entranhas”, como no conceito hebraico de “coração” (leb) – das tenras palavras de aceitação do Pai: “A minha graça te basta” (2Co 12.9). Parafraseando Tillich, trata-se da coragem de “aceitar a aceitação”, isto é, aceitar a nós mesmos como somos, porque assim fomos previamente aceitos pelo Pai, sem nenhum requisito mínimo.

Em outras palavras, é correr na contramão de Narciso, que reside em cada um de nós por força da natureza, e aceitar quem somos, a despeito daquilo que desejávamos ser, desencadeando-se das falsas representações e dos falsos “eus”, que nos afastam de uma relação sadia conosco mesmos e, por conseguinte, com Deus e com o próximo.

Não poderemos andar de acordo com Deus se não andarmos “de acordo com o que alcançamos”, como defendeu Paulo. Termino com uma frase de Rob Bell: “Você não poderá estar conectado com Deus enquanto não estiver em paz com quem você é, da maneira como foi feito e a vida que lhe foi dada”.

Jonathan

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

III. A espiritualidade, para além do narcisismo

O que essa incursão no papo de filósofos e psicanalistas tem a ver propriamente com a espiritualidade cristã no mundo atual? Para vias de uma brevíssima e superficial avaliação: tudo, eu diria. Não apenas pelo fato de o mundo (pessoas) atual continuar sendo, à sua maneira, óbvia e previsivelmente narcísico, mas pelo tipo de ser humano que ele engendra, separado muitas vezes de sua própria humanidade e distinção pessoal. E se isso realmente representa uma negação da vida, como me faz acreditar Rosset, também representa uma negação de Deus, visto que o que é anti-vida aponta para o que é anti-Deus.

E a igreja, que deve ser instrumento de fomentação de uma espiritualidade cristã saudável – ainda que muitos entendam esse “saudável” como algo relativo – também acaba militando contra a vida todas as vezes que instiga, pela via do discipulado, da pregação e outros meios, tipos ou modelos ideais de santidade e espiritualidade baseados em exemplos não somente antiquados (para a época), mas, o que é pior, anti-humanos, que por sua vez nada têm a ver com o evangelho, cuja pregação e vivência implicam em transformação do ser, sim, só que pela via da aceitação – “vinde como estás” – e não do jugo ou da culpa.

Maior prova de aceitação divina de tudo o que somos não há senão aquela expressa pelo “está consumado” de Jesus na cruz. A santidade e espiritualidade que não provenham da assunção da cruz como vocação e aceitação da graça do “está consumado” como princípio de existência, pode estar mais perto do inferno que do céu, ao contrário do que muitas vezes se pretende.

Não estou defendendo o encobrimento de pecados, como se toda culpa fosse negativa. Porque, como adverte Paul Tillich, “ser aceito não significa que a culpa está negada”. Há, como se sabe, um nível de culpa sadio, que deve produzir arrependimento na pessoa diante de Deus. Mas há também uma falsa culpa, doentia, produzida por um senso equivocado do lugar do ser humano na economia da graça e do amor de Deus. Assim, nosso papel como igreja não passa pela condenação, muito menos pelo encobrimento; é o de ajudar uns aos outros a avançar em estatura na fé, transformando “os sentimentos de culpa deslocados, neuróticos, em genuínos, que são, por assim dizer, colocados em seu lugar certo” (Tillich, "A coragem de ser", p. 129).

Jonathan

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

II. O âmago da ferida aberta em Narciso

E a ferida narcísica se abre outra vez quando a ilusão é desmascarada, como explicita Clément Rosset: “Pensava-se tratar com o original, mas na realidade só se havia visto seu duplo enganador e tranqüilizador” (Rosset, 2008, p. 92).
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Isso me faz refletir acerca de quantas vezes (impossível contar ou trazer à consciência) não precisei nutrir uma imagem idealizada e, como tal, ilusória de mim mesmo a fim de poder continuar apreciando minha vida. A razão para existir como pessoa às vezes pode provir das fontes mais enganadoras e despersonalizadoras possíveis, sem que mesmo nos demos conta. Obscuridade própria do que é subjetivo.
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A vida como ela é, bem como o “eu” tal como ele é, pode ser uma pílula amarga de se engolir. Daí nosso doentio desespero e azedo gosto pela representação – e o que mais poderíamos esperar de nosso olhar para a realidade? Assim, de acordo com Rosset (2008, p. 108), “o erro mortal do narcisismo não é querer amar excessivamente a si mesmo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si mesmo e seu duplo, dar preferência à imagem”.
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E quando a representação deixa de ser suficiente para apaziguar o eu, Narciso? Quando o angustiado se vê essencialmente duvidando de si mesmo, ele precisa então (ou conjuntamente com a obstinação por sua própria imagem) de outro testemunho, o testemunho de outro, exterior a si. E este é “o miserável segredo de Narciso: uma atenção exagerada ao outro” (Rosset, 2008, p. 108). A baixa estima – caracterizada pela psicanálise como efeito paradoxal do narcisismo – em relação a seu eu (o original), pede, portanto, o outro, tranqüilizador: o testemunho (ou idolatria) de uma pessoa, que reforce o real, que ressalte o duplo.
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Eis-me então, Narciso que sou, diante da mais viciosa das dependências: a da sempiterna aprovação e confirmação, seja pela auto-imagem de si mesmo ou pelo testemunho externo, de meu duplo, daquele que eu gostaria de ser. Negação de mim, incurável ingratidão. E, como bem observa Rosset (2008, p. 93), “esta recusa do único, aliás, é apenas uma das formas gerais de recusa da vida”.
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Na análise de Paul Tillich dessa negação e desespero, é compreensível, segundo ele, “que toda vida humana possa ser interpretada como uma tentativa contínua de evitar o desespero. E essa tentativa é, na maior parte, bem sucedida” (Tillich, 1972, p. 43). E o que é a religião, muitas vezes, senão o “santo” remédio, ou essa quase sempre bem-sucedida tentativa de pelo menos aliviar o desespero humano mais óbvio e de manter as pessoas longe da realidade de quem elas são e de quem o mundo é?

Jonathan

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

I. Narciso e o duplo do real

O assunto despertou minha atenção casualmente, em função da leitura feita por um filósofo francês, Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo (2008). Ali ele desenvolve a tese de que, com relação ao real, nossa tendência é a de suprimi-lo numa “atitude de cegueira voluntária”, que nos faz ignorar o real, o singular, e dirigir nosso olhar para outro lugar (seu duplo), onde o real não está. De modo que, aquilo que anunciamos como sendo “real”, é na verdade o “outro”, visto que o real, em si, nos escapa.

Ao abordar o mito narcísico, Rosset afirma que a fragilidade ontológica de Narciso, que o levou à aniquilação de si, não foi a apreciação, o amor ou a grande aceitação pelo seu “eu real”, mas sua fixação em uma espécie de “duplo psicológico”, ilusório. Ou seja, essa interpretação nos conduz a pensar que aquilo que Narciso contempla embevecido, na verdade, seria a sua não-realidade, uma representação (desejável) de si mesmo, da qual ele necessita para continuar existindo, para além do desespero de não ser.

A mortalidade – preceito de que a existência tem um fim previsto, embora o momento do fim seja imprevisível – já afirmara Paul Tillich em A coragem de ser (1972), é uma das grandes fontes geradoras de aflição e ansiedade no ser humano, à medida que ela representa uma ameaça constante ao ser. Contudo, como assevera o próprio Tillich (1972, p. 42), “se a ansiedade fosse só ansiedade do destino e da morte, a morte voluntária seria o caminho para sair do desespero”, de tal maneira que a coragem requerida não seria a de “ser”, mas a de “não ser”.

Nesse sentido, as perspectivas de Tillich e Rosset se aproximam, à medida que este último defende que a angústia do sujeito, mais do que a própria morte, provém de sua não-realidade, sua não-existência. Em outras palavras, a pessoa narcísica sofre por perceber que o ideal de si não corresponde à realidade, que é cruel. Sendo esta cruel, ele precisa de outra “dose cavalar” de seu duplo, sua representação, que oferece, segundo Rosset, não a si mesmo, “mas seu outro, seu inverso, sua projeção segundo tal eixo ou tal plano” (Rosset, 2008, p. 91).

A “ilusão voluntária” consiste no efeito psicológico tranqüilizador produzido pela representação no espelho; no encontro com meu outro, penso estar em contato comigo mesmo.

Jonathan

Série: Eu, um narcisista?

A história de Narciso é bastante conhecida. Na mitologia grega, Narciso era um belo rapaz, que havia resignado-se de se entregar a ninfa Eco, que por sua vez desejava-o ardentemente. Assim sendo, ele recebeu como punição uma espécie de maldição, passando a adorar incontrolavelmente sua própria imagem refletida na água. A angústia de Narciso diante da insatisfação promovida por essa bizarra paixão, conduziu-o ao desespero de se suicidar por afogamento.

Os termos “narcisismo” e “narcisista” são popularmente utilizados como se referindo a uma pessoa extremamente vaidosa, egoísta ou orgulhosa. Sua versão em círculos acadêmicos recebeu, é claro, devido aprofundamento. Narcisismo seria mais do que simples (pela complexidade que o termo envolve) vaidade humana. Na psicanálise freudiana, narcisismo indica uma tendência libidinosa pela qual o indivíduo lida com seu corpo da mesma forma como lidaria com um objeto sexual, “contemplando-o, afagando-o e acariciando-o até obter satisfação completa através dessas atividades” (Miranda, Vieira Paulo & Cruz, 2009, p. 150).

Bem, a psicanálise oferece diferentes representações para o narcisismo, presente nas diversas condições da vida de uma pessoa, o que não me compete aqui nomear ou analisar*. Meu interesse é trazer um breve olhar sobre alguns possíveis reflexos de um tipo específico de narcisismo na espiritualidade cristã, a partir de um foco analítico em particular de matiz mais filosófica, que, por conseguinte, permitirá uma releitura teológica.

Jonathan

Nota

*Para fins de uma familiarização maior com o conceito em si e outras possibilidades de aplicação à espiritualidade cristã, sugiro a leitura do excelente artigo de Daniel Leite Guanaes de Miranda, Anna Christina Vieira Paulo e Simone Cabral da Cruz: “O narcisismo, a construção de laços sociais no século XXI e sua influência na espiritualidade evangélica contemporânea”, publicado na Revista Práxis Evangélica, número 15. Londrina: FTSA, 2009, p. 149-168.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O pronunciamento - Por Paulo Brabo

Os quatro eram teólogos e estavam mortos, mas suas indignações não descansavam.

– Numa crise dessa magnitude – disse o primeiro – seria impreterível que Deus não se esquivasse, como tem feito com demasiada frequência, de um pronunciamento oficial. O ideal seria que ele lesse pessoalmente, em cadeia planetária, uma nota redigida por nós.

– Se ele continua se recusando a liberar os recursos celestiais para as operações de salvamento e reconstrução – disse o segundo – o absoluto mínimo que ele deveria fazer seria manifestar de forma inequívoca sua solidariedade pelas vítimas e familiares. Repito: o absoluto mínimo.

– O que também não pode ser contornado indefinidamente – exigiu um o terceiro, abrindo seu laptop e apontando para uma pasta impossivelmente repleta do seu Google Reader – é o caso do comportamento temerário de Pat Robertson e de seus asseclas. Esses andam dizendo, em nome de Deus mas evidentemente sem o seu endosso, que a calamidade é intervenção divina, castigo aplicado devido à impenitente simpatia dos atingidos pela ortodoxia errada. Seria conveniente que no seu pronunciamento Deus deixasse bem claro o seu distanciamento dessa posição.

– Pelo contrário – asseverou um quarto, como se já viesse aguardando esse momento. – Em seu pronunciamento Deus deverá endossar cada palavra de seu servo Pat Robertson, de modo a expor as mentiras dos liberais e confundi-los publicamente. Tendo em vista a posição oficial da divindade com relação à sua própria soberania, inaceitável é o que andam afirmando os teólogos liberais: que Deus nada tem a ver com o desastre em questão e que, como se não bastasse, nada poderia ter feito para evitá-lo. Desnecessário apontar que é essa a posição sem qualquer precedente escriturístico, sendo além de tudo heresia defendida há séculos por ateus desprovidos de qualquer mérito.

E, apesar das suas diferenças doutrinárias, nos dias que seguiram os teólogos conseguiram redigir uma nota contendo sete pontos essenciais sobre os quais os quatro concordavam, a respeito da origem do mal e da posição divina diante das grandes calamidades. Deixaram o documento na caixa de sugestões do céu, que não tem fundo, juntamente com uma carta de apresentação e um abaixo-assinado com poucas assinaturas, mas de prestígio.

A resposta demorou meses a vir, e chegou endossada por um número impossivelmente abundante de selos, rubricas e carimbos, cada um atestando a passagem do processo por uma repartição celeste.

“O último pronunciamento oficial da divindade foi abraçar uma plena humanidade e morrer, e no intervalo entre uma coisa outra investir seus esforços em mitigar os sofrimentos dos homens e reparar as injustiças a que se submetem mutuamente, tendo deixado instrução para que seus seguidores vivessem e morressem dessa mesma forma. Não existe qualquer previsão para uma revisão deste pronunciamento, e a divindade não encontra-se disponível para esclarecimentos adicionais. A primeira vez em que foi visto publicamente Deus estava com as mãos sujas de barro, e na sua última aparição pública ostentava as cicatrizes de sua paixão pelos seres humanos. A administração do céu não reconhece outro lugar onde Deus possa ser encontrado, ou outra maneira pela qual possa ser reconhecido”.

– Lamentáveis essas respostas automáticas – disseram os teólogos uns aos outros, e passaram o resto da tarde lamentando a burocracia celestial.

Paulo Brabo

Extraído de: http://www.baciadasalmas.com/

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Confissões velhas em um ano novo

Poderia iniciar o ano cheio de planos, projetos, fôlego renovado, e muita vontade de fazer uma série de coisas diferentes do que fiz no passado. Há muito por fazer nesse ano, não muito diferente do que foi no ano passado; tenho sonhos bons e projetos fascinantes pela frente. Por isso, penso nisso sim (sem um pouco de luz, quem sobreviveria?); mas, agora que dei um tempo na urgência do “fazer”, tenho pensado em outras coisas, tais como velhos modos de ser que se perpetuam inadvertidamente ano após ano, em relação aos quais as festas e ornamentações rebuscadas de fim de ano tentam me manter distante, mas não conseguem...

E o que me faz nesse tempo de grande euforia, misturada com calmaria, arrazoar a esse respeito? Sei lá, talvez uma compulsão estranha por balanços, avaliações, conversas com a alma, fruto de uma inquietude que não se afasta de meu ser, mesmo quando estou “fora do ar”. Tem gente que prefere não falar, outros preferem ignorar, outros quem sabe são tão relaxados com tudo, que não veriam nada de errado em coisa alguma; todas as coisas são como as rosas. Pode ser; só que minha tendência é pensar: rosas também têm espinhos. E espinhos são coisas que machucam com o toque; espinhos na carne.

Quando vivo tempos de grande alegria e tranqüilidade penso na bondade, experimento a graça divina nas pequenas coisas, expressão do cuidado paternal. Em meio a isso tudo, ainda me encontro com os tais espinhos na carne. Parece que, não obstante impere o espírito de descanso, meus erros infantis não tiram férias. Pode alguém fugir da parte de si mesmo que mais detesta? Acho que não. Paulo estava certo: o mal que eu detesto, esse eu faço; e o bem que eu prefiro, esse eu não faço. E o estranhamento que às vezes paira, é semelhante ao do salmista: “Por que estás abatida, oh minha alma, por que te perturbas dentro de mim?”. Ano novo, velho jeito de ser. Não fossem as misericórdias, que se renovam, e a graça (que eu quero continuar a crer que me basta), o que restaria? Nuvens, neblina, vaidade...

Ao mesmo tempo, resolvi há certo tempo, que nada de humano me seria mais estranho. Então por que agora estranho esse meu modo humano, “demasiado humano” – Kierkegaard diria “paradoxal” – de ser? Às vezes penso que sofro da síndrome de coerência – e quem é capaz, por mais que tente, de ser coerente o tempo todo? Então oro pra que Deus me ilumine rumo a uma vida coerente, e que Ele me livre das máscaras de uma falsa e pretensa coerência. Quero consistência, abomino a mera superficialidade. Quero aprender a viver um dia de cada vez, e dar tempo para que os velhos cacoetes, produzidos pelo pecado que habita em mim, entrem no estado de progressiva partida, ou que pelo menos possam ser controlados, no alvorecer da maturidade e do progresso na fé, em relação ao qual não desejo ficar estagnado, jamais.

Nesse ano novo, graças a Deus, e em nome da sanidade, ainda não me encontrei com as falsas promessas e esperanças, muito menos com agendas que nada têm a ver com a realidade e com o que sou; encontrei tão somente a mim mesmo, nu diante do espelho de velhas confissões, e mais nu ainda diante de Deus – quem poderia fugir de sua presença? – imerso em migalhas não sistemáticas do pensamento, frangalhos de sentimentos, porém, ainda confiante de que a graça me basta! Porque quando sou fraco, então é que sou forte. Acima de tudo, muito mais do que não ignorar a voz às vezes confusa da alma, não quero ignorar a voz do Pai, que não me abandona nunca: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração como foi na provocação, no dia da tentação do deserto” (Hb 3.7).

Jonathan