segunda-feira, 31 de maio de 2010

Contra fatos não há argumentos. Será?

Você já parou pra pensar o quanto nosso cotidiano é nutrido por idéias? Lidamos com elas o tempo todo. Idéias que vão e que vêm; que nós criamos, copiamos, mudamos; memorizadas, pensadas, não-pensadas, automatizadas, enraizadas. Embora o viver não se resuma a elas, não há duvida que, de muitas e variadas formas, elas ajudam a abastecer o viver.

Uma das idéias das quais nos abastecemos – os historiadores mais ainda – é a de que fatos existem lá fora. Um fato pode ser entendido genericamente como um fenômeno humanamente reconhecível, e ordenado a partir do tempo e do espaço. Para muitos, fatos são “dados”, isto é, informações que emanam naturalmente dos ocorridos e que, por uma pura observação, caem em nossos colos prontos para serem divulgados. Não foram mexidos, como podem ser os ovos, nem modificados pelo olhar humano. Aliás, para que fatos sejam mesmo fatos, ter-se-ia de ignorar o tal olhar. E o pior é que nisso tudo ainda se propaga a fábula da “tabula rasa” de David Hume, que pressupõe a pura recepção da mente humana dos dados da experiência, demarcando uma continuidade entre o dado, a recepção e o conhecimento.

Assim, tal fábula se faz disseminar entre nós por meio do senso comum de que “contra fatos, não há argumentos”, já que o fato “fala por si mesmo”, e nosso papel é apenas o de descrevê-lo tal como ele é, sem tirar, nem pôr. Eles emergem das coisas. Embora muita gente ainda pense assim, há muito tempo existem argumentos levantados por diferentes vozes contra tal percepção de um fato. Uma delas é a de que o fato não é um dado proveniente do mundo externo, mas uma criação proveniente do olhar humano. Logo, aquilo que recebemos como “fato”, contra qual não se poderia ter argumento, surge precisamente de outros argumentos, ou informações suscitadas por alguém, que não “caíram no colo”, nem foram “dadas” e sim produzidas pela linguagem.

É óbvio que isso se aplica ao campo do conhecimento, que surge precisamente desse olhar para a realidade. Não se trata de ciência exata aqui, mas humana (melhor deixar claro, antes que alguém venha dizer que acredita ser um fato que 2 + 2 é igual a 4). Fatos, assim, são construções, à medida que passam pelo filtro do olhar, que naturalmente resulta em interpretação e, por fim, em um enunciado. Não se pode, por mais que se tente, eliminar todas as interpretações naturais, como defendeu Paul Feyerabend. E toda tentativa de fazê-lo, ainda segundo ele, seria autodestrutiva, ou, como disse C. S. Lewis, é aceitar a “oferta do Bruxo”.

Contra tal positivismo, que dizia “há apenas fatos”, Nietzsche respondeu: “Ao contrário, fatos é o que não há; há apenas interpretações”. Sei que para muita gente isso ainda pode parecer um tanto subversivo, e para outros, questão ultrapassada. Mas ainda se pode ouvir, aqui e acolá, o dito que “contra fatos...”. Bem, e se os fatos, em si, já são de certo modo argumentos (enunciados)? Então, não se pode aferir que não há argumentos contra argumentos, concorda? Teorias são criações provenientes da interpretação – diversa, lacunar, contraditória – e, portanto, sujeitas a permanente reformulação. Diz-se que os fatos podem refutar as teorias, e eu pergunto: quais? Aqueles, resultantes da mesma fonte de onde provêm as teorias, isto é, o olhar humano?

Penso que não há nada “por trás dos fatos” que proteja uma afirmação categórica humana de um exame crítico – até porque, por trás dos fatos, diria Feyerabend, estão seus “componentes ideológicos”. Aliás, a menos que esteja protegida pela “aura” do dogma, nenhuma teoria, tampouco essa que defendo, está isenta de um exame crítico. Se não é possível excluir a interpretação da atividade de conhecer, continuemos examinando criticamente as interpretações uns dos outros, nessa busca desenfreada pela verdade, que nos escapa. Se uma interpretação “não servir”, substitua por outra, e assim sucessivamente. No dia em que virmos o original, face a face, então a ciência terá chegado ao fim, parafraseando Rubem Alves... No dia em que virmos face a face, então conheceremos como somos conhecidos, e a vida já não será a mesma!

Jonathan

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Sobre o livro "Missão Integral", de Gondim (final)

No que tange à apreciação crítica da obra, encerrarei com outras considerações, tentando ser mais pontual.

1) Quanto aos marcos conceituais da pesquisa, a saber: (a) O fator identidade – Gondim tenta demonstrar que esse foi o principal impedimento para o crescimento da reputação da MI entre os evangélicos, referindo-se às suas raízes fundamentalistas. Não vejo dessa forma. A mim parece que a variabilidade de “práticas discursivas” entre os representantes é uma razão mais provável. Se a MI fosse tão “fundamentalista” quanto entende o autor (embora tal ligação não seja de todo infundada), talvez alcançasse maior simpatia entre os evangélicos no Brasil, fundamentalistas em sua maioria .

(b) O fator Lausanne – no que tange às “nomenclaturas”, o autor mais complica que esclarece, especialmente em sua abordagem mais histórica, dispersa e generalizante. Mas ao que se refere às diferentes apropriações da MI, por parte do norte e do sul da América, me pareceu pertinente o que ele expôs. Ainda resta saber se haveria, aos olhos do autor, vida para a MI fora da polaridade entre norte e sul.

(c) O fator produção teológica – é indubitável que os teólogos da libertação foram mais eficazes nesse quesito, levando o nome da teologia latino-americana para fora deste continente; que a questão da identidade entre eles foi mais bem (porém não totalmente) trabalhada, para mim, também é ponto pacífico. Todavia, entendo que a crítica do autor ficou muito voltada para o plano conceitual da MI, com foco nas questões, já pontuadas, do conservadorismo e da polarização, e não levou em conta a práxis, ou o que se fez em termos de MI no continente para além das conferências, consultas e debates teológicos. Diante desse silêncio, o que o autor quis dizer em sua palestra no CBE 2, quando afirmou que precisamos celebrar porque “fizemos Missão Integral” nesse país?

2) Quanto à agenda e os desafios por ele propostos à MI. A agenda se concentra apenas no campo teológico. O autor até fala algo sobre “práxis transformadora”, sem, no entanto, direcionar a campo algum. Ele menciona quatro pontos a ser discutidos para um “avanço” maior: a antropologia da queda, a questão da teodicéia, as contradições internas à MI, e a doutrina da soberania divina. A última, segundo ele, “repete a doutrina calvinista da providência quando afirma um teísmo quase fatalista” (p. 147). As maiores preocupações do autor são teológicas. Mas ele quase que “legisla em causa própria” ao atrelar a sua agenda (a da TR) a uma possível agenda da MI, à medida que questiona a crença evangelical na soberania de um Deus que determina os mínimos detalhes da história.

Por exemplo, na conclusão ele afirma que na maioria dos textos sobre missão está impressa a idéia de que “Deus é soberano e que tudo está sob seu controle”. O desafio que ele propõe, de modo inverso, é que cabe “à Missão Integral responder até que ponto a miséria da América Latina seria plano dele” (p. 147). Diante disso, tenho duas questões: Será mesmo que os pensadores e adeptos da MI são tão deterministas ao ponto de não ter uma resposta mais honesta e realista para essa questão? E qual teologia, por mais eficaz que seja, seria capaz de perscrutar os planos ou intentos divinos suficientemente para poder responder a contento essa pergunta?

Por fim, não obstante às críticas ora tecidas a respeito da presente obra, entendo que não é menos oportuno recomendar sua leitura aos pesquisadores ou interessados na temática da Missão Integral e seus derivantes ou derivados, visto que se trata de uma produção recente na área; também porque é uma entre as raras produções já publicadas especificamente sobre esse assunto; mas, mais do que isso, porque, ela mesma, com suas virtudes e defeitos, como toda produção literária, científica ou não, deixa lacunas e, com elas, abre avenidas de possibilidades para continuarmos pensando a MI, seja a partir da revisão de antigos paradigmas, seja a partir da invenção de novos. Assim, faz-se teologia através do diálogo, em concordância ou confronto com as perspectivas existentes. Teologia é fruto do caminhar, é resposta ocasional.

Jonathan

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Sobre o livro "Missão Integral", de Gondim (IV)

No terceiro e último capítulo, Gondim faz uma pergunta de certo modo retórica, em virtude da argumentação apresentada anteriormente, tentando entender o porquê de “tamanha frustração” e inquietação dos evangelicais brasileiros em relação a seus irmãos do norte. Uma pergunta para qual ele, em seguida, ensaia uma resposta (tese do capítulo): “A Missão Integral simplesmente não conseguiu equacionar adequadamente a polarização da evangelização e da ação social” (p. 11).

De todos os capítulos, este me parece ser o mais focado e coerente com as interpretações (com as quais compartilho) dos fatos envolvendo o movimento de MI. O autor postula um “descompasso” entre as formas como os latino-americanos e os norte-americanos absorveram os impactos provocados por Lausanne, 1974. Enquanto os últimos insistiram em priorizar a proclamação verbal do Evangelho, os primeiros postularam o equilíbrio desta com a ação social. Como destaca o autor, “enquanto os evangelicais [referindo-se aos latino-americanos, acréscimo meu] insistiam na metáfora de duas asas necessárias para o pássaro voar, os anglo-saxões queriam ganhar ‘almas” (p. 112). Fica claro pela análise do autor, que a MI foi (e, apesar de tudo, continua sendo) um grande negócio mais “aqui” do que “acolá”, a partir de onde sua nave parece ter “decolado” pra valer.

O autor faz dois destaques críticos muito importantes e pouco trabalhados pelos analistas, a meu ver. O primeiro diz respeito ao que David Bosch chamou de “dicotomia básica” presente no Pacto de Lausanne entre os artigos 5 e 6. Enquanto no artigo 5 se afirma a inseparabilidade entre evangelização e ação social, no artigo 6 se afirma a “primazia” da evangelização dentro da tarefa missionária. Gondim faz uma interessante observação nesse tópico, de que na primeira tradução brasileira do Pacto de Lausanne, pela ABU Editora, em 1982, a palavra “primary” foi traduzida como “urgente” e não como “primária”, indicando primazia (p. 115).

Além dessa tentativa local de emenda, há outro fato, não mencionado pelo autor, que envolve a pessoa de John Stott, redator do Pacto. Ao se colocar na inglória tarefa de desatar tal imbróglio entre os artigos, John Stott, por um lado, defende que é “demoníaca” a tentativa de separar as duas coisas, para depois afirmar que, se fosse necessário optar, a evangelização seria primordial. Resta saber o porquê dessa tal necessidade. Isso mostra que, mesmo nos mais celebrados consensos, podem coexistir paradoxos e desequilíbrios.

O segundo destaque crítico se refere à análise, ainda pioneira devido à lacuna existente de reflexões a respeito, da relação entre a MI e a TL. O autor critica a MI por ter ficado “em cima do muro” ao tentar sustentar uma abordagem transformadora da realidade, associada, porém, com uma teologia conservadora. A razão, para ele, está no receio da MI de ficar marcada entre os evangélicos em geral como ecumênica e liberal, ou mesmo de ser identificada com as agendas da TL. O resultado é que “a Missão Integral oscila entre os pólos do proselitismo e do holismo” (p. 141), enquanto a discussão do que é prioritário ou não estaria bem resolvida na TL.

A falha nessa análise de Gondim, porém, está em (1) ocupar-se em desconstruir a MI, sem fazer o devido contrapeso crítico em relação à TL (tendemos mesmo a valorizar mais os “de fora”), e (2) em não apontar aproximações e distanciamentos entre MI e TL de forma mais rigorosa e clara, sem pender para lado algum. Afinal, ambas, como toda teologia, são insuficientes, possuem diferentes aportes, mas em algumas instâncias podem ser complementares.

(Continua...)

Jonathan

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Sobre o livro "Missão Integral", de Gondim (III)

No segundo capítulo do livro, Gondim já é mais direto quanto ao olhar, que se volta especificamente à MI e a falta de sintonia entre seus representantes no norte e sul da América. Ele defende que o movimento nasce na América Latina antes mesmo do evento de Lausanne, na década de 1960, quando teólogos e pastores autóctones perceberam a necessidade de uma mensagem de salvação que incluísse também o terreno e não apenas o ultraterreno, e que fosse contextualizada e relevante às circunstâncias vivenciadas pelo povo latino-americano. Desde então, “missão” aqui significava mais que “missões” ou evangelização; implicava no anúncio de uma mensagem mais abrangente que redundasse em ações que promovessem uma sociedade mais justa e igualitária.

No encontro mundial em Lausanne, 1974, essa perspectiva se confronta, segundo o autor, com a visão das agências financiadoras do evento, como a Associação Evangélica Billy Graham, Aliança Evangélica Mundial e a Cristianismo Hoje, centradas na missão como evangelismo. Daí ser aquele um congresso de evangelização. Isso se expressa não só nas palestras ora proferidas, como também no “Pacto de Lausanne”, que representou o elo entre as diferentes facetas ali presentes, como também demarcou uma ruptura, pois, como defende Gondim, “os principais temas abordados pelo Pacto configuram muito mais a agenda do fundamentalismo que propriamente um avanço dos conceitos missiológicos” (p. 84) – valendo destacar que essa é uma tese de suma importância dentro do olhar geral oferecido por ele nesse livro.

Gondim ainda apresenta um olhar crítico ao movimento de MI na América Latina. Primeiro, comparando-o com a Teologia da Libertação (TL), afirma que a última não só foi menos ambígua que a MI, como legou, com muito mais volume e qualidade que essa, produções sobre temas fundamentais para uma práxis cristã no continente, enquanto “os evangelicais se debatiam com a tensão interna se o anúncio do evangelho tinha primazia sobre a ação social” (p. 75).

Em seguida, ele introduz em seu relato o Congresso Brasileiro de Evangelização 2 (CBE 2), realizado em Belo Horizonte em 2003, onde se viu, segundo ele parece indicar, menos motivos para celebrar que para lamentar. O autor tenta demonstrar como uma combinação negativa de fatores, a saber, o “descompasso” entre as contradições internas do movimento de MI, de um lado, e a pujança do movimento evangélico em geral, impediu o desenvolvimento brasileiro de uma teologia “nitidamente latino-americana” (p. 98). Assim, conclui que o CBE 2 representou uma frustração às lideranças identificadas com a MI em impactar o movimento evangélico nas últimas décadas.

Essa avaliação, porém, parece provir de uma frustração processual e mais recente do autor e dos “outros” aos quais ele se refere, enquanto participantes diretos do CBE 2. Estive presente nesse congresso e pude constatar, pelo menos em parte, as mudanças a que o autor se refere, porém já como membro de outra geração, disposta a dar continuidade ao legado da MI no Brasil, de modo prático, crítico e reflexivo, e sem o fardo aparentemente pesado da decepção ante os rumos que ela tomou. Na ocasião, presenciei a palestra de encerramento do congresso, proferida pelo próprio Gondim. Nela, ao contrário da presente avaliação, ainda que igualmente nostálgica, o autor apresentou tanto motivos para lamentar como para celebrar, mantendo uma análise menos afetada e mais equilibrada que a atual, como na passagem que segue abaixo:
Já se passaram 20 anos e temos muito que celebrar! Embora tenhamos muito a lamentar. Neste congresso, porém, precisamos celebrar muita coisa porque, cheios de sonhos, fizemos missão integral. Fomos uma geração que engravidou de caminhos e, ao longo deles – alguns tentadores, outros ameaçadores – a cada passo nos nascia uma nova manhã e nela novas portas se abriam. E nos aventuramos por elas com nossas chaves, tentando reverter um pouco da miséria humana, salvar alguns, semear paz, falar de justiça. Fazer com que a nossa humanidade estivesse soldada à esperança de mostrar o reino de Deus que se encontra entre nós. Sim, terminaremos esse congresso celebrando (“Desafio e consagração”, In: Missão Integral. Ultimato, 2004, p. 283).
Ao mesmo tempo, ali ele já reconhecia uma pequena dose de “frustração” presente em sua geração, a qual no momento ele assume com mais peso: “Vivemos no meio de uma geração cheia de frustrações, porque sentimos que não conseguimos ser o que sonhávamos ser, não conseguimos realizar o que queríamos, não alcançamos o que desejávamos alcançar”.

(Continua...)
Jonathan

terça-feira, 25 de maio de 2010

Sobre o livro "Missão Integral", de Gondim (II)

Nessa obra especificamente, ainda que seu foco recaia sobre uma análise histórico-teológica do movimento de MI, o autor não omite suas atuais predileções e filiações com a TR – como tentarei expor em momento oportuno. Também não esconde seu envolvimento pessoal com o movimento, suas alegrias e, sobretudo, suas frustrações. Uma delas teria a ver com um embargo teológico presente nesse movimento, que para ele tem nome, endereço e caixa postal: é o Fundamentalismo Norte-Americano. Isso, por sua vez, explicaria a “dificuldade de fazer uma teologia crítica que mexesse com as premissas teológicas consideradas intocáveis” (p. 22), mesmo dentro do próprio movimento.

Assim, ele encerra a introdução ao livro pontuando que a MI, uma proposta que embalou um grupo de jovens movidos pela esperança de “algo novo no horizonte evangélico-protestante”, agora seria mais motivo para desabafo e desencanto. Baseado nesse “desencanto” e numa visão mais negativa que positiva, o autor então endereça seu objetivo principal que é o de “analisar e entender os motivos que impediram a Missão Integral de promover uma práxis transformadora na América Latina e no Brasil” (p. 22).

No primeiro capítulo, Gondim parte de uma assunção honesta e pertinente a qualquer analista do campo religioso evangélico: a de que a identidade evangélica, seu foco principal aqui, é suficientemente complexa para colocar em “maus lençóis” a qualquer um que assuma a tarefa de “defini-la”. Em parte, isso se deve a grande dificuldade com os termos usuais para se referir aos adeptos do movimento: protestantes, evangélicos, (neo) evangelicais, pentecostais, fundamentalistas, liberais, ecumênicos, e por aí vai; se insistirmos, a lista pode ser grande. O mais curioso é que, mesmo reconhecendo tal complexidade, o autor logo no início faz uma correspondência entre esses termos, ora parecendo se referir a tópicos distintos, ora dando a impressão de não haver distinção alguma entre eles. A mixórdia que ele faz fica evidente por essa passagem (observe a quantidade de termos usados, sem maiores elucidações):
Alguns protestantes que não concordavam com a teologia liberal, buscaram distanciar-se dos fundamentalistas e procuraram se identificar com a teologia liberal, buscavam distanciar-se dos fundamentalistas e procuraram se identificar como “neo-evangélicos” ou apenas evangélicos. Esse grupo deu nova identidade ao fundamentalismo, depois se tornou mais ecumênico, com alianças pontuais e esporádicas com católicos e pentecostais. Os evangélicos deflagraram décadas depois um movimento que ficou conhecido como Missão Integral na América Latina (p. 25, grifos meus).
É claro que o autor pode ter pressuposto que seu público já possui o esclarecimento suficiente, o que lhe daria certa “licença” para iniciar sem muitos porquês disso ou daquilo; mas vamos em frente, que tem mais. Seu propósito nesse capítulo foi identificar as raízes do movimento de MI, pontuando as “conturbadas” relações entre sua vertente latino-americana e o mundo anglo-saxão, sobretudo norte-americano. E a hipótese que ele defende é a de que “os evangélicos do norte e posteriormente os evangelicais do sul nunca conseguiram realmente se desvencilhar de suas raízes” (p. 28), que, no caso, são as raízes fundamentalistas.

O festival de ambigüidades continua, quando, por exemplo, o autor afirma que o fundamentalismo (geralmente definido muito mais como um movimento) pareceu tornar-se uma “forte organização” nos idos da década de 1920. E mais, ainda diz que se pode estabelecer as origens do movimento evangélico desde essa década, a partir de um grupo de teólogos, que ele nomina (nos anos 1920?) como “neo-evangélicos”, que se viu na tarefa urgente de se distanciar da “intolerância e obscurantismo” fundamentalista. Estaria ele se referindo ao movimento teológico que ficou conhecido como “neo-ortodoxia”, representado por Barth, Brunner e Niebuhr, que tentou manter os pés fixados na ortodoxia bíblica, mas sem os excessos tanto do liberalismo como do fundamentalismo? Difícil de saber ao certo, graças às muitas lacunas deixadas no texto.

Mais a frente, ele afirma que, a despeito das tantas discriminações terminológicas existentes no protestantismo, outra começou a ser fomentada no Brasil: entre evangélicos (protestantes subdivididos em outros grupos, como os tradicionais, pentecostais, neopentecostais, etc.) e os evangelicais (teólogos e teóricos alinhados com a MI e com o Pacto de Lausanne). Só mais ao final do capítulo é que Gondim vai tentar explicar que o anglicismo “evangelical” é uma variação latino-americana e/ou brasileira do movimento que surgira nos EUA como uma derivação dos Grandes Despertamentos no século XIX, e que seria berço do fundamentalismo, mas sem a sua intolerância. Parafraseando Luiz Longuini Neto, todo fundamentalista seria um evangelical, mas nem todo evangelical um fundamentalista. Assim, conclui dizendo que esse termo se torna pujante ao se ser adotado como identificação daqueles “teóricos” da MI na América Latina.

(Continua...)

Jonathan

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Sobre o livro "Missão Integral", de Gondim (I)

Penso que uma das virtudes da liberdade de expressão (especialmente na web e na órbita dos blogueiros) é a possibilidade da publicidade do ato de pensar, avaliar e expressar pontos de vista, que são variados, e devem ser respeitados na sua variedade e diversidade. Tenho aqui publicado textos que tentam seguir essa tônica desde que iniciei esse blog. O "transgredir" do nome não implica em ferir pessoas, e sim mexer com as nossas idéias (a começar pelas minhas).
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Conheço e leio os textos de Ricardo Gondim há algum tempo. Sempre o admirei como escritor. Até publiquei textos seus em meu blog, em outras oportunidades. Assim, quero através desse e dos próximos posts, interagir criticamente com um de seus últimos livros, Missão integral: em busca de uma identidade evangélica (Fonte Editorial, 2010). Iniciarei falando um pouco sobre o próprio autor.
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Nascido em Fortaleza (CE), o pastor e escritor Ricardo Gondim poderá talvez entrar para os anais da história da igreja evangélica brasileira como sendo um pensador instigante e provocador, pregador eloqüente e apaixonado pela mensagem que anuncia, e um homem inquieto consigo mesmo e com a existência que pulsa a seu redor, e, talvez por isso, bastante controverso algumas vezes. Há alguns anos, por exemplo, criou polêmica ao declarar o término de seu envolvimento com o “mundo evangélico”, ao qual se dedicou por trinta anos . Há dez anos, porém, ele escreveu um livro cujo título era: Orgulho de ser evangélico (Ultimato, 2000), tentando responder à pergunta “Por que permanecer na igreja?”. Já no livro Missão Integral, objeto dessa resenha, esse autor também é descrito como “um dos principais líderes da Igreja Evangélica Brasileira atual”. Complicada a tarefa de entender com precisão o impasse (pelo menos nesse olhar dirigido à distância).
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Rupturas (ou não) à parte, não é de se estranhar que, ao longo de sua trajetória, Gondim tenha combinado uma variação de influências, tanto da teologia como de outros campos do saber. Por várias vezes afirmou que sua teologia é de raiz pentecostal. Ao mesmo tempo, é conhecido como um pensador assaz crítico das muitas facetas e idiossincrasias do protestantismo de face evangélica no Brasil. Por muitos anos, alinhou-se com o chamado movimento de Missão Integral (MI) na América Latina, participando ativamente como preletor de congressos, como o CBE 2 (Congresso Brasileiro de Evangelização 2), ocorrido em Belo Horizonte, MG, no ano de 2003.
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Mais recentemente, contudo, tem concentrado seus escritos em um antigo embate teológico – Providência Divina versus Liberdade Humana – que assume novos contornos, como o tecido na Teologia Relacional (TR), supostamente nominada ou criada pelo próprio Gondim, mas que possui ligeira semelhança com um movimento norte-americano chamado Teísmo Aberto, embora o autor tenha afirmado em alguns de seus textos não haver qualquer identificação dele com essa corrente.
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Isso é bastante questionável, já que ambas se esforçam por “liberar” Deus das amarras da visão calvinista de sua Soberania e a devoção cristã das contradições impensáveis do determinismo, defendendo, por exemplo, que Deus “se ausentou da história por amor” e que, por isso, não teria um papel direto nos acontecimentos, bons ou ruins, que seguem um plano autônomo das forças em jogo. Sucesso ou fracasso, morte ou livramento, não possuem sentidos que venham de Deus. Talvez em outra oportunidade eu possa pontuar outros olhares e críticas a essa teologia, tanto em assentimento quanto em discordância...

(Continua...)
Jonathan

terça-feira, 18 de maio de 2010

A arte de encorajar

"Apegue-se firmemente à mensagem fiel, da maneira como foi ensinada, para que seja capaz de encorajar outros pela sã doutrina e de refutar os que se opõem a ela" (Tito 1.9).

Por definição, “encorajar” é o ato de animar, estimular ou incutir coragem em... Como, a meu ver, essa atitude não pode ser entendida como parte natural dos relacionamentos nos dias de hoje, em que muitas vezes pensamos mais na auto-ajuda que na mútua-ajuda, quero abordá-la aqui como sendo uma arte.

Sim, uma arte, que só se aprende com muita disciplina, treinamento, sensibilidade e paciência, tal como deve ter um pintor, ao observar e pintar uma paisagem. É, sobretudo, uma disciplina interior, em que cultivamos a esperança para com a vida e a gratidão ao Deus da vida, somos movidos por sua força e orientados por seu amor, justiça e retidão. É uma arte que se aprende à medida que se luta contra as indisposições e variações de ânimo, que vêm do interior como resposta ao exterior, e tendem a fazer com que olhemos para o cotidiano e as dificuldades a ele inerentes como obstáculos ao próprio viver.

A pessoa encorajadora, assim, sabe muito bem e aceita o fato de que o viver não existe sem esses tais obstáculos, e são precisamente eles que lhe dão sabor e fazem dele um caminho para aprendizes audazes, que não temem a perda, o ultraje ou o sofrimento, visto que tudo já perderam e tudo já ganharam em Cristo. E é precisamente a fidelidade à mensagem de Cristo que pode nos transformar, de caminhantes sem rumo e perspectiva, em aprendizes legítimos da arte de viver pela coragem do Senhor e, desse modo, encorajar outros.

O mestre nos convida a nos matricular nessa escola, e, então, passar a treinar nossa capacidade de incutir ânimo e coragem em outros, sobretudo nos momentos em que batem o desânimo e a vontade de desistir. Portanto, só quem experimenta, interiormente, o poder da esperança e encorajamento que provêm de Cristo e de sua Palavra poderá ser capaz de consolar, animar e encorajar seu próximo.

Jonathan

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Um encontro entre dois mestres

Um encontro entre dois mestres. Nicodemos (um dos mestres da Lei), e Jesus (aquele que não veio revogar a Lei, mas cumpri-la e trazer a Graça).
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O primeiro, representando a antiga ordem, e o segundo, a “nova ordem” da aliança de Deus com seu povo. Ambos expressam pontos de vista bem diferentes sobre Deus, sua obra, seus milagres, a salvação, e o reino. A propósito, esse reino virá ou já veio? Como se pode vê-lo ou entrar nele? Essas são algumas das questões que permeiam esse enigmático diálogo.
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Jesus veio anunciar uma nova ordem de vida, que transcendia os meros costumes e tradições judaicas, uma ordem prevista pelos profetas, porém distorcida pelas expectativas e pressuposições da visão tendenciosa do sistema religioso vigente. E quais seriam então os esquemas componentes dessa nova ordem? Parece que o discurso de Jesus desordenou as idéias de Nicodemos, ao mesmo tempo em que provou sua ignorância a respeito de verdades espirituais que passavam longe da compreensão dos mestres de Israel. A palavra de ordem aqui parece ser regeneração (formar de novo). Mas regeneração de quê? Para quê? Não seriam os da casa de Israel os escolhidos, os legítimos portadores do passaporte vitalício para o reino dos céus? Falar de regeneração para um regenerado, só pode ser brincadeira...
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Mas não é! Esse encontro evoca muitas compreensões diferentes, dentre elas, a de que, como o mestre Nicodemos, podemos saber muito sobre a lei, conhecer "de cor e salteado" seus preceitos, e, ainda assim, estar bem distante da profundidade que ela reserva. Não seria esse um produto peculiar da religião?
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E o que este texto tem a dizer para nós hoje, pessoas “regeneradas” do povo de Deus? Como o parecer de Jesus pode encontrar ressonância num mundo repleto de outros Nicodemos, de religiosos de fachada, de gente que não quer saber de Deus ou que acredita que Ele pode estar em todas e quaisquer propostas ou caminhos de salvação existentes, não fora da Igreja, mas fora de Cristo?
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Quanto à pluralidade de propostas e caminhos (seculares ou religiosas) para “regeneração” do ser humano hoje, bem como ao patente fracasso do cristianismo em tantas instâncias, como diz John Stott, “não somos levados a concluir que o evangelho não é verdadeiro, mas, sim a examinarmos a nós mesmos e, conseqüentemente, a nos arrependermos e mudarmos de vida, adotando melhores formas de compartilhar as boas novas com os outros” (John Stott. Ouça o Espírito Ouça o Mundo, p. 334).

Jonathan

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Entrevista: "O jovem na liderança"

ENTREVISTA*
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Bom Líder - Você acredita que o jovem tem capacidade para liderar?
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Jonathan Menezes - É complicado se colocar na posição de líder quando ainda se é relativamente jovem. Lamentavelmente, ainda há uma certa desconfiança, tanto na igreja como na sociedade, em relação às capacidades e responsabilidades de um jovem, principalmente quando esse jovem torna-se um líder. Como diz uma canção da banda Charlie Brown Jr., “o jovem no Brasil nunca é levado a sério”. Muitas barreiras ainda precisam ser rompidas no sentido da eliminação desse tipo de preconceito. Porém, temos que reconhecer, há também no jovem uma postura de rebeldia em relação ao mundo que o rodeia. Existe um velho ditado que diz: “se conselho fosse bom ninguém daria, mas, sim, venderia”. Isso pode ser verdade tanto para jovens, como pra quem se acha “bom demais” pra receber qualquer conselho, ou que já tenha vivido o bastante pra não ter que aprender coisas novas com outras pessoas no meio do caminho.
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Bom Líder - Os conselhos e experiências de outras pessoas são importantes para quem está liderando. Será que os jovens não gostam de ouvir conselhos?
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Jonathan Menezes - Conheço pessoas assim, jovens que fazem disso – do desinteresse de ouvir conselhos – um lema de vida, e às vezes eu também me porto dessa maneira, querendo escutar apenas a mim mesmo, desconsiderando a palavra e conhecimento dos outros (“mais experientes”). A caminhada de um jovem líder cristão, em meio aos conflitos inerentes à juventude e aos dilemas de nosso tempo, porém, requer um pouco mais de humildade e clareza no trato com outras pessoas e com Deus. Não gostar de ouvir conselhos, não significa que eles não sejam importantes. Ouvir é uma habilidade tanto, ou mais importante, quanto o falar. Só falará com sabedoria o líder jovem, que antes, aprender a ouvir com atenção “os conselhos” que as pessoas e a própria vida que pulsa a seu redor lhes dão.
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Bom Líder - Um dos grandes desafios na liderança é a coerência entre discurso e prática. Como o jovem, em meio aos conflitos inerentes à juventude, deve lidar com isso?
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Jonathan Menezes - Não atente tanto para o que se diz, mas especialmente para o que se faz. Coerência não se evidencia só com o discurso, mas com ações que legitimam esse discurso. Todavia, vale ressaltar que cuidar da coerência não significa negar nossas idiossincrasias. A coerência na vida de um líder não é resultado de uma corrente determinista de ações programáticas marcadas por um preciosismo orgulhoso, mas é fruto da sensatez e honestidade de quem um dia já conheceu e reconheceu as incoerências de seu ser, sem negá-las, mas procurou aprender com elas. Planejar é preciso. Mas aceitar que nossos planejamentos não dão conta ou não abarcam a realidade, também, é uma qualidade (não resignação) a ser cultivada por jovens líderes que, desde já, desejam aprender a ser mais humanos.
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Bom Líder - Até porque não somos o tempo todo coerentes.
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Jonathan Menezes - Sem dúvida. Henri Nouwen escreveu que não há reação mais danosa à nossa juventude do que a tendência de sublimar ou tentar esconder o “outro lado”, o lado “obscuro” das coisas próprias de um jovem, de “queimar etapas” do amadurecimento, na tentativa de nos mostrarmos perfeitos aos outros, “mais espirituais”, sem defeitos e sacrossantos. A integridade, não o integrismo, deve ser a marca do amadurecimento para os jovens líderes de nosso tempo. Sem essa percepção do líder, desde a juventude, sobre si mesmo como sendo um ser humano decadente, o inevitável encontro com a Graça capacitadora de Deus nunca assumirá seu inseparável significado, tão pouco terá valor; nem será marcado por real compaixão o encontro com seus semelhantes, os quais, sem esse elemento essencial a qualquer líder (a compaixão), sempre serão vistos como simples subordinados, ao invés de parceiros no serviço ao Senhor.
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Bom Líder – A liderança também dita moda, e a moda agora é ser relevante e excelente. O que você diria para o jovem líder cristão que sofre pressão para liderar de maneira sempre espetacular?
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Jonathan Menezes - Diante das constantes tentações para que o jovem líder cristão seja esse indivíduo polivalente, que não pode de modo algum demonstrar suas vulnerabilidades, nem tampouco fracassar em qualquer empreendimento que possa tomar frente, eu diria que uma liderança transformadora requer o devido reconhecimento, especialmente diante dos liderados, de suas fraquezas e limitações, e do ensino primordial de que, para sermos santos e virtuosos, antes precisamos ser totalmente humanos, aprendendo a extrair dos paradoxos dessa nossa humanidade, a beleza da Graça que nos faz imagem e semelhança de Deus. Aprendendo com as experiências, caminhos e descaminhos vivenciados e percorridos por líderes que protagonizaram a história da fé cristã, diria que uma das posturas mais coerentes, para mim, na busca de uma identidade e santidade vocacional, é a de não ambicionar o status de ser marcante, posto que a verdadeira “diferença” não se encontra na tentativa pré-agendada de ser-estar “relevante”, “espetacular” ou “poderoso” perante a coletividade (o que inclui a igreja), mas de desempenhar um ministério moderado pela discrição, sensatez e pela simplicidade, preferindo viver à “sombra”, aos pés de Jesus, o nosso Senhor, que é quem genuinamente deve “aparecer” em nossa vida e ministério. Os louros, sucessos e até mesmo uma possível fama, por sua vez, caso apareçam, devem aparecer como fruto natural e despretensioso de um processo, e não como objetivos máximos da liderança. Do contrário, nada nos diferencia do mundo.
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* Entrevista publicada originalmente no site Bom Líder: http://migre.me/BhMj

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Estranha distância



Toda vez que escuto essa música de Stênio Marcius, “Senhor do tempo”, fico tremendamente tocado, e sempre me pergunto: por quê? E a resposta mais sincera que me vem ao coração é: porque, tal qual o filho pródigo mais velho, posso estar na casa do Pai, fazendo tudo do jeito mais correto, mas tão distante de um relacionamento vivo com Ele. Então, percebo que, de alguma maneira, preciso voltar...

Uma história de retorno do Evangelho de Lucas (não a dos Filhos Pródigos) me lembra isso. Em Lucas 24, os dois discípulos voltam pra casa, cabisbaixos, comentando os ocorridos, os fatos do momento. Aquela talvez tenha sido a maior frustração de suas vidas. Tente se imaginar no lugar deles. A esperança dos dois e de tantos outros, aparentemente, havia se esvaído e de uma forma cruel e vil, num madeiro, lugar dos malditos.

É como se tudo o que até então havia servido de alicerce desmoronasse. Isso já aconteceu com você? A sensação poderia ser descrita como a música da Maísa: “Meu mundo caiu!”

E é nesse momento que o próprio Jesus vem ao encontro deles. E o texto diz que eles não o puderam reconhecer, pois os olhos deles “estavam como que fechados” (24.16). Mas Cristo se põe a caminhar ao lado deles, como um estranho-presente. E o estranho faz perguntas, demonstra-se interessado no que se passava na vida deles naquele instante. Só que a percepção inicial é de que ele não passava de um caminhante qualquer, e muito esquisito por sinal, pois parecia ser o único em Jerusalém que demonstrara ignorância (proposital, no caso de Jesus) acerca dos fatos que haviam ocorrido...

Assim, a sensação é de que ele era mesmo um estranho; tão perto deles fisicamente, e ao mesmo tempo tão distante pra poder entender o que eles vinham sentindo. E não é assim que ele nos parece muitas vezes? Misterioso, estranho, às vezes calado, mas, ainda assim, presente! Ora, ele mesmo não prometeu que assim seria, quando disse que o Pai enviaria um “outro amigo”, o Espírito consolador, e que, desse modo, ele estaria com a gente até a consumação dos séculos? Precisamos agora aprender a reconhecer a presença de Jesus em sua ausência física.

Então, eu realmente preciso voltar... Voltar a enxergar o Jesus vivo, quando na mente tenho apenas o Jesus morto; voltar a sonhar os sonhos de Deus e ser encharcado por sua esperança, quando os fatos e circunstâncias da vida me aterrorizam ao ponto de me cegar e me paralisar; e, por fim, deixar que meu coração volte a arder por Jesus e pelo evangelho como um dia já ardeu, quando menino, por tantas vezes me emocionei com as histórias que minha avó me contava sobre o tremendo amor desse Jesus pelo mundo, e pela aliança que ele desejava fazer especialmente comigo.

“Que estranha distância agora... Senhor, lembra do menino que eu fui outrora... Deixa-me ver novamente o meu nome, escrito nas santas mãos do Senhor do tempo” [Stênio Marcius].

Voltemos ao primeiro amor...

Jonathan

quinta-feira, 15 de abril de 2010

O inevitável fardo da escolha

Nossa vida é feita de escolhas. Escolhas que fizeram para nós, e escolhas que nós fizemos e continuamos a fazer, diariamente, de diferentes modos e sobre diferentes instâncias da vida...

“Mas, eu não escolhi nascer”, diz alguém, sempre que precisa culpar outro alguém (no caso, seus pais) por quão miserável é a sua existência. É verdade, essa pessoa (que posso ser eu mesmo ou você) não escolheu nascer – eu já disse, há algumas escolhas às quais nos submetemos sem poder participar nem retrucar, e o nascimento é uma delas. Por conseguinte, pode-se dizer que também não escolhemos nosso sexo (nem o escolheram nossos pais; por mais que preferissem esse ou aquele de antemão, foi uma combinação genética e natural quem “escolheu” por nós), cor, etnia, lugar no qual nascemos, crescemos, nem nossa árvore genealógica, família, classe social, pátria (alguns incluiriam aqui até a opção sexual) e, no princípio, até mesmo o time de futebol e a religião...

Diante disso tudo, a consideração que nos resigna a uma impossibilidade de fazer escolhas iniciais está correta. Mas afinal, onde entra o meu poder de escolha?

No processo de nosso crescimento, desde a infância, pode parecer que não, mas nós fizemos escolhas. Por exemplo, fui eu quem, certa vez, escolheu levar minha irmã bem cedo pra fora de casa, em busca de nossa mãe, enquanto meu pai dormia... uma escolha que resultou em seu atropelamento. Por sua vez, foi ela quem escolheu resoluta a soltar de minha mão e correr independente pela rua até que o carro a atingisse. Por anos, pensei (e me culpei por assim pensar) que tudo foi em função de minha escolha, como irmão mais velho; mas envolveu a dela também... Por mais imaturas, infantis e até inconseqüentes, todos os que têm pulso de vida, inteligência e corpo, desde muito cedo, fazem escolhas, e usam-nos como bem entendem...

Eu posso até não ter escolhido nascer, mas não posso viver minha vida miserável, pra sempre culpando outros por sua miséria. Tenho de me perguntar: e depois de tudo, quem escolheu viver assim? Quem se limitou a esse modo de vida? É preciso coragem para assumir, e carregar seu próprio fardo.

Hoje, quando olho para trás, e vejo tanta coisa que poderia ter dado errado em minha vida simplesmente porque deram errado na vida de outros a meu redor, em função das escolhas que fizeram, percebo que um contorno invisível da graça divina sempre esteve ao meu lado e, mesmo sem que me desse conta, me auxiliou nas escolhas que me fizeram ser quem eu sou hoje. Devo isso às escolhas? Sim, sobretudo às escolhas que levaram Deus e suas palavras de benção em consideração. As erradas também me ajudaram de alguma forma, pelo menos a não errar mais do mesmo jeito...

O texto de Deuteronômio 30.15-20 é um bom exemplo desse exercício de liberdade de escolha que inerente e que desafia a cada pessoa: “Vê que proponho, hoje, a vida e o bem, a morte e o mal... os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a benção e a maldição”. Deus expõe diante de seu povo a possibilidade de escolha, todos os dias, por uma dessas realidades. A vida e a morte, segundo esse texto, são potencialidades inerentes às decisões que fazemos todos os dias, das perguntas que tocam nossa autoconsciência ética e espiritual: com esse ato, estou optando pela vida ou pela morte? Estou matando ou dando vida? Destruindo ou construindo? Pintando ou borrando o quadro?

Deus é bastante claro sobre quais são as suas preferências. Ele prefere que optemos por seguir seus caminhos, ouvir à sua voz, dar atenção à sua Palavra, porque estes são meios de vida e não de morte, de benção e não de maldição. E a dica que o próprio texto dá é, obviamente, um sinal ofertado pelo “Deus da vida”: “escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência” (Dt 31.19).

Escolher a vida nem sempre é o caminho mais fácil, nem o mais prazeroso; muitas vezes, é o mais custoso e árduo caminho, que envolve renúncia, fé, entrega, disposição para o aprendizado e "otras cositas mas"... E quem foi que disse que seria um “mar de rosas”? Escolhe a vida para que vivas! E hoje, o que vai ser?

Jonathan

domingo, 4 de abril de 2010

Falar de Deus

Esse assunto, que invariavelmente surge nas aulas que ministro aqui e acolá, fez-me lembrar de Paul Tillich, que em sua “Teologia Sistemática” se indagava sobre o que faz do teólogo um Teólogo, na acepção cristã da palavra. Parece uma questão tão banal e de óbvia implicação, mas não é. Pois se a tarefa do teólogo é “falar de Deus”, Tillich chega a conclusão de que qualquer um pode, até mesmo com alto nível de habilidade e competência, exercer essa função.
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Contudo, quem é o ser humano para “falar de Deus”? O que poderia o ser humano falar sobre Deus, sem que Deus antes o tivesse “permitido”? Aí saímos de Tillich, e vamos a Karl Barth (sei que alguns mais conservadores agora podem querer me condenar por conciliar dois “opositores” do mundo da teologia), que afirmou que “só Deus pode falar de Deus”. Por derivação, podemos dizer então que o que falamos de Deus é a partir daquilo que Ele mesmo já “falou” sobre Ele, isto é, através da revelação.
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Mas a revelação não é pura e simplesmente “palavra”, apreendida apenas pelo intelecto e traduzida na linguagem, aceita como conhecimento, e sem nenhuma relação com as outras dimensões do ser humano. Aí entra a espiritualidade, que é integral, na qualidade de relacionamento, mais do que a elaboração de conceitos; não se pode “falar de Deus” simplesmente, é preciso se relacionar com Ele.
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Assim, a teologia só pode ser frutífera – se mantivermos a perspectiva de uma relação com a espiritualidade cristã – se, e somente se, estiver acompanhada de e for alimentada por uma relação viva e intensa com o Senhor, com sua Palavra, e através da oração (que pode ser o próprio viver, mais que um mero rito). E, como consequência ou simultaneamente, me fazendo abrir janelas, a partir de meu próprio ser, para o outro, para me relacionar com ele(a) em amor.
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Daí sim, vamos e devemos “falar de Deus”, não mais ou apenas como fruto de mera especulação filosófica, mas como resultado de um desejo genuíno de contar para as pessoas e cantar para o mundo as maravilhas, beleza e graça do Senhor, e que se evidenciam (não como evidência factuais, mas relacionais) na vida do servo, como mensagem de esperança para os perdidos, e oportunidade de reencontro para os pródigos...

Jonathan

segunda-feira, 29 de março de 2010

Eu, um traídor?

Quando estavam comendo, reclinados à mesa, Jesus disse: “Digo-lhes que certamente um de vocês me trairá, alguém que está comendo comigo” (Marcos 14.18).
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Judas é uma figura que ficou cristalizada, aos olhos da maioria dos contadores dessa conhecida e controversa história, como sendo “o traidor” de Jesus.
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Primeiro, porque é assim que os autores dos quatro evangelhos o pintaram: como “o traidor”, “ganancioso”, “ladrão”, e aquele em quem o próprio “Satanás entrou...”. E quem haveria de ir contra ou, ao menos, questionaria a palavra dos evangelistas? Segundo, porque essa versão recebeu um “veredito” da história, e nós nos contentamos com ele, sem parar para pensar em outras implicações da narrativa em torno de Judas e dos demais discípulos.
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É claro que foi ele “quem o traiu”. É claro que Jesus sabia disso, e até anunciou por antecipação, sem dizer o nome. Não é claro, porém, que foi “por dinheiro”, pois embora Mateus relate dessa forma, os demais omitem tal informação, ou simplesmente dizem que as moedas que Judas recebeu foi em função do que ele fez, e não uma condição. Isso significa que, embora alguns dos evangelistas enfatizem a entrada de Satanás em Judas, as suas reais motivações permanecem ocultas aos olhos da história, que tem de se contentar com hipóteses, teorias, probabilidades, mas não certezas. E também está claro pelos relatos que, apesar de Judas ter sido visto como o “traidor oficial”, os demais também o abandonaram e o “traíram” de alguma forma.
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O que essa história tem a ver comigo e com você? Tudo. Primeiramente, porque os discípulos são arquétipos do ser humano e suas paixões, cheios de contradições, altos e baixos, dentro de um longo e custoso processo, tal como nós somos. Segundo, porque são discípulos, que foram escolhidos por Deus para uma caminhada de aprendizado e testemunho com e de Jesus Cristo; enquanto aprendem, testemunham, e enquanto testemunham, aprendem.
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O mais tocante é que, estando à mesa e “comendo com Jesus”, declarando-nos perdidamente apaixonados e fiéis a ele, somos capazes de traí-lo, ainda hoje, de diversas formas: negando-o, esquecendo-nos do que ele nos ensinou, afirmando com os lábios, mas com coração e vida vazios, tentando “negociar” o valor de sua Palavra, e viver por outros meios que não o de sua graça, e assim por diante. Sem perceber, reinventamos formas mais sutis de traição e hipocritamente continuamos “malhando Judas” (e outros irmãos), enquanto, na prática, podemos ser um reflexo do lado humano e pérfido de Judas e dos demais discípulos.
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Portanto, essa história, de certo modo já “cristalizada”, mas nem por isso esclarecida, de Judas e dos discípulos, me faz pensar nessa páscoa que, para ser fiel a Jesus no mundo de hoje, preciso também fazer um exercício diário de honestidade e me perguntar: quando, onde e como posso eu ser um potencial “traidor” de Jesus?

Jonathan

sexta-feira, 26 de março de 2010

Igreja: Alternativa do Espírito?

Recebi um email de um aluno, que me perguntava: É teologicamente correto dizer que a igreja é um tipo de sociedade alternativa? Eis minha resposta:

Sem dúvida, em minha compreensão isso não só está teologicamente “correto”, como historicamente tem marcado a vida da igreja, daquela que não se rende aos ditames do institucionalismo; sempre que ela resolve ser fiel ao seu chamado de sinalizar o reino no mundo, ela se constitui como uma “sociedade alternativa”, não no modo hippie “paz e amor” dos anos 70, ou no sentido de que seria uma “ilha” apartada do resto, onde podemos nos alienar do mundo, mas enquanto se mantém como ponto de esperança bem no meio do mundo.

Ali nossos conflitos não são diminuídos porque somos cristãos – como afirma essa versão mais sofisticada da teologia da prosperidade, anti-crise e sofrimento. Pelo contrário, eles aumentam, à medida que não vivemos de acordo com os termos do mundo e sim do reino, como o próprio Jesus advertiu aos discípulos (João 15), para que não se admirassem se o mundo os odiasse; é que eles não vivem segundo os meandros do mundo, nem os obedecem; se vivessem de acordo com tais termos, o mundo os amaria e os aprovaria. E, veja bem, tudo isso acontece porque estamos no mundo, porque Deus amou o mundo, e porque nos chama a proclamar a reconciliação em nossa vida no mundo.

Penso, assim, que a igreja deveria ser idealmente a alternativa do Espírito para os cansados, feridos oprimidos e sobrecarregados do mundo; ser agente profético de denúncia à corrupção e injustiça, sob que forma elas apareçam; ser agente de transformação integral. Por outro lado, sempre que a igreja deixa, por alguma razão, de exercer esse papel, o Espírito, inadvertidamente, não deixa de agir. Isso significa que o Espírito não é monopólio da igreja...

Não é Ele quem acompanha os movimentos (e patacoadas) da igreja, mas é exatamente o contrário, a igreja que, como comunidade dos carismas, deve acompanhar o sopro do Espírito, onde quer que ele esteja soprando, e ouvir a sua voz, ainda que não saiba dizer de onde vem e nem para onde vai (cf. Jo 3.8). Pois, no fim das contas, o que interessa não é tanto “para onde”, mas “com Quem” vamos. Vamos com o Espírito!

Jonathan