Às vezes tenho a impressão de que a religião, que, a meu ver, deveria ser a amiga número 1 da dúvida, tornou-se sua pior e mais cruel inimiga. Porque a religião lida diretamente com a fé das pessoas, e, embora nem sempre pertencer a uma religião seja garantia de uma fé viva (muitas vezes é exatamente o oposto), em tese, ela se nutre e cresce a partir da fé pessoal e coletiva. Especialmente em contextos fundamentalistas, em que se exige uma responsividade segura do fiel em relação à espécie de doutrina na qual professa crer, e em que, como contrapartida, oferece-se a revelação da verdade bíblica e uma promessa ao fiel de que, nesta vida ou pelo menos na eternidade, todo o seu sofrimento será eliminado, a fé aparece como arquiinimiga da dúvida, e duvidar passa a ser sinônimo de blasfemar, apostatar da fé.
Peter Rollins em seu livro Insurrection (2011), tem como foco de análise a questão da dúvida. No capítulo 2, ele fala sobre a experiência dos líderes na igreja com a dúvida. Numa situação ideal, para que como igreja participemos da crucificação, ele defende que precisamos de líderes que experienciem pública e abertamente “a dúvida, a incerteza e o profundo mistério, líderes que as vejam como parte da fé cristã e importante para o contínuo desenvolvimento de uma espiritualidade sadia e propriamente cristã” (p. 65). Concordo com Rollins quando ele também observa que não é que não existam líderes que experimentem estas coisas; o problema reside em encontrar líderes que admitam experimentá-las – ainda que, secretamente, muitas vezes, enfrentem momentos de incredulidade, ou pior: enquanto exteriormente lutam para manter uma imagem austera de fé, interiormente já deixaram de acreditar nas coisas que pregam. Nas palavras do autor:
Todos sabem que a maioria dos pastores tem duvida e, de tempos em tempos, experimenta um sentimento de ausência divina, e sabe-se que normalmente é bem mais que isso. Também é evidente que eles frequentemente sentem-se impedidos de expressar isso por meios públicos quaisquer – exceto em casos em que adotam uma linha segura de afirmação de que Deus é grande o bastante para conter a dúvida (...). Nas raras ocasiões em que o pastor se levanta e declara abraçar o desconhecido, uma crise entre os congregantes pode ocorrer. Não porque a congregação agora duvida, mas porque a fé do pastor gerou uma barreira psicológica protetora que conteve a dúvida deles. (...) Apenas quando o pastor bane a dúvida ou é substituído por alguém que possa ocupar o papel crente-em-nome-de-nós, a igreja pode outra vez agir como um cobertor de segurança metafísica, prevenindo-nos de experimentar a ansiedade de nossa existência (p. 66).
Esse quadro é muito triste e adoecedor para ambas as partes, pastor e congregação. No entanto, quando lemos as Escrituras de modo sério e abrangente, e não simplesmente procurando justificativas furtivas em versículos aleatórios, percebe-se que o oposto pode ser dito e feito em relação à dúvida. A maior parte dos chamados “heróis da fé” teve dúvidas, e, em algum momento, cometeu deslizes tomando “os pés pelas mãos”. A lista de Hebreus 11 é emblemática. Abraão, que há muito é referendado como “pai da fé”, por exemplo, em Hebreus aparece como aquele que, pela fé, deixou sua terra e sua parentela para mudar-se ao lugar destinado por Deus e creu, mesmo diante de sua escassa vitalidade e da esterilidade de Sara, na promessa de que sua descendência seria tão numerosa quanto às estrelas do céu e incontável como a areia do mar (cf. Hb 11.11-12). No entanto, conhecemos a estória de Abraão e Sara, facilmente nos recordamos que Abraão, mesmo tendo crido na promessa, não titubeou quando Sara, sentindo-se culpada por ser estéril e não ter-lhe dado filhos, ofereceu sua escrava, Hagar, para que seu marido a possuísse e a engravidasse, e desta união nasceu Ismael, filho da descrença de Abraão, por assim dizer (Gn 16). Isso sem falar que Sara riu da ironia da promessa original, externando sua dúvida: “Poderei realmente dar à luz, agora que sou idosa”? (Gn 18.13), e depois ainda mentiu sobre ter rido.
Com estórias como a de Abraão e Sara, aprendo que promessas não são garantias divinas para a manutenção da fé, e sim fruto do relacionamento entre o ser humano e Deus gerado e gerido em fé. Porém, se tratamos as promessas divinas como um elemento gregário, isto é, como sendo a fonte originária do ato de caminhar na e pela fé, logo elas se tornarão não um telos pelo qual a fé se norteia, mas objetos de veneração e obsessão, ou mesmo moedas de troca que justificam a fé. Abraão não creu na promessa pela promessa em si, mas pela fidelidade do Senhor, que é quem promete. Logo, a vida pela fé não encontra sua razão de ser nas promessas, mas na pessoa do próprio Deus.
Mas não percamos nosso foco aqui, que é a questão da dúvida. Vimos que Abraão e Sara duvidaram, mesmo estando na fé. Se for verdade, como se diz em Hebreus, que “sem fé é impossível agradar a Deus, pois quem dele se aproxima precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam” (11.6), também é verdade, conforme o mesmo texto, que esta fé “é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (11.1); ou, na tradução A Mensagem (na versão em inglês), a fé é o firme fundamento sob o qual estão todas as coisas que fazem a vida valer à pena, e “nosso controle sobre o que não podemos ver”. Que controle se pode ter sobre o que não se pode ver, ou sobre o que não é materializável? É claro que aqui a linguagem é paradoxal. O que o autor de Hebreus está dizendo, a meu ver, é que a fé é a única e real certeza que subsiste em meios às incertezas da vida. Posso estar convicto de minha fé mesmo quando tudo, até mesmo a própria fé, parece estremecer. A fé faz-se chão onde já não se pode encontrar mais chão; é o que dá sentido a um caminhar numa estrada perdida e sem rumos definidos. Mas este sustento, esteio, chão e certeza residem não numa suposta força que emana de nós mesmos, ela misteriosamente é suprida pelo Espírito de Deus.
Dessa forma é que retornamos ao paradoxo, e por isso digo que a fé deve aprender a conviver com a dúvida: porque ao mesmo tempo em que as dúvidas e questionamentos, e a angústia daí proveniente, podem-nos fazer passar pelo vale do ceticismo e das incertezas, são elas que nos movem outra vez em direção a Deus, nos levam a interpelá-lo em oração, a escancarar diante dele nosso eu ferido e fragilizado; elas nos conduzem ao lugar em que a expressão de súplica, lamento e confiança podem bailar juntas numa única e expressiva dança que é a dança da vida, e a sair dali com uma fé mais madura. Por isso é que, demasiadamente humano, identifico-me com o salmista, que orou dizendo: “Até quando, Senhor? Para sempre te esquecerás de mim? Até quando esconderás de mim o teu rosto? Até quando terei inquietações e tristeza no coração dia após dia? Até quando o meu inimigo triunfará sobre mim?”, e, na mesma oração, declarou: “Eu, porém, confio em teu amor; o meu coração exulta em tua salvação” (Sl 13.1-2,5). Também me uno ao pai do menino possuído por um espírito que o impedia de falar, que, diante da exclamação de Jesus de que “tudo é possível ao que crê”, respondeu: “Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade” (Mc 9.23,24).
Fé e incredulidade são como o joio e o trigo: no mesmo lugar em que uma brota, há a possibilidade da outra crescer; e se tentarmos extirpar uma em detrimento da outra, a incredulidade em detrimento da fé, se tentarmos separá-las abruptamente porque em nossa teologia é inconcebível um espaço em que ambas possam juntas gravitar, pode ser que joguemos fora também o precioso junto com o que entendemos ser vil, e a fé seja cortada antes mesmo que seu fruto cresça, amadureça e apareça. Como afirma Peter Rollins em tom de celebração: “Acreditar é humano; duvidar, divino”.
Jonathan