Um dos grandes descaminhos do saber se encontra no que chamo aqui de “péssimo hábito da literalidade e do pré-juízo”. Pois, como já insisti em posts anteriores, tomar as coisas como dadas, tal como emergem na superfície, pode comprometer o juízo e a interpretação que oferecemos sobre as situações, os objetos de estudo, e as pessoas. O desafio aqui é desconfiar do dito e de meus pressupostos inicias sobre ele; é indagar sobre os possíveis “não-ditos” ou “mal-ditos” subjacentes nos ditos. Em suma, nem tudo é sempre tão óbvio quanto pode parecer. Ilustro com uma história.
Recentemente meu amigo Kleber Lucas cantou “Epitáfio”, dos Titãs, junto com sua banda em um dos cultos da “Soul Igreja Batista” no Rio de Janeiro, onde ele atua como pastor. Em seguida, publicou um vídeo em sua conta no Instagram, e (como já era de se esperar) foi execrado por uma massa de “irmãos” (digo com certa relutância) na fé, não só por cantar uma música “secular” num culto cristão, mas por ser esta uma canção cujo refrão diz: “O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído”. Duas questões me preocupam nesse caso, sobre as quais quero comentar aqui.
A primeira questão nasce do mui antigo dualismo sagrado versus secular.
O pressuposto, nesse caso, é: existe música “do mundo” e existe “música de Deus”. Na igreja a gente só pode ouvir e cantar música de Deus (isto é, gospel), nunca do mundo. Escuto essa baboseira sectária desde que me conheço como cristão, mas para mim ela nunca fez sentido. Porque tem música que se diz ser “pra Deus”, mas que simplesmente não consigo cantar (ou sequer suporto ouvir), porque fere meus ouvidos de tão ruim no conjunto letra, teologia e a melodia. Pode até comover, mas não muda um centímetro da vida; fala de Deus, mas só pra massagear o ego.
Além disso, não me fazem pensar, não mexem com minhas entranhas, não me instam a olhar para o próximo, ao micro e macro ambientes que me cercam, a relacionar a Palavra com as questões do cotidiano, a adorar a Deus e celebrar a vida em comum-unidade, até porque centram-se quase inteiramente no indivíduo e seus problemas particulares. Como diz João Alexandre, são variações do mesmo tema, “meras repetições” – e me pergunto até quando insistiremos em repetir e variar, em segregar e não pensar, em vociferar e não dialogar? Certas coisas parecem ser insuperáveis.
Em contrapartida, tem tanta música feita por gente “do mundo” que consegue fazer o que falta a muitas canções cristãs: cantar as belezas divinas, sem necessariamente falar o nome de Deus, e retratar os dramas da vida humana e os gemidos da criação. Para citar só um exemplo dentre tantos: “Sol de primavera”, de Beto Guedes, é uma canção “do mundo” que pode ser entoada como hino a Deus, pois fala de dor, fraternidade e esperança, sobre semear a boa nova, sobre andar a segunda milha com quem chora, sobre aprender a viver e ser melhor. [É óbvio que tem muita música cristã que também faz isso com competência, mas esse texto não é sobre elas].
Ora, eu sou de Deus e eu faço parte do mundo; o mundo é de Deus (embora boa parte dele seja tomado pelo maligno), e todas as coisas boas nele existentes são fruto de Sua Graça; atributos invisíveis, como disse Paulo; imagem e semelhança do Criador. Se eu respiro, ando, vivo, canto, choro, sofro e me alegro dando ações de graças “em tudo”, não tenho razão alguma para perder tempo com dualismos religiosos infantis. Logo, não existe música de Deus versus música do mundo; existe música boa versus música ruim, e para todos os gostos. Portanto, discernir é preciso; segregar não é preciso. Agora, se não gosta ou não aprova; se para você esse tipo de fazer não convém a sua forma de fé, ao menos não julgue nem discrimine quem vivencia sua fé com liberdade e gratidão. Somente Deus conhece e examina o coração, lugar por excelência do louvor.
A segunda (e central) questão diz respeito ao péssimo hábito da literalidade e do pré-juízo.
A música “Epitáfio”, dos Titãs (2001), parece-me ser apropriada para uma reflexão sobre essa vida que vivemos. “Epitáfio” nada mais é que aquela inscrição da lapide do túmulo no cemitério. Geralmente ali se escreve aquilo que a pessoa foi, uma qualidade dela. Exemplo: “Aline, esposa fiel, mãe dedicada, mulher irrepreensível”. A música, porém, inverte isso e apresenta uma lista de coisas que a pessoa queria ter feito, mas não fez. Em suma, é como se ela dissesse: “Eu queria e devia ter vivido melhor, curtido intensamente os momentos singulares da vida, mas não consegui”.
É uma linda canção, que fala de ideais de vida possíveis, mas de um lugar de impossibilidade: o instante da morte. Embora tratemos a morte com extrema recusa, estranhamento e medo muitas vezes, ela tem uma função pedagógica: lembrar-nos sobre como temos vivido e que valor damos à vida e às pessoas a quem mais amamos. A poesia dos Titãs, porém, chama atenção a dois problemas pelo menos (um prático e outro teórico) - que, por sua vez, não anulam a meu ver sua beleza poética e sua utilidade para a reflexão, nem a torna “proibida” de se cantar na igreja (desculpe, mas me sinto ridículo nesse comentário). Primeiro, mostra que, nos últimos instantes de vida, quando não há mais nada a ser feito, alguém lamenta o que poderia ter sido feito, mas não foi ou não fez. Segundo, afirma que “o acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído”.
Aqui chegamos ao coração da questão: o acaso – que diz respeito a coisas que acontecem sem aparente (e previsível) causa ou razão – ao que me parece, não escolhe a quem vai atingir, nem tampouco tem “protegidos”. Se tudo depender do acaso, então minha vida está nas mãos daquilo que há de mais incerto e implacável. O que pouca gente sabe, porém, é que o acaso é considerado biblicamente como parte integrante da existência, e não um mal a ser extinto (nem poderia). Senão, examinemos brevemente o famoso versículo do livro de Eclesiastes em que a palavra aparece:
Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois o tempo e o acaso afetam a todos. (Ec 9:11, NVI)
O autor aqui desvela uma verdade inconveniente: nem sempre o que era para acontecer, segundo uma ordem esperada de coisas, acontece. O honesto nem sempre “vence na vida”; atos de bondade nem sempre são recompensados do mesmo modo; ou ainda, como se diz em outra tradução, “as pessoas mais capazes nem sempre alcançam altas posições. Tudo depende da sorte e da ocasião” (NTLH), ou do tempo e do acaso. A palavra em inglês para acaso é chance, e diz respeito a ausência de controle e presciência sobre tudo o que de bom ou de ruim acontece debaixo do sol. “Cedo ou tarde”, afirma-se na tradução A Mensagem, “a má sorte atinge a todos”. Isso mesmo: todos! Mesmo os que creem na proteção divina, não estão blindados contra ele. O acaso, portanto, pode não ter protegidos, como sugere o autor da canção, mas ninguém passa por esta vida sem ser afetado/a por ele.
O péssimo habito da literalidade não nos permite questionar, não nos capacita a lidar com os paradoxos, a ponderar o imponderável, porque não admite “contradições” de toda sorte – embora as Escrituras mesmas coloquem essas contradições bem diante dos nossos olhos, só não vê quem não quer. Então, julgamos quem canta a música dos Titãs como “traição à fé” (resta saber qual), sem saber o que cada um carrega no coração quando canta, e como se apropria da canção. Os detratores do pastor e sua comunidade não estiveram na "Soul" naquele dia, e não poderiam ter a dimensão do significado que aquela canção teve para aquelas pessoas ali reunidas. Não obstante, como é usual no meio evangélico, deixaram-se levar pelas aparências, optaram pelo caminho da segregação, do ódio e do julgamento típicos de uma certa religião. Afinal, sempre é mais fácil julgar do que compreender, condenar do que discernir, empregar fórmulas mágicas do que enfrentar a complexidade da vida de peito aberto e com a franqueza de às vezes poder dizer “eu não sei”.
Eu, porém, ainda fico com o bom senso advindo da Palavra de Deus, que me instrui aqui e acolá a evitar a frivolidade dos caminhos fáceis e a leviandade das respostas prontas, cujo convite é o do discernimento, da coragem e do enfrentamento da vida e suas intempéries, com confiança e esperança no Deus de amor, sabedores de que Ele caminha com a gente, desde as montanhas mais altas aos vales mais escuros; das avenidas iluminadas aos becos da existência, sem que saibamos exatamente o “como” nem o “porquê”. Que o péssimo hábito religioso da literalidade e do pré-juízo, bem como o seu famigerado gosto por repetições, não mais nos impeçam de encontrar Deus no lugar improvável, no aparentemente escuso e no inesperado. Pois teologia e fé que não se deixam surpreender por Deus são coisas tremendamente enfadonhas e pouco frutíferas; de novo, meras repetições.
Jonathan