domingo, 12 de outubro de 2008

Semanal de Amsterdam (VI): Os leitores ordinários

1.
Começo dizendo que esse título ("leitores ordinários") não é uma ofensa aos leitores desse blog. É a melhor tradução que encontrei para a expressão em inglês “ordinary readers”, que designa os leitores comuns, simples, da Bíblia. Depois de seis semanas, meu repertório sobre Amsterdam está acabando. Talvez precise sair e ver mais coisas, o que certamente acontecerá. De qualquer forma, a cada semana é um prazer sentar aqui e “conversar” um pouquinho com vocês sobre o que tem se passado comigo aqui. E esse foi um dos conceitos, como diz meu irmão de caminhada Marco Antônio, que “bateu e ficou”. Já retorno a ele e quero explicar por que. Antes, quero falar um pouco do sentimento e da “posição” de teólogo.
2.
Uma das conseqüências primárias de se tornar parte do mundo da teologia é começar a fazer distinções, que na maioria das vezes têm a ver com capacidades ou habilidades (ou a ausência de ambas) para realizar essa ou aquela tarefa. Refiro-me ao campo eclesiástico, e a diferenciação entre sacerdotes e leigos e as muitas capilaridades que envolvem esses dois grupos. Entre eles (e muitas vezes “acima”) está o teólogo ou a teologia. O teólogo, dentro dessa categorização, é aquele douto no ramo da teologia, que nem sempre é um sacerdote, mas dificilmente gostaria de ser lotado entre os simples leigos. Isso me faz lembrar a clássica pirâmide social medieval: no topo estão os oratores (clero), em seguida vêm os belatores (nobreza), e por fim aparecem os laboratores (os servos). Somos, assim, herdeiros dessa estrutura piramidal que valoriza e exalta a hierarquia. Quem não respeita a hierarquia num país como o Brasil, por exemplo, pode estar fadado a ouvir a famosa expressão: “Você sabe com quem está falando?”, que quer deixar bem claro os “lugares” ocupados por cada um.
3.
É claro que o mundo tem avançado em direção à subversão desse modelo, inclusive o mundo eclesiástico. Mas avanço ou retrocesso são palavras relativas ao contexto. Nos anos 70 a teologia da libertação, inspirada pela reforma no Vaticano II, veio com uma proposta “diferente” através de sua teologia e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que procurava abolir esse abismo entre sacerdotes, teólogos e leigos. Logo, numa CEB todos são leigos e todos são sacerdotes (no sentido bíblico), ao mesmo tempo em que todos são teólogos. Certamente essa foi uma expressão prática e um avanço rumo a uma maior igualdade. Mas a pergunta que não quer calar é: como nós, teólogos, lidamos de fato com as “exegeses” espontâneas dos “ordinary readers”? Em outras palavras, como um exegeta, que pretende revelar através de técnicas acadêmicas os sentidos de um texto, pode lidar com interpretações de leitores para os quais a Bíblia não é um objeto de estudo profundo, mas apenas o “kerigma”, a revelação e proclamação da Palavra Divina?
4.
Uma das posturas acadêmicas contemporâneas (a literária) tem postulado que os sentidos não são dados, mas são construídos. Logo, pode haver tantos sentidos quanto são os leitores. Aqueles teólogos que se vêm como “árbitros do significado” rebaterão contra essa postura e contra a multiplicidade dos significados que brota das muitas leituras da Bíblia, a maioria delas procedida por leitores comuns, que constroem suas interpretações espontaneamente. Mas quem foi que outorgou a nós teólogos o direito de arbitrar sobre verdadeiros ou falsos significados? Quem nos colocou no posto de paladinos da verdade absoluta? Essa experiência de “leitura intercultural” aqui em Amsterdam tem reforçado minha visão de que não há interpretação inválida, há apenas interpretações diferentes e que precisam ser respeitadas em sua singularidade, quer concordemos com elas ou não. E isso reforça ainda a percepção de que todos precisamos ser teólogos, à medida que aceitamos seriamente esse duplo desafio de viver e pensar a nossa experiência de fé à luz da revelação de Deus, que se expressa não apenas no verbo, mas em sua contínua encarnação. Isso deve nos desafiar ainda a repensar a maneira como muitas vezes discernimos nosso lugar no Reino de Deus e aceitamos nosso chamado.
5.
O texto de 1Coríntios 1.26-31 nos convida a olhar e repensar isso. Ei-lo na tradução “The Message” (Eugene Peterson): “Take a good look, friends, at who you were when you got called into this life. I don't see many of "the brightest and the best" among you, not many influential, not many from high-society families. Isn't it obvious that God deliberately chose men and women that the culture overlooks and exploits and abuses, chose these "nobodies" to expose the hollow pretensions of the "somebodies"? That makes it quite clear that none of you can get by with blowing your own horn before God. Everything that we have—right thinking and right living, a clean slate and a fresh start—comes from God by way of Jesus Christ. That's why we have the saying, "If you're going to blow a horn, blow a trumpet for God”.
No amor e temor de Cristo.

Jonathan

Foto: "Púlpito" (Igreja San Nicolás, Amsterdam)

2 comentários:

tatiana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Oi, Jonathan. Fiquei um tempão sem acessar a net, estou correndo atrás dos textos não lidos. Devo dizer que hoje sou 'mais ninguém' do que era naquele momento que marquei como de 'conversão' - talvez, inconscientemente, tenha aceito a premissa de que é necessário eu diminuir para que Ele cresça. Seja como for, continuo um pecador mais dependente, ou mais conhecedor da minha dependência de Deus. Será que importa tanto se eu sou o mesmo ou não? Mas tenho certeza de que Ele é sempre o mesmo, e sempre será o mesmo - em mim, por mim, em nós, por nós, para a Sua glória.
Marco Antonio