terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A miséria da busca pela felicidade (1)

misery-loves-company

A chave para a felicidade e o antídoto da miséria é manter viva a esperança de ficar feliz.

(Zygmunt Bauman)

Dentre todas as buscas e ambições humanas, a que tem a felicidade como alvo é talvez a mais comum; e é também um dos mais remotos anseios. Os antigos (filósofos, poetas e oráculos) se ocuparam em responder questões como “O que é a felicidade”, ou “O que é preciso para ser feliz”? Uma diferença básica é que, nos dias atuais, o conceito ou a definição de felicidade parece menos importante que o “ser feliz” em si ou o anelo, a busca e “a esperança de ficar feliz”, como diz Bauman na epígrafe acima.

Neste ponto, aliás, parece se encontrar a tese e principal descoberta deste sociólogo em seu livro A arte da vida. Em suas palavras:

Não sendo possível atingir um estado seguro de felicidade, só a busca desse alvo teimosamente esquivo é que pode manter felizes (ainda que moderadamente) os corredores. Nas pista que leva à felicidade, não existe linha de chegada.[1]

Para Bauman, portanto, na era pós-moderna (ou, como ele prefere, líquido-moderna) o “estado” de felicidade foi substituído pela “busca” (sem fim) pela felicidade. O permanente anseio e a expectativa de vir-a-ser é que consola (ou distrai) o desespero de ainda não ter alcançado, ou quem sabe ter experimentado somente de relance, por um momento fugidio, essa tal de felicidade.

Na busca, porém, impõe-se um “ideal de felicidade” – que varia de pessoa, caso e circunstância – de onde provém parte da substância dos conceitos. E é impressionante o quanto nossos ideais humanos de felicidade são:

  1. Efêmeros: fundam-se nas vaidades relacionadas ao prazer e ao bem-estar – saúde, bens, status, poder, fama, glória. Tem uma estrutura frágil, portanto, porque sempre de passagem.
  2. Sensualistas: são baseados nas sensações, nos desejos e nas condições que nos permitem experimentar somente o prazer na vida. Felicidade, aqui, é igual a prazer e alegria sempre e dor nunca.
  3. Individualistas: concentram-se no suprimento do “eu” e no suposto “direito” que cada indivíduo tem de ser feliz. O mundo e os outros são meios, muitas vezes descartáveis: servem-me desde que (e enquanto) me façam feliz.

Ao me deparar com estes (intercambiáveis) ideais e tentando relacioná-los com uma ética cristã, pergunto se o cristianismo é um caminho para a felicidade ou uma antítese da felicidade nestes moldes? Com qual felicidade é possível identificá-lo (se é possível)?

Para responder a tais indagações, gostaria de propor, nos próximos posts, três associações (cristãs) básicas da felicidade: com a realidade, com o outro e com Cristo.

Jonathan

Notas


[1] BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 17. Grifo do autor.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Sobre a religião e seus derivados (II)

hipocrisia-religião

Quando profetas como Amós, por exemplo, criticam os cultos, encontros religiosos, ritos e formas de se “achegar a Deus”, o que afinal ele está criticando? Ele está denunciando a forma de religião predominante em Israel, sem entrar no mérito de dizer “toda religião”, ou “a religião”. Talvez uma coisa que esteja faltando às nossas genéricas classificações é “dar nome aos bois”. E isto Amós faz. Observem o seguinte trecho (na tradução “A Mensagem”, de Eugene Peterson):

Não suporto os encontros religiosos de vocês. Estou cheio dos seus congressos e convenções. Não me interessam seus projetos religiosos, seus lemas e alvos presunçosos. Estou enojado das suas estratégias para levantar fundos, das suas táticas de relações públicas e criação da própria imagem. Não suporto mais sua barulhenta música de culto ao ego. Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim? Alguém aí sabe o que eu quero? Eu quero justiça – um mar de justiça. Eu quero integridade – rios de integridade. É isso que eu quero. Isso é tudo que eu quero (Am 5.21-24 – Grifos meus).

A religião criticada por Amós é covarde e superficial, porque marginaliza o que realmente importa e põe no centro o trivial e menos relevante. Confunde retidão com justiça própria e santidade com abstinência; faz dos sacrifícios e rituais o último bastião da espiritualidade, dissociando-a completamente da vida, da misericórdia e da sede por justiça. Afirma uma sede incontrolável por Deus e seus mandamentos, mas é incapaz de reconhecê-lo no próximo, no diferente, no samaritano à beira do caminho.

Daí, muitos desses encontros, congressos, convenções e projetos religiosos aos quais se refere o profeta, terem se tornado, para Deus, um negócio insuportável e indigno de atenção. Mais “culto ao ego” que outra coisa. Daí a pergunta: “Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim?”. E o que é viver e cantar “para Deus”?

É anelar por Deus com todo o nosso ser; é deixar ser movido e tocado pelas coisas que mobilizam o coração de Deus (o que sabemos por meio da Palavra); é desejar ardentemente que sua vontade seja feita tanto aqui na terra, como no céu; é lutar para que a justiça corra como rio que não seca; é buscar viver em integridade e afastar ao máximo do nosso caminho a hipocrisia. Mas, como? E seria isto outra forma de religião? Não sei, talvez, quem sabe. Linguagem, tudo passa por ela.

Não é novidade para ninguém que muitos sistemas religiosos se alimentam da hipocrisia e não subsistem sem ela. Muitas igrejas têm sido – até que provem a si mesmas e ao mundo o contrário – ao invés de centros de misericórdia e compaixão e comunidades de reino, covis de hipocrisia, onde o livre pensar é reprimido (sobretudo em assuntos como sexualidade, por exemplo), e o discordar (mais ainda da liderança e da orientação doutrinária) é tratado como pecado. Exceções à regra (os remanescentes) existem, é claro, mas com a sina de ter que “nadar contra a maré”, caso não (ou até que) se deixem corromper pelo “se não pode vencê-los, junte-se a eles”.

A hipocrisia vai, dessa forma, recebendo outros nomes, e vai sendo ornamentada com vestes outras, mais sofisticadas quem sabe (embora não menos vorazes) e se torna peça indispensável ao bom funcionamento da engrenagem, mascarada pelo discurso de que assim estaremos “no centro da vontade de Deus”. Como corolário disso e de outras tendências já bastante enraizadas, como a privatização da espiritualidade e a religião de consumo, as pessoas vão à igreja apenas para nutrir o lado “lúdico” da fé, que congrega e agrega a massa dos que querem distância do conflito e que relega aos ditos apóstatas, hereges e perdidos o lado trágico (e sombrio) da existência.

A hipocrisia tenta eliminar o sofrimento a todo custo e promover uma espécie de narcótico gospel como sustentáculo para uma fé “que funciona”. Uma fé que desconhece a compaixão, porque só age para aliviar a dor; que tem desconfiança em relação ao mistério, ao desconhecido e às incertezas; que pensa que testemunhar é igual a fazer propaganda de sua fé, e se distancia da prática da justiça por estar tão ofuscada com as celebrações e homenagens, públicas e privadas, ao “seu Deus” – o “meu Deus isso”, o “meu Deus aquilo”.

Essa fé é substrato da hipocrisia. Irracional e inconscientemente, muitas vezes, ela canta: “Hipocrisia, eu quero (eu preciso de) uma pra viver!”. Nos lugares onde ela é vivida, as palavras de Jesus – “Acautelai-vos do fermento dos fariseus!” – ecoam como gritos em uma terra de surdos.

Porque acautelar-se, talvez, implique em passar pela via da admissão honesta de que, no fundo, todos (digo, os que nos servimos do sistema religiosos, ou os que se encontram, como eu, em processo de libertação de suas entranhas) somos um pouco como os fariseus ou hipócritas – o que seria um total absurdo e falta de espiritualidade, para muitos. Se toda mulher é meio Leila Diniz, como diz a canção “Todas as mulheres” de Rita Lee, então (digo isso contra meu melhor senso) todo crente é meio hipócrita e, por natureza, religioso (no sentido que Amós abomina), até que prove o contrário lutando contra tal orientação.

Jonathan

(Imagem extraída de: http://uma-verdade-inconveniente.tumblr.com/)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Sobre a religião e seus derivados (I)

Religião que seguem
No atual momento, vemos tomar corpo um movimento de pessoas que se dizem apaixonadas por Jesus, mas que não gostam mais da igreja, detestam as instituições em geral, e desenvolveram uma ojeriza pelo que chamam de “religião” – a meu ver, a religião institucionalizada. Estes estariam dentro dos 7,9% da pesquisa acima exposta. O mote de sua trajetória está no slogan: “Mais Jesus e menos religião”. O problema é que, nesse meio termo, apareceram outros apresentando outra visão de religião, mais positiva talvez, alegando que a religião faz parte da história humana desde sempre e tem oferecido contribuições importantes a ela. Em outras palavras, por mais que critiquemos a religião, não vivemos sem ela. Nesta discussão pouco criteriosa, termos como religião, religiosidade e espiritualidade acabam sendo utilizados de modo intercambiável, como se um fosse ou pudesse ser sinônimo para outro. E a confusão se vê armada. Podemos desatar este nó?

Em primeiro lugar, a discussão sobre as terminologias (religião, religiosidade, espiritualidade, etc.) é in-termi-nável. Todas são palavras polissêmicas, se considerarmos o diálogo interdisciplinar, ou mesmo o senso comum. Em segundo lugar, esse movimento (por um cristianismo não-religioso) não é novo. Já vimos isso no século XX, através de Karl Barth, e mais fortemente na teologia de Dietrich Bonhoeffer, na teologia secular (Cox) e da morte de Deus (Robinson e Cia), dentre outros.

A diferença para o que tenho visto atualmente é que esses últimos me parecem ter sido mais intencionais, proposicionais e consistentes (quer se concorde com eles ou não) no sentido de formular respostas relevantes aos problemas e movimentos de seu tempo, e não um flash mob de descontentes, como parece se apresentar grande parte do movimento atual. É preciso conferir mais coerência e conteúdo aos nossos descontentamentos.

No que diz respeito às terminologias, Tillich, por exemplo, falando sobre a clássica diferenciação entre religião e revelação em sua Teologia Sistemática, afirma que toda revelação pressupõe um receptor. E, considerando não haver receptor “puro” (isto é, livre da influência de sua cultura e da ideologia), e consequentemente nenhuma forma de fé, interpretação ou verdade universalmente válida, a recepção em si já é uma religião. Assim, o que Tillich chama de “religião” seria o processo de recepção e, por conseguinte, de significação da revelação. Nesta acepção, não há revelação sem religião e todos os que vivem conforme a revelação de Deus poderiam ser considerados religiosos.

Então, para começo de conversa, precisamos tentar entender qual religião esse movimento atual quer de menos, e qual Jesus ele quer de mais, para poder avançar no debate, não acham? Arriscar-me-ei, então, no próximo post a expor algumas impressões mais particulares sobre o tema. 

Jonathan

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A inquietude nossa de cada dia, dá-me hoje

wondering 2

“Por que estás abatida, ó minha alma? E por que te agitas dentro de mim?”.

Existe conversa mais crucial que aquela travada com a própria alma? Pois é o que o salmista faz no repetido verso da canção de profunda angústia e inquietação por ele entoada no Salmo 42, na qual convida sua alma para um bate-papo querendo entender a razão de tanto abatimento. Uma das coisas mais sadias e razoáveis que alguém pode fazer quando não dá conta de algo é ser honesto, consigo mesmo, com os outros e com Deus. No caso do salmista, essa honestidade se apresenta em forma de perguntas: Por que me sinto tão abatido? Até quando essa situação vai perdurar? Onde está o meu Deus? Por que permanece calado por tanto tempo?

Perguntas como essas evidenciam dúvidas e temores que assolam até o mais seguro de si – embora gente muito segura de si tenda a não abrir mão de sua fachada de austeridade – e cujas respostas não são simples nem exatas. Aliás, em se tratando da vida e do sofrimento humano nada pode ser simples ou exato. Por isso a linguagem dos trovadores e profetas é recheada de honestidade, paradoxos e de bela, ilógica e não equacionável poesia. A inquietude, quando não abafada com consolos artificiais, atrai e torna-se parceira dos paradoxos. O paradoxo pode até existir fora da mente, mas não pode ser reconhecido sem que (na mente) se dê lugar à inquietude, a qual provoca o pensamento que nos desperta quando algo não vai bem e nem, necessariamente, irá ficar bem – ao menos não do jeito desejado, tampouco com falsas garantias, do tipo: “Basta acreditar, que tudo vai dar certo!”.

O enfrentamento do paradoxo, por sua vez, promove, na linguagem do poeta, o que chamo aqui de aceitação inquieta – a aceitação que não se confunde com mera rendição. Ou seja, aceitar uma determinada condição não implica em se render ou se resignar a ela. Por exemplo: reconhecer e aceitar que a política no Brasil é permeada por corrupção não implica em se render à falácia de que todo mundo que nela se envolve é ou fatalmente será um corrupto, ou que nada pode ser feito a respeito da corrupção. Ademais, a realidade não se reduz ao que vemos. O que se vê é apenas uma parte do real, tanto quanto o olhar em si é parcial. Como bem disse Paulo, “agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho...” (1Co 13.12).

Assim, aceitação inquieta é aquela que indica a presença de uma fé que não banaliza nem suprime a realidade tal como a vemos ao mesmo tempo em que afirma (mesmo que relutando) a possibilidade e a imperiosidade de sua transformação. Por esta razão, a linguagem dos salmos – tão recheada de seus “por que” e “até quando” – também vem temperada com seus “contudo”, “apesar de” e “ainda que”, denotando fé na presença, persistência e fidelidade divinas em meio às mais variadas circunstâncias.

O silêncio (e aparente ausência) de Deus não é sinal de indolência ou paralisia da parte Dele, assim como minhas eventuais dúvidas, reclames e inquietações também não são sinais da falta ou morte da fé em mim. Pelo contrário, a inquietude não apenas provoca na mente o encontro com os paradoxos, como já dito, como retira a fé dos escombros da passividade e da falsa retidão, tornando-a um organismo vivo, atuante e em constante transformação.

A maturidade, desta forma, está mais para um tesouro a ser perseguido pelos cantos da existência e ao longo da vida na fé, que para um porto seguro onde se pode atracar de uma vez por todas. A soberba (ou o chamado “orgulho espiritual”) é que precisa de portos seguros de tal natureza. A “paz que excede todo entendimento”, não excede, mas existe paradoxalmente no meio de todo sofrimento, dúvida e inquietude que possamos ter. A fé bíblica se alimenta, então, de uma espera inquieta e de uma inquietude expectante, em que uma mesma pessoa pode (em tom realista) indagar: “Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro de mim?”. E ainda assim (em tom esperançoso) declarar: “Espera em Deus, pois ainda o louvarei” (Sl 42.11).

Jonathan