quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Arruinado, ferido e ainda assim, íntegro (III)

3. O que é complexo não pode ser tão simples

No pensamento de quem está seguro, há desprezo para o infortúnio, um empurrão para aquele cujos pés já vacilam (Jó 12.5).

Há quase vinte anos, o já falecido escritor holandês Henri Nouwen, autor de vários livros sobre espiritualidade, muitos deles retratando o sofrimento humano e, mais particularmente, a si mesmo como um homem experimentado no sofrimento, defendeu uma idéia, que aparece em alguns de seus livros, de que em nosso mundo a alegria e a tristeza são vistas como duas realidades em oposição. “De fato”, afirma ele, “a sociedade contemporânea faz todo o possível para separar a tristeza e a alegria”. Por esta razão, conclui, “a tristeza e a dor devem ser evitadas a todo custo, porque são o oposto da alegria e do contentamento que desejamos” (1).

Cada vez que observo o comportamento humano (incluso a mim mesmo) frente ao sofrimento, mais me convenço do quanto Nouwen estava duplamente certo. Primeiro, em afirmar que nossas experiências pessoais com a dor tendem a nos distanciar da admissão de uma (possível) coexistência com experiências de contentamento rejeitando, assim, o caminho do aprendizado da integridade cristã, como vemos em Paulo: “Aprendi a viver contente em toda e qualquer situação” (Fp 4.11). Segundo, ao defender que a alegria divina não elimina o divino pesar, e de que em Cristo vemos o homem de todas as dores e, ao mesmo tempo, da total alegria. Embora esta possa parecer uma perspectiva por demais idealizada e, de certo modo, distante da realidade não só do que desejamos em termos de “vida feliz”, como do tipo de vida que cremos sermos capaz de sustentar, ainda assim me parece a mais coerente com o caminho de Jesus, que está em evidente contraste com a visão mundana – e paradoxalmente, até com a visão cristã (parte dela).

Mesmo se tratando de um objeto de alta complexidade, a visão religiosa tende a sublimar as experiências de sofrimento ao apresentar respostas para aquilo que nem mesmo Deus quis dar maiores explicações – pelo menos não de modo tão simplista – e ofertando alívios esporádicos, genéricos e ineficazes à dor. No meio disso tudo, Deus se torna moeda de barganha e solução para todos os males, desde que se tome corretamente o caminho da cura mais próximo de você. Vejamos um exemplo disso outra vez em um diálogo entre e Jó e seus “amigos”.

Assumindo que o problema de Jó advinha da iniqüidade que ele recusava a admitir que havia cometido, Zofar oferece a seguinte solução, quase como uma formula mágica de cura e esquecimento do sofrimento:

Se dispuseres o coração e estenderes as mãos para Deus; se lançares para longe a iniqüidade da tua mão e não permitires habitar na tua tenda a injustiça, então, levantarás o rosto sem mácula, estarás seguro e não temerás. Pois te esquecerás dos teus sofrimentos e deles só terá lembrança como as águas que passaram (11.13-16).

Em sua defesa, nosso anti-herói, Jó, tenta demonstrar como as palavras de quem se encontra em lugar seguro podem ser repetições vãs e vazias de sentido, insensíveis, ausentes de solidariedade e desonestas para com quem vivencia na pele a condição retratada:

Como vós o sabeis, também eu o sei; não vos sou inferior. Mas falarei ao Todo-Poderoso, e quero defender-me perante Deus. Vós, porém, besuntais a verdade com mentiras e vós todos sois médicos que não valem nada. Tomara vos calásseis de todo, que isso seria a vossa sabedoria (...) As vossas máximas são como provérbios de cinza, os vossos baluartes, baluartes de barro (13, 4-5, 12).

Na teologia dos amigos de Jó não há lugar para o paradoxo. Segundo suas formulações, tudo na vida praticamente ocorre segundo a lógica de causa-efeito (2); se está sofrendo, certamente é porque pecou; se o mal dura mais que o suportável e aceitável, na certa é provação divina, ou é porque a sua fé em Deus deve estar naufragando e você tem orado e jejuado pouco, só pode ser; se deseja fazer passar a dor que não cessa, deve buscar a Deus com todo fervor, abandonar o caminho de pecado, e logo tudo estará resolvido. Para piorar, Elifaz ainda acusa Jó de fazer pouco caso das “consolações de Deus” (de Deus, ora essa!) e das “suaves palavras” a ele dirigidas (15.11). Percebe-se que os amigos estavam ali como emissários do Altíssimo para consolar Jó, ocupando, assim, um grau mais elevado que ele numa dada escala da humanidade – daí tantas vezes Jó insistir em não ser em nada “inferior” a eles.

Notas
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1 NOUWEN, Henri. Mosaicos do presente. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 33.
2 Caio Fábio batizou a teologia dos amigos de Jó de "teologia moral de causa-efeito". Para maiores esclarecimentos e aprofundamento, ver: FÁBIO, Caio. O enigma da graça. São Paulo: Fonte Editorial, 2002.
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(Continua...)

Jonathan

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