terça-feira, 16 de outubro de 2018

Sobre 'Humanos, graças a Deus' (Segunda edição)


Venho escrevendo este livro há alguns anos, entre idas e vindas, rasuras e reparos. Sua primeira edição foi publicada em 2012, com ensaios que havia escritos nos quatro anos anteriores. De lá para cá, algumas coisas mudaram no cenário de minha existência, e em meu modo de pensar. Assim, com o esgotamento daquela edição, decidi incorporar novos ensaios escritos recentemente e que representam não apenas minhas reflexões atuais, como também se adequam ao “espírito” deste livro. Embora ele não tenha sido escrito de modo integrado,  há, contudo, um cantus firmus nessa caminhada de vida e reflexão em busca de uma espiritualidade encarnada, que, mesmo despretensiosamente, acabou por dar coesão e coerência à maioria dos ensaios aqui reunidos. A este “canto” resolvi dar um título, que é parte afirmação-celebração, parte denúncia-protesto: Somos humanos, graças a Deus!

Qual seria a razão dessa preocupação e de onde ela brota? Eu diria que ela não nasce de hoje, uma vez que, primeiro, esse é um clamor bíblico – pela humanização da pessoa – que vemos repercutir nas narrativas bíblicas e, de modo especial, em Jesus; segundo, porque continua reverberando em autores que me influenciaram, só para citar alguns: Kierkegaard, Ellul, Buechner, Tillich, Peterson, Lewis, Manning, Cavalcanti, Comblin, Rosset, Alves, Monteiro, Unamuno, Nietzsche, Rorty, Vattimo, Urteaga e tantos outros. Alguns deles bastante imponderados e intempestivos em sua maneira de ser e pensar, como o próprio autor em alguns dos ensaios deste livro.

Penso que essa preocupação também nasce de inquietações do tempo presente, minhas, é claro, mas não minhas apenas, de muita gente. Tenho impressão de que uma porção de nossa humanidade como existência, como identidades, como razão de ser, tem sido decepada por um certo espírito do tempo ou por um projeto de ser humano, que a religião cristã certamente ajudou a construir, que tem a ver com eficiência, santidade, perfeição, indefectibilidade, e que a gente não deu conta de viver. E, não dando conta de viver, escoamos nossas frustrações de várias formas, pela via do niilismo, do espiritualismo, do relativismo ou simplesmente do grito incontido que parece dizer: “Eu tenho o direito (natural) de ser imperfeito, de estar errado”; ou seja, embora não necessariamente me resigne ao lugar do erro, invariavelmente passo por ali.

Mas o que busco, afinal? Uma experiência, um modo de ser, pensar e agir que preconizem a convergência entre o cristão e o humano, entre o santo e o profano, entre ser discípulo e ser gente, de acordo com o tipo de gente que Jesus foi — verbo encarnado, chamado de “glutão e beberrão”, que chorou, sorriu, festejou e sofreu. Jesus foi corretamente chamado de “amigo de pecadores”. Mas, pergunto: se não fosse amigo de pecadores, de quem mais seria?  É óbvio, trata-se de um pleonasmo, uma redundância. Enquanto o pleonasmo dos fariseus continua operante, bem como sua caça aos “inimigos de Deus” e da “sã doutrina”, Jesus continua sua busca revolucionária por amigos, e cometendo disparates, como o de dizer para a gente amar nossos inimigos.  Aliás, ele ganhou muitos inimigos por causa desses disparates. É que o amor não pode ficar indiferente. Talvez a indiferença possa nos livrar da retaliação e do ódio, mas não o amor. O amor incomoda, tira do lugar de conforto, desestabiliza. Quem ama, diria C. S. Lewis, fica vulnerável.

E vulnerabilidade não é somente suscetibilidade involuntária, mas a voluntária coragem de se despir diante do outro. Como Jesus fez, em agonia, perante seus amigos no Getsêmani. Por causa de Jesus, entendo que meus amigos são aqueles/as que viram um pouquinho da minha alma, viram emergir meus demônios, e ainda assim escolheram permanecer ao meu lado. Não temo ser vulnerável diante deles, nem eles diante de mim. A amizade é, assim, uma divina permuta de humanidade.

Igualmente, pontuarei que a vida na fé não nos blinda contra as intempéries naturais dessa existência debaixo do sol – seus paradoxos, seu inventário de possibilidades (boas e ruins) – nem é um convite para que nos retiremos da história, ou para que deixemos de nos envolver visceralmente nela. Não! Ser humano, conforme os rastros de humana-divindade e o exemplo deixados por Jesus, significa assumir a identidade, a história e o devir humanos num tempo, espaço e cultura específicos para, assim, e somente assim, poder ser parceiros do Espírito nas revoluções e transformações que Ele vem realizando nesta mesma história desde seu alvorecer, e após a ressurreição. Por essa razão, defendo que viver a fé cristã, buscando fidelidade ao Cristo, não nos isenta de ter de encarar a nós mesmos tal como somos no mais profundo do ser, nossas virtudes e bondade, bem como idiossincrasias, pecados e demônios.

Lembrando do que disse Padre Brown, personagem de G. K. Chesterton: “Sou um homem... e, por isso mesmo, tenho todos os demônios do mundo em meu coração”.  E, também, das palavras autobiográficas de Leonardo Boff: “Participo, penosamente, da condition humaine onde vige a porção sim-bólica junto com a porção dia-bólica. Sou teólogo, mas também pecador. Peregrino e também me desgarro. Por isso sou devedor de desculpas e suplicante de perdão”.

Não convivo com “espirituais”, convivo com pessoas. A espiritualidade que me promete as alturas não me serve, pois sou gente, e não pássaro, gente, e não anjo. Quero espiritualidade-chão, ser pessoa-chão, porque o evangelho não é especulação metafísica; o evangelho é Deus abraçando o chão, se fazendo gente e mudando o curso da história.

[Trechos da Introdução do livro. Assista acima um vídeo de promoção. Você pode adquirir o livro clicando aqui. Ficarei muito feliz em tê-lo/a como leitor/a]

Jonathan