quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

II. O âmago da ferida aberta em Narciso

E a ferida narcísica se abre outra vez quando a ilusão é desmascarada, como explicita Clément Rosset: “Pensava-se tratar com o original, mas na realidade só se havia visto seu duplo enganador e tranqüilizador” (Rosset, 2008, p. 92).
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Isso me faz refletir acerca de quantas vezes (impossível contar ou trazer à consciência) não precisei nutrir uma imagem idealizada e, como tal, ilusória de mim mesmo a fim de poder continuar apreciando minha vida. A razão para existir como pessoa às vezes pode provir das fontes mais enganadoras e despersonalizadoras possíveis, sem que mesmo nos demos conta. Obscuridade própria do que é subjetivo.
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A vida como ela é, bem como o “eu” tal como ele é, pode ser uma pílula amarga de se engolir. Daí nosso doentio desespero e azedo gosto pela representação – e o que mais poderíamos esperar de nosso olhar para a realidade? Assim, de acordo com Rosset (2008, p. 108), “o erro mortal do narcisismo não é querer amar excessivamente a si mesmo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si mesmo e seu duplo, dar preferência à imagem”.
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E quando a representação deixa de ser suficiente para apaziguar o eu, Narciso? Quando o angustiado se vê essencialmente duvidando de si mesmo, ele precisa então (ou conjuntamente com a obstinação por sua própria imagem) de outro testemunho, o testemunho de outro, exterior a si. E este é “o miserável segredo de Narciso: uma atenção exagerada ao outro” (Rosset, 2008, p. 108). A baixa estima – caracterizada pela psicanálise como efeito paradoxal do narcisismo – em relação a seu eu (o original), pede, portanto, o outro, tranqüilizador: o testemunho (ou idolatria) de uma pessoa, que reforce o real, que ressalte o duplo.
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Eis-me então, Narciso que sou, diante da mais viciosa das dependências: a da sempiterna aprovação e confirmação, seja pela auto-imagem de si mesmo ou pelo testemunho externo, de meu duplo, daquele que eu gostaria de ser. Negação de mim, incurável ingratidão. E, como bem observa Rosset (2008, p. 93), “esta recusa do único, aliás, é apenas uma das formas gerais de recusa da vida”.
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Na análise de Paul Tillich dessa negação e desespero, é compreensível, segundo ele, “que toda vida humana possa ser interpretada como uma tentativa contínua de evitar o desespero. E essa tentativa é, na maior parte, bem sucedida” (Tillich, 1972, p. 43). E o que é a religião, muitas vezes, senão o “santo” remédio, ou essa quase sempre bem-sucedida tentativa de pelo menos aliviar o desespero humano mais óbvio e de manter as pessoas longe da realidade de quem elas são e de quem o mundo é?

Jonathan

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