segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Com a palavra do Perdão

forgiveness 2

Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores
(Mateus 6.12).

Quando falamos em perdão, falamos de um ato comum, sobretudo, àqueles que vivem e estão na fé, mas incomum à natureza humana. Isto, pois “perdão”, na definição de Miroslav Volf, significa dar aos transgressores a dádiva de não usar sua transgressão contra eles.

Assim, na relação entre natureza e graça, perdão é graça, que visa redimir a natureza de si mesma. Na natureza, por sua vez, fala mais alto a justiça própria, merecida e paga.

Por que é tão difícil perdoar? Pode haver muitas respostas, de acordo com inúmeras maneiras e experiências. A raiz, para mim, está no fato de que perdoar implica, na maioria das vezes, em ferir o orgulho. O inimigo mortal do perdão, portanto, não é o não-perdão, mas o orgulho. Feri-lo é ferir a si mesmo. Não há como perdoar sem aprender a conviver com a ferida da ofensa não paga, da não restituição – palavra em moda, especialmente nos círculos da prosperidade. E o orgulho interfere não somente no ato de perdoar, mas também de receber perdão. O orgulho nos faz preferir conviver com a agrura do gelo e do castigo que com o constrangimento gerado pelo perdão.

Então é isso: perdão não tem nada a ver com merecimento ou com justiça, mas com gratidão. É a gratidão que nos conduz ao “assim como” do perdão de Jesus no Sermão do Monte. Trata-se de uma realidade inseparável do perdão: ser alcançado pelo perdão divino nos conduz a disponibilidade para perdoar. E todos têm débitos, não é mesmo?

Cristo não está, dessa forma, condicionando o perdão de Deus ao nosso perdão – isso não faz o menor sentido! Ele está aprofundando a discussão: para que você entenda, absorva e cresça no perdão divino, é preciso aceitar-se como aceito e também aprender a aceitar o outro. Deus perdoa gratuitamente aquele que reconhece que precisa do, e recebe o, perdão tanto quanto vive como perdoado-perdoador.

Voltaire, por exemplo, define “tolerância” como “o apanágio da humanidade”, isto é, a sua característica própria, afinal todos cometem delitos e deveriam, partindo desta premissa, perdoar e tolerar o outro em relação aos seus. O perdão também advém daí: do reconhecimento de si mesmo como tão transgressor quanto o outro (logo, sua transgressão não me pode ser estranha), e de que fomos alcançados pela graça do perdão.

O “assim como”, portanto, não é tanto um imperativo ético, do ponto de vista do dever, quanto o é da gratidão. E a graça do perdão não é imperativa, nem justa. Como diz Volf, “o perdão corta a corda de equivalência entre a ofensa e a maneira como tratamos o ofensor”. O perdão é, assim, uma vívida expressão da loucura divina. É coisa para gente louca e não para gente conseqüente.

Jonathan

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Sobre usos e costumes

Alguns pediram, então aí vai o que basicamente entendo por "usos e costumes".

Trata-se de uma doutrina, que tomou lugar sobretudo nas igrejas pentecostais mais tradicionais (Assembléia de Deus, Congregação Cristã, dentre outras), embora não se restrinja somente a elas, em que textos bíblicos são lidos e aplicados em seu sentido literal para justificar certos "usos e costumes", tais como não cortar o cabelo, não se maquiar e usar saia (no caso das mulheres), ou não deixar o cabelo crescer e só usar calça, para homens. Isto, é claro, tem também sua versão mais moderna na questão de bonés, piercings, brincos, tatuagens e afins, e numa série de regras proibitivas que acabam tomando lugar aqui e acolá nas igrejas evangélicas.

Devido a grande diversidade de igrejas, denominações e, consequentemente, de visões doutrinárias, é possível encontrar muitas variações disso, não só aquelas mais explícitas, como as já mencionadas, mas outras mais sutis, isto é, coisas que começamos a fazer pelo hábito do grupo ou do rebanho, sem se perguntar por que.

Uso e costume, de modo mais amplo, poderia ser também entendido como todo tipo de "cultura" imprimida pela igreja com vistas a mudar a vida dos crentes no aspecto exterior e, porque não dizer, superficial. Usos e costumes são o "crachá" do crente. Poucas vezes têm algo a ver com fé. É mais produto da religião (e da crença) do que da fé (ou mesmo da religiosidade, como expressão espontânea de temor e tremor diante do sobrenatural). E seu maior problema, a meu ver, é esse: reduz a ética cristã a um nível meramente superficial e de obediência a regras, e a fé àquilo que nos leva a cumprir a lei somente.

Jonathan

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Coisas que aprendi com Henri Nouwen (Parte 3)

4. Alegria e tristeza

Na vida e pensamento de Nouwen, como já disse antes, pode-se notar um rompimento com dualismos perniciosos. Dentre eles o dualismo que opõe alegria e tristeza. Em nosso mundo, costuma-se pensar que a alegria não pode conviver na mesma casa em que a tristeza está. Assim, a alegria significaria ausência de tristeza e a tristeza, ausência de alegria. Quando, porém, olhamos para a vida em sua complexidade, vemos que muitas vezes elas andam juntas e estão até misturadas. E diria mais: a alegria que se vive se torna mais profunda quando se conhece o que é tristeza. O próprio Jesus, como Nouwen diz, “foi o homem das dores, mas também o homem da total alegria”. Aprendi com ele, portanto, que “o cálice da vida é o cálice da alegria tanto quanto é o da tristeza. É o cálice no qual tristezas e alegrias, dor e felicidade, luto e dança nunca se separam. Se as alegrias não pudessem estar onde as tristezas estão, o cálice da vida jamais poderia ser bebido”.

5. Comunidade

Vida cristã é vida em comunhão. Comunhão que cria a comunidade – a partir do desejo que Deus cria em nós: “O Deus que vive em nós faz com que reconheçamos o Deus em nossos semelhantes” – e que se manifesta em formas concretas: no perdão, na reconciliação, no gesto de amor, compaixão, preocupação com o outro, na repreensão e no conflito, na intimidade, na amizade, no partir do pão. Com Nouwen, aprendi que a eucaristia é muito mais que mero ritual, é um “gesto humano” que relembra uma presença, a do Cristo com quem me comprometo, e a do irmão e da irmã com os quais me envolvo por causa de Cristo. Segundo Nouwen, mais do que a eucaristia, a “vida eucarística” é que faz a diferença no dia a dia, a cada gole, a cada gesto, como uma celebração constante no seio da graça e na casa de Deus, que existe onde quer que dois ou três estejam reunidos em seu nome. Essa compreensão permitiu com que Nouwen respirasse e vivenciasse a experiência de ser igreja até mesmo em reuniões íntimas com familiares e amigos. Ele disse: “Todos os dias celebro a eucaristia. Às vezes na igreja de minha paróquia, com centenas de pessoas presentes, às vezes na capela de Daybreak, em Toronto, Canadá, com minha comunidade, às vezes em um quarto de hotel, com alguns amigos, e às vezes na sala de estar de meu pai, apenas ele e eu”.

A mensagem de Nouwen sobre a comunidade dá o tom de sua espiritualidade: não há um só ser humano que não receba o convite permanente para participar do banquete de celebração do amor do Pai. Sua paixão por Jesus e pelas pessoas se expressou em um enorme apreço e fidelidade à Igreja, como pouco se vê em nossos dias. Embora fosse um contemplativo crítico da realidade, era raro ver Nouwen fazendo críticas muito duras ou usando de acidez e sarcasmo para falar da Igreja. Mesmo em sua verve profética era possível perceber uma ternura sábia e um olhar esperançoso. As maiores transgressões de Nouwen eram transgressões de si mesmo, sempre que falava abertamente de seus pecados, idiossincrasias e temores. Essa foi também a sua maior arte, seu jeito de ser discípulo e ser humano, e sua forma de tomar a cruz.

Jonathan

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Coisas que aprendi com Henri Nouwen (Parte 2)

O que aprendi com Nouwen?

Dividirei esta breve incursão naquilo que aprendi com Nouwen em 5 temas.

1. Vocação

Aprendi que, embora seja Deus quem chame, confirme e capacite – o que dá um peso enorme à questão – o processo de despertar para e prosseguir em uma vocação não é estático, mas dinâmico. A certeza do caminho vem enquanto caminhamos. Não somos chamados primordialmente para um lugar ou uma função, mas para andar com Jesus em serviço ao seu reino. Isto significa que a pergunta pela vocação nunca será respondida inteiramente; na caminhada estaremos sempre tentando discernir os caminhos. É o que Nouwen fez sua vida toda, como em sua passagem pela América Latina, ou em sua trajetória de uma carreira acadêmica prestigiada em Harvard para uma vida fora dos holofotes entre os deficientes da Arca, em Toronto. Assim ele resumiu: “Tentei discernir a voz de Deus; e, no meio de uma grande variedade de minhas respostas interiores, tentei encontrar o caminho para ser obediente àquela voz”.

2. Sofrimento e fragilidade.

A vida do ser humano (e do cristão) pode não ser (e como poderia ser?) só sofrer, mas indubitavelmente envolve sofrer. Aprendi com Nouwen que privar-se ou tentar se proteger do sofrimento é como que privar-se da própria vida – e de tudo o que podemos aprender com ela. Entendi que o sofrimento pode nos fazer mais humildes enquanto gente – ou uma gente da mais amarga espécie, dependendo de como o encaramos. O sofrimento me aproxima da, e me ensina a aceitar a, fragilidade de minha condição. Também me aproxima de Deus e me faz vê-lo como um Todo-Poderoso vulnerável, que nem sempre vai me livrar das dores da vida e do mundo, mas que sofrerá comigo sempre que tiver de enfrentá-las, oferecendo inexplicável conforto. Aprendi também que mesmo um ser ferido pode se tornar fonte de cura para as pessoas. E que, como ministro da cura, preciso desfazer-me da ilusão de que serei capaz de explicar o mistério da dor do outro ou de aboli-la; ou de que poderei conduzir alguém para fora do deserto sem tê-lo experimentado em minha própria pele. O sofrimento, assim, pode ser um convite “a depositar nossas feridas e mãos maiores”, e para ver “Deus sofrendo por nós” e nos chamando a compartilhar este sofrer de seu amor por um mundo ferido.

3. Integridade

Aprendi com Nouwen que ser cristão tem a ver com desenvolver-se como um ser humano inteiro, aceitando-se a si mesmo como amado de Deus, da maneira como se é e com a vida que lhe foi dada. Isto não significa que tenho que me resignar a um modo de ser torto. Pelo contrário, implica que toda a minha vida pode ser abraçada como um processo em que, pela graça, estou a caminho de me tornar a pessoa que Deus projetou; nada vem fácil ou é instantâneo e nem se confunde com o meramente superficial. Parte-se, portanto, da compreensão de que o ser como um todo, bem como “tudo na vida, por mais insignificante ou difícil que possa parecer, abre-nos para a obra de Deus em nós”.

(Continua...)
Jonathan

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Coisas que aprendi com Henri Nouwen (Parte 1)

Escrevi um artigo há certo tempo, falando de modo resumido sobre Henri Nouwen como um modelo de vida e espiritualidade radicais, tratando um pouco de sua vida, formação, fatos marcantes de sua trajetória e pensamento (ler aqui). Não menos resumidamente, quero partilhar algo mais sobre Nouwen só que de um jeito mais pessoal – forma predominante em seus escritos. Como eu o enxergo? Por que me tornei tão fascinado por sua vida e escritos? Que coisas tenho aprendido com ele?

Quem foi Nouwen?

Usando uma expressão de Zygmunt Bauman, para mim Nouwen foi um “artista da vida”. Primeiramente porque ele foi alguém profundamente fascinado pela vida e pelas pessoas, pela conexão e pelos relacionamentos. Parte de sua veia artística está em ter conseguido pintar de modo tão brilhante, sensível e inspirador sua teia particular de relações com a vida e com Deus. Um resumo das coisas que Nouwen mais amava fazer pode ser encontrado, a meu ver, em suas próprias palavras no Diário de seu último ano sabático: “Escrever livros, fazer amigos, criar comunidade, partilhar histórias”.

Nouwen foi um santo-homem. Sua santidade estava não em feitos sobrenaturais, mas na forma íntegra com que efetuou as coisas mais naturais da vida – como amar, orar, sofrer, se alegrar, celebrar, morrer. Ele foi um pastor sensível e compassivo, atento a cada encontro e a singularidade de cada pessoa. Mas também foi um ministro vulnerável, ao ponto de escancarar sua vida, suas feridas e limitações de um modo às vezes até constrangedor pra quem o lê.

Foi um discípulo radical e apaixonado de/por Jesus. Extremamente consciente de sua dependência de Deus e da comunidade e também de seu inacabamento, nunca deixou de estar em busca, a caminho, ansioso por entender o que Deus queria para ele e para onde desejava conduzi-lo. A ele cabem as sábias palavras do frei Carlos Mesters: “A luz só se faz é na travessia e na escuridão”. O mais admirável é que tanto a luz quanto a escuridão de Nouwen serviram como canais de benção e de cura para muitas pessoas.

Por que Nouwen?

Em Nouwen descobri um modelo de espiritualidade não focado em performances para Deus, mas em vida, abertura e entrega. Uma vida baseada na honestidade, uma abertura besuntada de autenticidade, e uma entrega movida pelo amor e pela paixão de Cristo. Ele foi e continua sendo um modelo atual, pois conseguiu reunir em sua pessoa uma intelectualidade frutífera com o sentimento sincero, de quem vive intensamente tanto “por fora” quanto “por dentro”, e a experiência da orientação sábia junto com uma postura de constante quebrantamento diante de Deus e da vida. Sua existência foi um protesto contra o superficialismo e um rompimento com os dualismos perniciosos que se propagaram no cristianismo. Nele vejo o paradoxo belo de uma coerência desarmônica, de uma resiliência frágil e de uma melancolia esperançosa.

Jonathan

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Em louvor à fragilidade

“Mas temos esse tesouro em vasos de barro, para mostrar que este poder que a tudo excede provém de Deus, e não de nós” (2Co 4.7).

Quando penso em tesouro duas imagens pelo menos me vem à mente: uma delas é a de uma caça ao tesouro, escondido em um baú nos recônditos de uma caverna escura e perigosa ou nas profundezas do mar; a outra é a dos cofres de segurança máxima, cheios de paredes de proteção especial, códigos e senhas quase intransponíveis.

As imagens são diferentes, mas têm algo em comum: em ambas o acesso ao tesouro é quase impossível, visto que há uma fortaleza protetora, imponente, complexa... A imagem de Paulo no texto acima é bem diferente. Ele fala de um “tesouro” (evangelho e a companhia do poder divino) em “vasos de barro” – que designa a nossa humanidade, que como o vaso vem do pó, é frágil, vulnerável e sempre sujeita à quebra.

Temos aqui então um contraste, uma dessas ironias divinas: o eterno poder, que não pode ser contido (do contrário, não seria eterno) escolhendo precisamente o que há de mais fraco e incerto para “se abrigar”. E a pergunta é: por quê? Paulo mesmo dá a resposta: é para mostrar que a excelência desse poder vem de Deus, e não da gente.

Trocando em miúdos: temos um tesouro (poder), mas esse tesouro não vem de nós, nem é para a nossa glória e nem nos faz triunfantes no mundo. Pelo contrário. Paulo segue afirmando nos versos seguintes que “em tudo” somos perplexos, atribulados, perseguidos, abatidos, embora não o bastante para sermos destruídos, desanimados, angustiados e totalmente desamparados.

Curioso, não? Esse poder, que não é nosso, não nos faz mais poderosos que ninguém, tampouco imunes ao sofrimento de qualquer ser humano – agregando ainda um sofrer de outra espécie, por ser cristão. Mesmo tendo um tesouro, nunca deixamos de ser simples vasos! E o vaso não existe para proteger a integridade do tesouro, mas é o tesouro que é oferecido para proteger a integridade do vaso, a despeito de suas eventuais “quebras”.

Não somos, portanto, defensores ou detentores do tesouro; ele não precisa de sentinelas ou guardiões, nem de Indiana Jones “gospel”; e não somos nós que resplandecemos, mas ele resplandece através de nós. O vaso não existe ainda para se transformado em cofre forte, mas existe para morrer: “Trazemos sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus também seja revelada em nosso corpo” (4.10).

Penso que o que Paulo está querendo aqui, dentre outras coisas, é nos convidando a rever nossa teologia do poder e reservar nela um lugar especial para a aceitação jubilosa da fraqueza. Somente quando assumirmos nossa fragilidade humana, o poder de Deus se aperfeiçoará em nós a fim de que participemos da transformação que o Espírito já vem realizando no mundo, muitas vezes sem a nossa “ajuda” pretensiosa.

Jonathan

(Imagem: "Fragility", by Dawne Olson)

domingo, 4 de setembro de 2011

4 Teses sobre o que significa "ser santo"

Gostaria de propor, em suma, quatro teses (não inéditas) que endereçarão (parcialmente) a perspectiva que hoje tenho sobre santidade:

1. Ser santo, como Deus é santo, implica em despretensiosidade ou em aceitar-se como se é.

O que, no caso da santidade, significa assumir-se como um ser pecador e naturalmente incapaz de santidade. Nisto se configura o que Tillich chamou de “a coragem de ser”: “aceitar-se como sendo aceito, apesar de ser inaceitável”. Ele ainda acrescenta que “não é o bom, ou o sábio, ou o piedoso, quem está destinado à coragem de aceitar a aceitação, mas aqueles que são faltos de todas estas qualidades e estão certos de serem inaceitáveis” (Tillich, 1972, p. 128).

2. Ser santo, como Deus é santo, implica em abraçar a condição (contingente) de “ser como uma parte”, continuando a pensar com Tillich (1972, p. 70), e de se colocar, assim, como um ser sempre a caminho de se tornar.

Nisto também se configura a vocação: ela não é para aqueles que já-são, mas para os que, pela graça, podem vir-a-ser. Não seria este o convite do próprio Jesus: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Eu não vim para chamar justos, mas pecadores” (Mc 2.17)?

3. Ser santo, como Deus é santo, implica em esvaziar-se da ambição diabólica de “ser como (igual) a Deus”, e cobrir-se, em contrapartida, de humanidade, de “nova humanidade”. Parafraseando Zélia Duncan e Mosca na música “Carne e sangue”, me cobrir de humanidade me fascina e me aproxima do céu.

Caminhar com Deus é um privilégio e uma dádiva, e não a conquista dos “caçadores de Deus” e suas formas de religiosidade sem conteúdo e sem vida, e, como disse J. Urteaga, cheias de “falsas virtudes que ocultam uma vergonhosa covardia” (Urteaga, 1967, p. 75). Santidade que nos priva da vida e da benção de ser apenas humano não vem de Deus. Pois, segundo Elienai Cabral Jr. (2009, p. 17), ela “subestima a vida humana e impõe uma agenda de pretensa divinização da vida. Insinua uma existência sem tensões, medos, dúvidas e aflições. Sem pequenos prazeres. Sem alegrias banais. Sem dança, festa, riso, vinho e amor”.

4. Ser santo, como Deus é santo, implica, por fim, na inconformidade com qualquer outra medida que não seja a “medida da estatura da plenitude de Cristo”, sobre a qual falou Paulo (Ef 4.13). Para isto, é preciso “estar em Cristo”, que é tudo o que possibilita o caminhar em santidade de vida. O estar em Cristo me torna uma nova criatura. O “velho”, fraturado, vai dando lugar ao “novo”, em construção, e à “novidade de vida”.

Em suma: tendo sido feito-santo, não deixo de ser humano, que, por si só, é incapaz de santidade ou contingente. A diferença é que, agora que fui alcançado pela graça, existe algo que me move rumo a um horizonte de vida abundante ao qual, por enquanto, experimento apenas de relance. A idéia de santidade como vocação me faz pensar, assim, que existe um já que se apresenta como convite e como possibilidade de um vir a ser diário na graça. O santo-humano tem também seus demônios. Aprendendo a conviver com eles, sem a eles se render totalmente, é o que consiste em aceitar diariamente ao convite. Santidade sem sanidade (expressão de Robinson Cavalcanti) gera gente doente, e não gente santa. Em outras palavras, o anseio pela santidade sem o Evangelho não vira santidade, vira patologia.

Jonathan

Referências Bibliográficas

CABRAL JUNIOR, Elienai. Salvos da perfeição: mais humanos e mais perto de Deus. Viçosa, MG: Ultimato, 2009.
TILLICH, Paul. A coragem de ser. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.
URTEAGA, Jesus. O valor divino do humano. São Paulo: Quadrante, 1967.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Falando em santidade...

Mas, assim como é santo aquele que os chamou, sejam santos vocês também em tudo o que fizerem, pois está escrito: ‘Sejam santos, porque eu sou santo (1Pe 1.15-16).

Quatro... É o número de vezes em que a sentença “sejam santos, porque eu sou santo” aparece somente no livro de Levítico – sem contar com esta passagem da primeira carta de Pedro, é claro, que faz referência àquela. Qual é a possível mensagem implícita nesta sentença? A de que devemos ser “iguais a Deus”? A de que nos compararemos a Ele em sua Santidade? A de que devemos lutar para que a santidade seja possível? Três vezes não! Mas, num primeiro plano, aparece a mensagem de que Deus, o Senhor, que tirou seu povo da terra do Egito, é “Santo”, isto é, incomparável, está “acima de todo nome”, não há outro igual a Ele, não é e nem pode ser idêntico a outros deuses, nem tampouco às formas, formulas ou nomes que tentam “descrever” Deus. Ele é o que é...

A Santidade, nesse sentido, é o que torna impossível qualquer espécie de cogitação sobre Deus, qualquer teologia que possa ser feita, por ser “sobre Deus”, ou visando “nomear Deus”. E a graça é o que torna, em contrapartida, possível a teologia como resposta ao falar e ao agir desse Deus Santo, no nível de nosso entendimento sobre ou da nossa experiência com este Deus.

Mas, em que medida se pode ser santo “como Deus é...”? Diria que não na medida em que ambicionamos a santidade, pois ser santo não é propriamente ambição, mas vocação. Ninguém “ambiciona” a santidade neste sentido (bíblico) estrito, pois não há vantagem, status ou benefício direto algum em ser santo. Não me torno melhor e nem pior que ninguém. Não ganho nenhum “Prêmio Nobel de Santidade”. Sou apenas “diferente”, e diferente “apenas”. E assim sou na medida em que me deixo levar pelo jeito divino de me fazer diferente sem ser extraterreno ou extra-humano – o que demonstra que a santidade sobre a qual falo não tem nada a ver com a conotação religiosa do santo-beato.

Santos, portanto, são chamados. Pedro diz: “Santo” é “aquele que os chamou”. Paulo, quando escreve aos Romanos – e esta é uma linguagem que repetidamente aparecerá em suas cartas – assim endereça: “A todos os que em Roma são amados de Deus e chamados para serem santos” (Rm 1.7). Santidade então não é essencialmente um alvo humano, mas alvo de Deus para a humanidade; os que são chamados “santos” na perspectiva bíblica não o são porque perseguiram este caminho ou porque fizeram “das tripas o coração” para se tornarem “santos” aos olhos de Deus e do mundo, mas porque foram “perseguidos” e atraídos por e para esta via, que é uma via de graça.

Ser santo, assim, é um fado, isto é, um destino, uma vocação. Um fado que pode se tornar fardo, às vezes, seja (dentro de um estado “normal” de coisas) quando reconheço a complexidade dessa carreira que me está proposta (fardo-desafio, que pode ter tonalidades positivas), ou, pior, é fardo quando penso que a santidade depende de mim e de meus esforços “apenas” para existir (dentro de um estado “anômalo” de coisas). Ao mesmo tempo, é uma vocação que pode e deve ser alegre, leve, cheia de vida, à medida que não se separa da graça de Deus, nem da beleza de viver e de ser humano, conformando-me com o exemplo do “filho do homem”.

Jonathan

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Sobre a verdade em um sentido (cristão) pós-moderno (final)

Sobre o testemunho da verdade em um mundo pós-moderno

Tenho me focado até aqui em travar uma discussão teórica, em primeiro plano, sobre a questão da verdade em uma perspectiva (cristã) pós-moderna, sem me preocupar muito com as implicações disso no que diz respeito às posturas ético-relacionais do cristão chamado a dar “testemunho da verdade”, conforme o exemplo de seu mestre. Parte dessas implicações, creio, tentei abordar em meu outro artigo, “Verdade e liberdade em um reino de vida”. Aqui seguirei um caminho parecido, mas diferente, Não a partir da ótica de “como” se evangeliza, mas “em que base”. E penso (não somente eu, é claro) que esta base – a despeito de quem, como ou onde – é relacional, a partir do paradigma da presença.

No anseio por defender nossas convicções cristãs em meio a um mundo onde elas são cada vez menos consideradas como relevantes para a vida em geral, tendemos a nos focar muito em questões – a questão do aborto, a questão da corrupção, a questão do homossexualismo, a questão da verdade – e com isso perdemos de vista os relacionamentos com as pessoas em torno das quais se levantam tais questões. Em outras palavras, as questões tendem a ser mais importantes que as pessoas. E que implicações isto tem? Penso que elas são mais ou menos óbvias. No que diz respeito à verdade, por exemplo, reitero: se a verdade passa a ser tratada mais como questão e objeto de defesa – a “minha verdade” contra a “verdade dos outros” – a tendência é que se perca de vista o princípio (no caso cristão, relacional, de amor) que serve como combustível para que essa verdade possa ser reconhecida como verdade-vida e não verdade-morte. A defesa da questão da tolerância pode, da mesma forma, se tornar mais importante que o ser tolerante, inclusive com quem não é. Aliás, é uma contradição em termos, o defender a tolerância e não tolerar que não tolera. E o mesmo poderia ser dito da justiça, ética, solidariedade, compaixão, e assim por diante.

Quando a defesa da retidão e do “caminho certo” torna-se mais importante que a conexão com as pessoas, podemos estar diante de um cabal exemplo de como estar no caminho torto e equivocado, mais perto do farisaísmo que de Jesus.

Penso que dar testemunho da verdade em um mundo pós-moderno é partir mais do paradigma da presença que do discurso. Ainda que não prescindamos totalmente dos discursos e admitamos que eles ainda possam ser válidos, entendo que a presença e o modo como nos fazemos presentes “entre os outros” no mundo é o que (ainda) pode fazer diferença, e até dar mais crédito ao que falamos. A vida, nesse sentido, não apenas fala mais que a própria fala, mas a legitima. Nossa presença não é equivalente a presença de Cristo – uma vez que ele já se faz presente, com ou sem a gente – mas é um reflexo possível de sua presença: solidária, amorosa, não-excludente, dialogal, transformadora. Não necessariamente através de grandes gestos, mas de pequenos gestos feitos no dia a dia, quando ninguém está vendo, quando não há jornal que noticie e nem público que aplauda. Pequenos gestos são, assim, “sinais de esperança”, como disse Hans de Wit, que ainda defende a idéia de que “assim como o mal começa muitas vezes com coisas pequenas – a criação da imagem do inimigo, a pressão social, a proibição da dúvida – também o bem muitas vezes se realiza por meio de pequenos gestos de amor” (De Wit, 2011, p. 302 – grifo meu).

Dessa forma, ao invés da insígnia de “embaixadores do evangelho”, prefiro a insígnia paulina de que somos “colaboradores com o evangelho”. O colaborador co-labora e não labora em lugar de. Nosso trabalho é inútil e pretensioso quando achamos que o Espírito está do nosso lado, e não que nós é que, pela graça, no colocamos ao lado dele, seguindo suas pegadas no mundo, “ouvindo duas vezes”, usando a brilhante imagem de John Stott em “Ouça o Espírito, ouça o mundo” (2003).

Outra imagem interessante de Paulo que gostaria de evocar é a de um “tesouro em vasos de barro” (2Co 4.7). Ela designa o contraste entre nossa humanidade, que como o vaso vem do pó, é frágil, vulnerável e sujeita a quebra, com o eterno poder do evangelho e a divina companhia, que não podem ser contidos, mas que escolhem precisamente o que há de mais fraco e incerto para se “abrigar”. A pergunta é: por quê? Paulo dá a resposta no mesmo verso: “Para mostrar que este poder que a tudo excede provém de Deus, e não de nós”. Curioso, não? Temos um “poder”, mas que não é precisamente “nosso”, nem nos faz maiores que ninguém, antes ressalta nossa fragilidade e não imunidade às contingências e sofrimentos de qualquer ser humano. Mesmo possuindo, ou melhor, sendo possuídos pelo tesouro, nós nunca deixaremos de ser simples “vasos”...

O vaso não existe para ser transformado em cofre-forte e blindado, mas existe para morrer: “Pois nós, que estamos vivos, somos sempre entregues à morte por amor a Jesus, para que a sua vida também se manifeste em nosso corpo mortal. De modo que em nós atua a morte; mas em vocês, a vida” (2Co 4.10). O vaso não existe para “proteger” a integridade do tesouro (ela não pode ser ferida), mas é o tesouro que é oferecido para restaurar a integridade do vaso. Não somos, portanto, caçadores (fomos achado por ele e nele) nem detentores do tesouro (somos detido-libertos nele); este tesouro não precisa de sentinelas, cofres de segurança ou guardiões, mas de simples vasos que não querem resplandecer, mas que anseiam para que, pela graça, o tesouro neles resplandeça.

Paulo, portanto, nos convida a rever nossa teologia do poder e da fraqueza, e a reservar um lugar em nossa vida e missão como igreja ao acolhimento e aceitação da fraqueza, em louvor à fragilidade. Somente quando assumirmos este lugar de vulnerabilidade em nossa relação com o mundo e nos variados contextos em que o Senhor no coloca, o poder de Deus poderá se aperfeiçoar em nós para alcançar as pessoas (tantas vezes perdidas) no caminho, com verdade e com vida.

Jonathan

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Sobre a verdade em um sentido (cristão) pós-moderno (3)

Verdade, construção e relativismo

Quando Richard Rorty, lendo Nietzsche, parte do ponto de que a verdade é construída, isto é, de que é uma produção que se realiza no mundo da fala e da linguagem, ou de que é “uma propriedade de entidades lingüísticas, de frases” (2007, p. 31) e não pode simplesmente ser “achada” lá fora, a qual verdade ele está se referindo? Ora, penso que à verdade “conhecida” por meio de nossas proposições ou frases. Em outras palavras, para verificar a verdade em termos cognitivos e objetivos, eu preciso dizer: “Isto ou aquilo é verdade”. E quando digo isto, ela já não mais pode ser “a verdade”, e sim “verdade para mim” ou “para nós” (pensando em um coletivo ou rebanho). E verdade para mim ou nós é sempre parcial.

Isto implica então que, quando afirmamos que “Cristo é a verdade”, ele deixa de ser “a verdade”? De modo nenhum (não pelo menos do ponto de vista de quem crê que é assim). De novo trazendo Ellul ao diálogo, “a verdade é sempre verdade apesar e contra tudo... firme, estável, flexível, indiscutível”. Isto porque a verdade “é” (no caso de Cristo, uma pessoa), acima de nossas cogitações, estimativas e apreensões. E, mudando um pouco a frase de Wittgenstein, para tudo aquilo que é a linguagem cala. Aquilo que “é” não pode ser declarado sem que, no nível da fala, se torne apenas um fragmento – eis o problema em reduzi-lo em conceitos ou definições. Podemos continuar lançando mão de critérios? Sim! Mas entendamos que eles são “nossos critérios”, que podem ser inspirados na e pela verdade, mas que não podem ser confundidos com a própria verdade. O que “é” (a verdade) pode até preceder, mas não ser igualado àquilo que muda (nossas visões, conceitos e pressupostos). Fico repetindo isto com o receio de que ainda não esteja suficientemente claro.

Prossigo defendendo (é claro, não somente e nem primeiramente eu), portanto, que nossas proposições teológicas ou filosóficas devem ser mais modestas. Posso, dessa forma, continuar propondo, conhecendo, me aprofundando e defendendo questões sem pretensões universalizantes para estas questões. Discordo tecnicamente da afirmação de Charles Hodge (2003, p. 329) de que “a verdade é aquilo em que a realidade corresponde exatamente ao que é manifesto”. Ora, se o que o (discurso) humano “manifesta”, manifesta linguisticamente, então a verdade (em si) não pode corresponder exatamente ao manifesto, como tenho afirmado. De novo: as correspondências humanas com a verdade são sempre parciais, fragmentárias e, sim, relativas!

E isto não implica necessariamente no endosso de um relativismo do tipo “vale-tudo”. Primeiro, porque o relativismo tende a ser auto-contraditório. Acaba fazendo na prática precisamente aquilo que rejeita no discurso. Por exemplo: pessoas relativistas costumam ser consideradas de “mente aberta”; ao mesmo tempo, podem ser “mente fechada” quando afirmam quase dogmaticamente que não há verdade absoluta. Partem do princípio (falacioso) de que descrer no absoluto é o mesmo que afirmar que ele não existe. Só que, como ressalta Rorty (2007, p. 33), “dizer que abandonamos a idéia de verdade como algo que está aí, à espera de ser descoberto, não é dizer que descobrimos que não existe verdade alguma”. Afinal, quem seria capaz de sustentar, sem sombra de dúvidas, tal descoberta?

Outra falácia relativista pode ser esta de dizer que verdade é o que eu considero ser verdade: “pode ser falso para você, mas para mim é verdade”. Onde está a falácia aqui? Segundo Stephen Law (2009, p. 199), comete-se esta falácia quando não se consegue demonstrar que a verdade em questão, que se afirma ser relativa, é mesmo relativa. Do contrário, como diz Law, “eu poderia tornar qualquer afirmação verdadeira crendo nela: ‘Posso voar’, por exemplo. Obviamente a maioria das verdades não é relativa desse modo”. De que modo então elas são relativas? Na medida em que se assume que não as possuímos em si, a não ser na forma de descrições ou representações, que são relativas na medida em que são fragmentárias ou que não abarcam o todo.

Afirmar a relatividade de nossos pressupostos não é o mesmo que endossar o relativismo. Neste caso, embora não haja um critério universal de julgamento (para dizer o que é válido e ou que não é), isto também não significa que seja plausível afirmar qualquer coisa que se queira. É preciso afirmar e sustentar (não confunda com “comprovar”) a afirmação dentro de certos limites e deixar que os pares ou a comunidade julguem ser razoável ou não. A contingência não nos impede de defender nossas convicções, apenas nos alerta quanto a seus limites, tanto na abrangência quanto no respeito às convicções do outro. Endossando o que disse Isaiah Berlin (apud. Rorty, 2007, p. 92): “Reconhecer a validade relativa das próprias convicções, mas ainda assim defendê-las resolutamente, é o que distingue o homem civilizado do bárbaro”.

E, acrescento, não deveria ser esta também uma distinção do cristão (pós-moderno ou não)?

(Continua...)

Jonathan

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Sobre verdade em um sentido (cristão) pós-moderno (2)

Os próximos dois posts são continuações do texto anterior, em resposta aos questionamentos de meu amigo Robinson Souza (vide comentários ao post anterior). Farei isso tematicamente. Eis o primeiro tema...

Verdade na filosofia e na teologia

Quando falo sobre “verdade” em um sentido (cristão) pós-moderno implica em uma tentativa de dialogar com os discursos, filosóficos sobretudo, ditos pós-modernos sobre o assunto. Nesse sentido, não faço diferenciação aqui entre uma verdade “teológica” e uma verdade “filosófica”. Isto, pois a questão da verdade permanece sendo, no fundo, uma questão filosófica, ainda que tenha implicações teológicas profundas e envolva diretamente a profissão de fé e o testemunho cristãos – bem como o de outras religiões e crenças.

Se tomarmos, por exemplo, a discussão entre Pilatos e Jesus retratada por João (18.33-38) – aliás, o único que investe neste encontro, e não por acaso, na forma de diálogo retomando temas transversais de seu evangelho (verbo, testemunho, reino, verdade) – a teologia e a filosofia estão em intercâmbio. O tema (teológico) do reino surge de uma pergunta objetiva de Pilatos: “Você é o rei dos judeus?”. No que Jesus aprofunda a questão, dizendo que seu reino não é deste mundo, pois se fosse seus servos lutariam para que os judeus não o prendessem. Assim, Pilatos replica: “Então você é rei?”. E Jesus se esquiva outra vez de uma resposta objetiva, alegando que foi Pilatos quem disse isso, mas reforçando o sentido de sua missão (envio – “para isso eu vim”), que é a de dar testemunho da verdade. O tema da verdade, portanto, surge na fala de Jesus ligado ao testemunho de vida, de modo que aqueles que “são” da verdade, segundo ele, o ouvem.

O diálogo, contudo, se encerra com a pergunta (a que não quer calar) filosófica de Pilatos: “O que é a verdade?”. E depois, silêncio... Silêncio que diz sem dizer, que afirma sem afirmar, que significa. E dentre muitas coisas que ele pode estar significando, é que a verdade não pode ser definida, expressa em linguagem; quando isso acontece, ela deixa de ser “a verdade”. Além disso, uma resposta eliminaria qualquer sentido para a “busca”.

E esse é o problema de tantos que tentam responder objetivamente à pergunta. Diante dela, Jacques Ellul, em seu livro A palavra humilhada (1984, p. 29), disse: “Certamente não responderei, dando-lhe um conteúdo, porque seria contestado, obrigar-me-ia a fazer um imenso desvio, excederia às minhas forças”. É nisso, portanto, que se transformam tentativas de conter, definir: em imensos desvios, desvios tremendamente contestáveis. Por isso, Ellul completa dizendo que não podemos confundir a “questão da verdade” com a própria verdade:
A questão da Verdade não é a verdade. Não apelo para a metafísica. Não é a verdade porque não é o questionamento que o homem faz a si mesmo sobre sua vida. É ainda um jogo intelectual e uma maneira de estar fora da verdade. Portanto, que depois de tudo, possa ele dar uma resposta, pouco importa; que a resposta venha dele ou seja objetivada, enquanto filosofia ou revelação, também pouco importa. Mas quando o homem questiona sobre sua vida (consciente ou inconscientemente), então fica formulada a questão da verdade, e quando o homem afirma tê-la resolvido, mente (Ellul, 1984, p. 30).
Concordo com Ellul. A meu ver também não importa, se é filosofia ou se é a matéria da revelação (teologia), pois ambas acabam caindo no mesmo beco sem saída quando tentam transformar a questão (antiga e legítima) da verdade na própria verdade, afirmando tê-la resolvido. Isto é o que Nietzsche chamou de “igualação do não igual”; reduzir a verdade a conceitos ou proposições é igualar aquilo que não pode ser igualado. Assim, não vejo como posso estar “misturando as coisas”, uma vez que, a meu ver, tratar da questão da verdade é ter de pensar tanto teológica quanto filosoficamente, caso se queira problematizar a questão, e não apenas afirmar a correspondência entre palavras e coisas, dizendo “isto é verdade” e pronto, ou se resignando ao modo (dogmático) de que a minha verdade é “a verdade”, já a sua é menos verdade.

Ser cristão significa viver no limear entre o anseio pela dádiva de ser cada vez mais possuído pela verdade na vida e a boa-nova libertadora de não poder apreendê-la ou possuí-la no discurso.

(Continua...)

Jonathan

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Sobre verdade em um sentido (cristão) pós-moderno

Afirmar que nosso conhecimento não é capaz de “dar conta”, de deter a verdade ou alcançar a verdade objetiva, não significa dizer que “não existe mais uma verdade absoluta”, e sim que não pode haver uma visão (humana) absoluta da verdade. Alguns dirão que sim, ela existe, outros dirão que não, porém, não está na boca do pós-moderno (se está, ele não pode ser assim considerado) o determinar se há ou não há uma verdade “lá fora”.

Alguém que se autodenomina pós-moderno pode, por exemplo, não crer na existência de Deus, porém não poderá dizer (porque é incapaz de provar, e nem estaria preocupado em “provar” coisa alguma) que Deus não existe (isso é coisa dos modernos ateus). Se há uma virtude nos pós-modernos, pelo menos assim vejo, é o não julgar ou achincalhar a experiência e crenças alheias em detrimento das suas. Acho que isso é algo que podemos aprender com eles (ou alguns deles), sem deixar de crer e viver o Cristo-verdade, nem tentar impor isto aos outros como alguns de nossos irmãos ainda o fazem, consciente ou inconscientemente.

Vivemos, penso eu, em uma tensão: a de afirmar com a vida e com o discurso que “Cristo é a verdade” e, ao mesmo tempo, não sermos capazes de conter essa verdade em nossas declarações. Isto significa que, uma coisa é a Verdade (Cristo), outra é o que falamos sobre ela e como a entendemos. Tentar igualar as duas é render-se a uma das mais comuns tentações do saber, que Friedrich Nietzsche chamou de “igualação do não igual” ou identificação do não idêntico. Significa assassinar a própria verdade – e aí sou obrigado a concordar com Nietzsche: muitas vezes, “nós matamos Deus”.

Assumir, por outro lado, as limitações de nossa “fala sobre a verdade” não significa abrir mão dela ou dizer que ela não existe, mas implica em assumir, como Paulo o fez, que “em parte conhecemos e em parte profetizamos”. E é uma benção que sejamos, pensemos e saibamos assim, parcialmente. Precisamos, sem medo, mas com “temor e tremor”, assumir a coragem de ser como somos e de ser “como uma parte”, sobre a qual falou Paul Tillich em seu livro “A coragem de ser”. Para tanto, porém, é necessário abrir mão de algumas coisas, a começar pelo “orgulho de ser”, de saber, de possuir a verdade. Não contenho (e nem poderia possuir) a verdade. Quero, pela graça de Deus, estar contido nela...

Jonathan

sexta-feira, 29 de julho de 2011

John Stott: mais um conciliador nos deixa

No dia 27 de julho de 2011 faleceu John Stott, um dos teólogos mais prolíficos que esta geração conheceu. Sempre considerei Stott muito mais que um teólogo que li e gostei, como tantos. Para mim ele foi um exemplo de que é possível exercer o papel de (re)conciliador em um mundo (bélico) de diferentes e diferenças. Stott foi capaz de “sentar à mesa” e dialogar com pessoas de tradições e visões de mundo tão distintas da dele sem perder o foco da conversa, o respeito e nem ter de negociar suas convicções. Neste sentido, considerando aquilo que tenho visto, mesmo no pluriverso do século 21 em que vivemos, penso que é válido correr o risco de ser “clichê” e dizer que ele foi um homem que esteve além de seu tempo.

Impossível esquecer o papel conciliador fundamental por ele exercido no Primeiro Congresso de Evangelização Mundial em Lausanne, 1974. Sem sua intercessão, talvez, não teríamos a possibilidade de ter em mãos hoje um “documento-pacto” tão coeso e diferente ao mesmo tempo, que influenciou toda uma geração de líderes cristãos por quase meio século.

É possível discordar de aspectos de seu pensamento teológico? Sem dúvida. John Stott foi um homem-teólogo e não um beato intocável. Mas, por ter sido um pacificador e aglutinador como poucos são, é improvável que alguém se levante para dizer qualquer coisa que o desqualifique como ser humano e ministro do evangelho. Até breve, velho mestre!

Jonathan

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Eterna mesmice, fascinante mesmice

Gerações vêm e gerações vão, mas a terra permanece para sempre. O sol se levanta e o sol se põe, e depressa volta ao lugar de onde se levanta. (...) O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol. Haverá algo de que se possa dizer: “Veja! Isto é novo!”? Não! Já existiu há muito tempo, bem antes da nossa época. Ninguém se lembra dos que viveram na antiguidade, e aqueles que ainda virão tampouco serão lembrados pelos que vierem depois deles. (Eclesiastes 1.4-5, 9-11).

A eterna mesmice, o encontro com o mesmo, ainda que diferente. É sobre isto que o autor de Eclesiastes está escrevendo neste início, sobre a monótona repetibilidade da existência humana. A atividade humana, por mais que aos olhos do historiador seja mutável, à medida que não se faz, nem se pensa, nem se cultiva "hoje" exatamente os mesmos valores das civilizações e grupos humanos de antigamente, permanece sendo “atividade humana” e jamais deixará de ser. Somos cativos de nossa humanidade.

A pergunta é: como manter nosso interesse no olhar para a história diante da declaração de que “não há nada de novo debaixo do sol”? Ou de que ninguém se lembra do que foi, nem se lembrará do que está sendo?

É possível se interessar pela história precisamente porque ela é história dos seres humanos, nos ajuda a entender o que o humano faz e como faz e a nos encontrar com nossa identidade humana – e, assim, como se diz, nada do que é humano nos pode ser estranho.

Fazer história é, portanto, aceitar este paradoxo: do encontro com os traços de repetibilidade do DNA humano na história (identidade) e, ao mesmo tempo, dos desencontros, das incertezas, da imprevisibilidade, das rupturas (diferença), que fazem da história uma mesmice humana no tempo, mas que também pode ser humanamente fascinante! Inglória é a tarefa de sobre isto falar, sem que a fala por si mesma incorra no paradoxo.

Jonathan

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Hipocrisia, eu quero uma pra viver!

Hipocrisia: a arte de viver convincentemente uma mentira, sabendo que é uma mentira, mas fazendo os outros crerem que é uma verdade para você/eu, impostor, e para eles; só que enquanto a mentira se aplica frouxamente a você, os outros a carregam como um fardo pesado e, caso não despertem do sono escravizador, logo se acostumarão à mentira e perceberão que ela pode ser uma mentira-verdade, à medida que houver gente (e sempre haverá) que nela acredite e dela faça sua razão de viver.

A hipocrisia existe desde que o ser humano existe; se a associarmos, por exemplo, com seu irmão gêmeo, o cinismo, está aí desde quando Adão resolveu dizer pra Deus que a culpa de ter comido do fruto foi “da mulher que me deste”, ou quando a mulher replicou dizendo que culpada foi “a serpente que me seduziu”. A hipocrisia, assim, é um subterfúgio para lá de eficaz, pois o problema sempre é do outro, nunca é meu. “Eu estava no caminho certo e dele nunca saí, até que apareceu você”; ou “Estava tão bem lá em tal lugar, até que fulano me tirou de lá e agora está me usando e minha vida está arruinada”, são frases comuns, para um problema comum e mal tratado. Sobrinha do orgulho, a hipocrisia precisa do outro para existir, pois usa a comparação como defesa: “Não sou tão santo quanto é o João Beato, mas quase um anjo em relação à Maria da Perdição”.

A hipocrisia é covarde e superficial, porque marginaliza o que realmente importa e põe no centro o trivial e menos relevante. Confunde retidão com justiça própria e santidade com abstinência; faz dos sacrifícios e rituais o último bastião da espiritualidade, dissociando-a completamente da vida, da misericórdia e da sede por justiça. Afirma uma sede incontrolável por Deus e seus mandamentos, mas é incapaz de reconhecê-lo no próximo, no diferente, no samaritano à beira do caminho...

Não é novidade para ninguém que sistemas religiosos se alimentam da hipocrisia e não subsistem sem ela. Muitas igrejas têm sido – até que provem a si mesmas e ao mundo o contrário – ao invés de centros de misericórdia e compaixão e comunidades de reino, covis de hipocrisia, onde o livre pensar é reprimido (sobretudo em assuntos como sexualidade, por exemplo), e o discordar (mais ainda da liderança e da orientação doutrinária) é tratado como pecado. Exceções à regra (os remanescentes) existem, é claro, mas com a sina de ter que “nadar contra a maré”, caso não (ou até que) se deixem corromper pelo “se não pode vencê-los, junte-se a eles”.

A hipocrisia vai, dessa forma, recebendo outros nomes, e vai sendo ornamentada com vestes outras, mais sofisticadas quem sabe (embora não menos vorazes) e se torna peça indispensável ao bom funcionamento da engrenagem, mascarada pelo discurso de que assim estaremos “no centro da vontade de Deus”. Como corolário disso e de outras tendências já bastante enraizadas, como a privatização da espiritualidade e a religião de consumo, as pessoas vão à igreja apenas para nutrir o lado “lúdico” da fé, que congrega e agrega a massa dos que querem distância do conflito e que relega aos ditos apóstatas, hereges e perdidos o lado trágico (e sombrio) da existência.

A hipocrisia tenta eliminar o sofrimento a todo custo e promover uma espécie de narcótico gospel como sustentáculo para uma fé “que funciona”. Uma fé que desconhece a compaixão, porque só age para aliviar a dor; que tem desconfiança em relação ao mistério, ao desconhecido e às incertezas; que pensa que testemunhar é igual a fazer propaganda de sua fé, e se distancia da prática da justiça por estar tão ofuscada com as celebrações e homenagens, públicas e privadas, ao “seu Deus” – o “meu Deus isso”, o “meu Deus aquilo”. Essa fé é substrato da hipocrisia. Irracional e inconscientemente, muitas vezes, ela canta: “Hipocrisia, eu quero (eu preciso de) uma pra viver!”. Nos lugares onde ela é vivida, as palavras de Jesus – “Acautelai-vos do fermento dos fariseus!” – ecoam como gritos em uma terra de surdos. Porque acautelar-se, talvez, implique em passar pela via da admissão honesta de que, no fundo, todos (digo, os que nos servimos do sistema religiosos, ou os que se encontram, como eu, em processo de libertação de suas entranhas para reencontrar Jesus de um modo renovado) somos um pouco como os fariseus ou hipócritas – o que seria um total absurdo e falta de espiritualidade, para muitos. Se toda mulher é meio Leila Diniz, como diz a canção “Todas as mulheres” de Rita Lee, então (digo isso contra meu melhor senso) todo crente é meio hipócrita, até que prove o contrário lutando contra tal orientação.

E o que Deus pensa disso tudo? Nada temos acerca disso senão indícios ou ecos (pela Palavra) de um constante manifesto de repúdio divino contra a escolha de tantos em fazer do farisaísmo e da hipocrisia sua morada permanente. Nas palavras do profeta Amós, com as quais quero encerrar, essa repulsa fica mais do que escancarada.
Não suporto os encontros religiosos de vocês. Estou cheio dos seus congressos e convenções. Não me interessam seus projetos religiosos, seus lemas e alvos presunçosos. Estou enojado das suas estratégias para levantar fundos, das suas táticas de relações públicas e criação da própria imagem. Não suporto mais sua barulhenta música de culto ao ego. Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim? Alguém aí sabe o que eu quero? Eu quero justiça – um mar de justiça. Eu quero integridade – rios de integridade. É isso que eu quero. Isso é tudo que eu quero. (Amós 5.21-24 – Da Bíblia “A Mensagem”, de Eugene Peterson)
A questão é: quem será o primeiro a ter coragem de vestir a carapuça? Quem ousará romper com as correntes (frouxas ou apertadas) da hipocrisia? Quem será capaz de avançar uma milha mais rumo a uma entrada (definitiva?) em um cristianismo não-religioso? Sei lá... Eu decidi tentar.
Jonathan

terça-feira, 28 de junho de 2011

Monumento à Bíblia "Sim", Praça Islâmica "Não"!

Dias atrás, recebi uma carta do Conselho de Pastores de minha cidade, chamando a uma mobilização contra um projeto de Lei proposto por um vereador desejando erigir um monumento islâmico em uma praça da cidade, que passaria a se chamar “praça islâmica”. O argumento do conselho para ser contrário a tal projeto tem uma dupla face. Primeiro, é porque um vereador (homem público) não pode querer privilegiar no espaço público e no exercício de sua função uma religião em detrimento de outra – engraçado, os políticos evangélicos da cidade fazem isso o tempo todo e não vejo o mesmo conselho se manifestando contrariamente. Segundo, porque os islâmicos em seus países de origem estão longe de tratar os cristãos com a mesma condescendência, então não há motivos para facilitarmos as coisas para eles (ou seja, quase que uma ideologia do “olho por olho e dente por dente”!).
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Nesse caso, a gente vê uma defesa de uma laicidade esquizofrênica (sem confundi-la aqui com “neutralidade”). Quando convém, somos laicos e reivindicamos a condição de laicidade do público. Quando nossa liberdade é supostamente ameaçada, queremos uma laicidade mais frouxa, e protestamos pelo direito de expressar nossa crença. O engraçado é que nessa mesma cidade existe um “Monumento à Bíblia”, que não é questionado. Assim como o crucifixo e a santa na parede da escola pública não são questionados. Então, parece que Gianni Vattimo foi assertivo em sua tese sobre o ocidente liberal, quando diz que “o espaço leigo do liberalismo moderno é mais religioso do que o próprio liberalismo e o pensamento cristão estão dispostos a reconhecer”.
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Se quisermos defender com radicalidade que se arranque da comunidade islâmica (tão ínfima, pra não dizer marginal entre nós) o direito de ter publicamente seus símbolos religiosos, assim como os cristãos têm tido, mesmo numa sociedade que se diz liberal, democrática e secular, não poderemos estranhar quando o mesmo princípio se voltar contra a comunidade cristã e nossos símbolos passarem também a ser extintos do espaço público (o que não seria de todo ruim, apenas a aplicação de um princípio que se afirma na teoria na prática e para todos). Precisamos, em contrapartida, corroborando ainda aqui com Vattimo, “favorecer uma presença conjunta, livre e intensa de múltiplos universos religiosos”, reforçando a vocação laica da cultura ocidental e do cristianismo.
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Quando a luta pela verdade se desassocia da luta pela liberdade, e as duas deixam de ser parceiras, geradas e geradoras uma da outra, um possível resultado é o que a história já tem nos mostrado há milhares de anos: violência, intolerância, guerras, inquisições, fogueiras santas. A vivência radical do amor de Deus no mundo deve ser um grande “basta”! Bastam guerras santas, cruzadas ou inquisições (com ou sem fogueiras). O recado de Gilberto Gil, na música “Guerra Santa”, ainda é válido neste contexto: “O bom barraqueiro que quer vender seu peixe em paz deixa o outro vender limões”.
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Não podemos mais sacrificar o relacionamento (e matar a caridade) no altar da verdade. Talvez tenha chegado a hora de conjugar o “carregar a nossa cruz” no contexto urbano pós-moderno com a coragem de fazer morrer (junto com nossos egos “espirituais” inflados) nossas paixões, crenças e verdades dogmáticas em favor dos relacionamentos de vida. Como ouvimos aqui, a vida está acima da lei. E o amor é a lei que está acima da própria Lei, parafraseando Peter Rollins.
Jonathan

domingo, 26 de junho de 2011

Comunidade: lugar por excelência para a espiritualidade (3)

Terceira pergunta: como a comunidade pode melhorar minha espiritualidade?
1. A comunidade me aproxima do sentido mais profundo de quem eu sou e de quem Deus é.

A comunidade me “engravida de Deus”, de muitas formas: quando adoramos, servimos, escutamos a Palavra, debatemos, ensinamos e somos ensinados, consolamos e somos consolados, confrontamos e somos confrontados, quando carregamos os fardos uns dos outros e quando nos corrigimos mutuamente em amor.

A comunidade me aproxima mais da vontade do Senhor: quando lemos, interpretamos e partilhamos a Palavra e construímos uma hermenêutica comunitária (e como precisamos mais disso, especialmente num contexto autoritário e centrado na palavra de “um” em detrimento da “visão de muitos”).

A comunidade me faz mais humano, pela proximidade com os outros, seus pecados e virtudes e com as minhas próprias. É comunidade de santos-pecadores. E chega um tempo, como diz Peterson, em que é “mais difícil aturar os santos do que os pecadores”. E tem horas que a gente acaba preferindo a companhia de gente de fora da comunidade, que parece ser tão menos complicada. Só que logo a gente sente falta, e percebe que as nossas preferências não necessariamente condizem com as de Cristo.

A comunhão precisa viver as decepções óbvias da convivência, para que ela cresça como uma comunhão entre seres humanos pecadores, mas salvos pela Graça, e não entre anjos ou semideuses.

2. A comunidade melhora minha espiritualidade à medida que oportuniza a mútua correção.

Quem tenta viver sua fé fora da comunidade, pode até sofrer menos, mas também progride menos. Fora da comunidade, somos como que senhores de nosso próprio destino, mas não temos com quem contar no momento em que precisamos que a nossa rota seja corrigida. Tendemos a estagnar.

No tocante ao amor fraternal, Paulo se dirige a comunidade de Tessalônica, dizendo: “Não há necessidade de falar muito, pois vocês já foram bem instruídos quanto a se amar mutuamente; mais do que isso, vocês já estão vivendo isso intensamente, entre os irmãos e irmãs da comunidade. Mas, auto lá! Continuem progredindo; corram como se ainda nada tivessem alcançado. Não tomem esses momentos de fraternidade e mutualidade que há entre vocês como motivo para se orgulharem de si mesmos” (1Ts 4.9-10).

Isso deve nos levar a entender a comunhão de amor como um compromisso progressivo, inacabado e em permanente construção, que se dá em e não fora da comunidade.

Neste sentido, é tarefa de todos, pastores ou leigos, homens e mulheres, encontrar “mentores espirituais” na comunidade. Alguém com que você possa partilhar suas dores e alegrias, que possa te ajudar a recuperar a visão quando ela se perde por alguma razão, que possa te abraçar e se compadecer contigo em meio a um grande sofrimento, mas que também seja capaz de apontar seus pecados quando você não mais os enxerga ou reconhece e convidar ao arrependimento.

Este encontro passa pelo reconhecimento de que, por mais ou menos que saibamos, todos carecemos de “guias” espirituais, gente que nos ajude a atravessar o caminho. Nesse sentido, o mentor precisa ser um mestre na acepção da Palavra, que, a exemplo de Cristo, sabe ouvir, dar lugar à partilha, à fala do outro – mesmo que essa fala seja de lamúria confusa – acolher, ser solidário e simplesmente estar ao lado do outro. O mestre não é somente mestre por sua postura austera de quem ministra ou faz um monólogo, mas, sobretudo, por sua presença, que pode ser silenciosa, que muitas vezes faz mais perguntas do que se preocupa em responder logo e despedir “em paz” (e com a consciência tranqüilizada) o discípulo, sua cobaia passiva.

Assim, um mentor é quem pode me ajudar a me conhecer melhor na comunidade, é quem, nas palavras de James Houston, me ajuda a “desmascarar certos traços de auto-ilusão e a sondar meu interior mais profundamente do que eu talvez estivesse disposto a fazer voluntariamente” (James Houston. “Mentoria espiritual”, p. 141).
Jonathan

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Comunidade: lugar por excelência para a espiritualidade (2)


Segunda pergunta: quando e como passa a existir a comunidade?
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Existe comunidade quando sou convidado a partilhar a minha vida com outras pessoas, a partir do evento do Cristo Ressurreto. Eugene Peterson afirma que a ressurreição é ponto de partida da comunidade do Espírito Santo. A ressurreição e ascensão de Cristo ao Pai conduziram aquele grupo de discípulos à reunião em Jerusalém; e Lucas vai dizer que eles perseverarem unânimes em oração, com as mulheres e com os irmãos de Jesus (At 1.13-14).
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Após a descida do Espírito Santo, o discurso de Pedro e a conversão e batismo de milhares de pessoas, nós vemos agora uma comunidade do Espírito, também perseverando em oração, no ensino dos apóstolos e no partir do pão. A oração simboliza essa incessante busca comunitária pela vontade e presença de Deus; o ensino apostólico, representa o compromisso com a Palavra e com o crescimento na fé; e o partir do pão aponta para a comunhão com Cristo em comunidade. Logo, o relato de Atos prossegue dizendo que “todos os creram estavam juntos e tinham tudo em comum”; partilhavam seus bens e acolhiam aos necessitados; louvavam a Deus e contavam com a simpatia do povo. E, enquanto tudo isso ocorria, o Senhor acrescentava, dia a dia, os que iam sendo salvos (At 2.42-47, 4.32).
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Então, Peterson está certo. Todos estavam juntos porque algo os juntou, e este algo foi a ação do Espírito movida pela ressurreição do Senhor. Sem a ressurreição não há vida e nem esperança; pela ressurreição o Espírito passa atuar entre os discípulos, e cria a comunidade cristã. A comunhão, portanto, não é algo que se promove artificialmente, mas é fruto da ação do Espírito. E o louvor a Deus brota da mutualidade, o “nós” é mais importante que o “eu”, porque o “eu” não existe sem o “nós”. É um (lamentável) sinal dos tempos que hoje nos foquemos tanto no “eu” (individual) e menos no “nós” (coletivo); a igreja deixa de ser comunidade do espírito quando ela passa a existir para satisfazer uma “ditadura do eu”: eu sou abençoado, eu sou amado, eu sou próspero, eu fui chamado, o Senhor guia o meu ministério, Deus me cura, me salva, me liberta, me, me, me... Tá cansado? Então imagina Deus...
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A comunidade do Espírito e seus líderes em Atos não estão preocupados criando estratégias para fazer a igreja crescer. Mas ela crescia como nunca, em meio à completa ausência de qualquer plano pretensioso de crescimento. O crescimento se dá em um processo integral natural (usando aqui as categorias de Orlando Costas): quanto mais a comunidade perseverava e crescia na comunhão e no ensino (crescimento conceitual e orgânico), mais isto a impelia a se acercar e a acolher às necessidades do entorno (crescimento diaconal), e a contar com a simpatia do povo. E “enquanto tudo isso ocorria”, o Senhor acrescentava dia a dia mais pessoas à comunidade dos salvos (crescimento numérico).
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Então, quando vemos a explosão de crescimento na igreja evangélica hoje, devemos nos perguntar não tanto sobre métodos, estratégias ou números, mas no quê e no como está crescendo (qualidade). De nada adianta uma igreja grande no tamanho, mas pequena na maturidade cristã.
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Jonathan

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Comunidade: lugar por excelência para a espiritualidade

A reflexões que seguem nesta breve série são fruto de perpectivas pessoais e comunitárias, colhidas na Semana de Espiritualidade do ISBL (Maio-2011). Meus colegas (pastores Carlos e Vanderlei) e eu ficamos a cargo de oferecer pistas e provocações acerca de uma "espiritualidade integral" (ou que se enseja como tal) aos nossos alunos e convidados na semana.
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A tese defendida nesta semana foi de que a espiritualidade tem a ver com a qualidade de nossa relação com Deus, seja como vida vivida na fé (como enfatizou Vanderlei), seja como cumprimento de um dos propósitos de Deus desde a criação, que é o de caminhar e ter intimidade com Ele (como Carlos defendeu). Tentando também dar minha própria definição de espiritualidade, eu diria que espiritualidade pode simplesmente ser descrita como o modo de ser do cristão guiado pelo Espírito. O que segue é resultado de uma abordagem mais pessoal.
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A primeira pergunta, então, é: qual é o lugar do outro na espiritualidade cristã? Qual é a relação entre espiritualidade e alteridade?
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Se esse modo de ser é relacional, e se as relações são dinâmicas, então não há regras gerais ou modelos que dêem conta, e teremos tantos “modos de ser” quantas são as pessoas numa comunidade de fé. E porque é relacional e dinâmica, a espiritualidade depende da vida com o outro.
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Primeiro, a espiritualidade só existe por causa do Outro, que é Cristo. Ou seja, Cristo é a razão de ser da espiritualidade cristã; nossa vida é originada pela vida de Cristo, iluminada por sua Palavra, e guiada pelo seu Espírito. “Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente” (Rm 11.36).
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Segundo, porque essa vida, que é originada, iluminada e guiada em Cristo, encontra seu melhor sentido no encontro com o outro, o próximo, o irmão de caminhada. Meu encontro com Cristo me conduz inevitavelmente ao outro, e muitas vezes se dá precisamente através do outro. Desde o princípio Deus fez essa escolha: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2.18). Dois é sempre melhor que um: na alegria ou na dor, na celebração ou no luto. Já dizia Vinicius de Morais: “Pense muito, que é melhor se sofrer junto que viver feliz sozinho”. A esta vida partilhada é que o salmista se refere quando diz: “Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos... ali o Senhor ordena a sua benção e a vida para sempre” (Sl 133.1,3).
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Espiritualidade, nesta perspectiva, é o encontro com o Outro (Deus) por meio do outro (próximo).
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Outras perguntas que tentarei responder nos próximos posts: Quando e como passa a existir a comunidade? De que modo a comunidade pode melhorar minha espiritualidade? Que implicações a perspectiva de uma espiritualidade comunitária traz?
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(Cont.).
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Jonathan

domingo, 29 de maio de 2011

Pedras que edificam a Igreja que não perdeu o Reino

“À medida que se aproximam dele, a pedra viva - rejeitada pelos homens, mas escolhida por Deus e preciosa para ele – vocês também estão sendo utilizados como pedras vivas na edificação de uma casa espiritual para ser sacerdócio santo, oferecendo sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus, por meio de Jesus Cristo”
(1Pe 2.4-5).
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São quatro e meia da manhã e seu Argeu já está de pé para mais um dia longo pela frente. Vai até a padaria, compra os primeiros (e mais quentes) pães do dia, volta pra casa, toma seu café e segue a jornada diária, de passar no lar dos idosos que ajuda a manter há quase 15 anos em Vitória/ES, e depois na creche onde também ajuda c coordenar, que atende pelo menos 100 crianças, todos os dias, nos dois turnos. Apesar de aposentado (após muitos anos de trabalho como operador de máquinas na Cia. Vale do Rio Doce), ele descobriu uma vocação que o move desde a conversão a Jesus: receber, ajudar e enviar de volta outras pessoas. Hospitalidade, para ele, virou mais que um dom (embora o seja) ou um dever cristão: é estilo de vida.
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Assim, com os recursos que adquiriu ao longo da vida dura como trabalhador e com a aposentadoria – tendo seus filhos já formados, casados e bem encaminhados – seu Argeu foi aumentando a casa onde vive há muitos anos e ali acomoda as “visitas”, incluindo amigos, irmãos da igreja, familiares que vêm e vão o ano todo para as mais diferentes ocasiões e pelos mais variados motivos. Além disso, ele hospeda pessoas (conhecidas ou não) que vêm de cidades circunvizinhas para se consultar no hospital da cidade, e faz todos os traslados com sua Paraty (da rodoviária, para casa, para o hospital, para casa e para a rodoviária de novo), com a praticidade de um especialista.
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Nos dias em que fui recebido como hóspede na casa de seu Argeu, tive a oportunidade de ver e provar muitas coisas. Passeei (e corri) pela bonita cidade de Vitória e sua região de belas praias e lindas serras; ajudei a celebrar o casamento de meu amigo Evandro com Kênia (a filha caçula de seu Argeu); conheci gente diferente e também uma cultura diferente da minha – embora todos sejamos brasileiros, cada vez que se viaja pelo Brasil, se percebe que temos muitos “Brasis” dentro do Brasil (como diria Carlinhos Veiga). Mas, sobretudo, também tive tempo para parar e contemplar. E via o seu Argeu, indo de um lado pro outro e tendo tempo de servir, conversar, atender pessoas e ainda ser pai, marido, sogro, avô, irmão e anfitrião no meio daquele agito todo. Quando eu acordava, ele já tava no batente há um bom tempo. E pensava comigo: “Esse homem não pára, Meu Deus! Será que tem idade e saúde pra essa vida? Como será que ele consegue?”.
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Mas, para além da impressão vaga e superficial de um senhor aposentado e bastante ativo, vi também um homem sensível, sincero, de olhar atento, bastante objetivo e direto no falar, preocupado em saber se tudo está indo bem, nos “conformes”, se seus convidados estão sendo bem tratados e, mais importante, se estão se sentindo “em casa”. E o mais engraçado é que, nem de seu Argeu, nem de dona Célia (sua esposa e parceira de caminhada, batalhadora, também muito amorosa e hospitaleira) não precisei ouvir nada, nem sequer um “sinta-se em casa”, para efetivamente assim me sentir. A atitude deles falou mais alto, e eles foram fazendo com que me sentisse em casa e, logo, era como se, realmente, eu estivesse em casa. E não estava?
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Seu Argeu é, consciente ou não, um dos milhares de agentes anônimos da Missão Integral espalhados por esse país. E a gente que se envolve tanto com o “falar”, com a erudição e o ensino, acaba percebendo que exemplos como o dele são lições vivas do amor de Deus ao mundo; teologias ambulantes que se fazem no caminho, ao andar e viver com Deus e com o próximo. E percebo que, de fato, não é preciso tanto saber quanto é preciso viver o que se sabe, sem ostentar, sem “botar banca”, nem anunciar em outdoor. E que a revolução do reino já acontece a despeito dos intelectuais (burgueses de pança cheia) que pensam, planejam e orquestram supostas “revoluções”.
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A fé que se pensa não é uma entidade abstrata, mas é a fé prática, que só pode ser pensada e repensada na medida em que é vivida. Logo, antes mesmo que minha mente elabore, que meu discurso anuncie, a fé já estava ali, “movendo montanhas”, promovendo a justiça do reino, gerando esperança, aplicando o amor. E o que mais me encanta (e me inspira na vida de crente) é saber que por aí há tantos outros como seu Argeu, pedras vivas que edificam a Igreja que não perdeu de vista o Reino, professores do agir, que ensinam sem saber, que abraçam sem perguntar e que amam sem fazer alarde.
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Jonathan

sábado, 21 de maio de 2011

#Nouwen: Orações sem palavras

Hoje orei sem falar: “Pai, que minha vida se abra para Ti, sem reservas, medos ou relutâncias...”.
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Uma das percepções centrais no pensamento de Henri Nouwen é a da oração como “modo de vida”. Ou seja, orar seria para ele outro sinônimo para viver. Viver a vida deixando-se ser encharcado pela presença de Deus e por tudo o que ela envolve. Nesta percepção, orar é um ato do ser que se traduz em palavras, mas não somente em palavras. Pois palavras são, segundo Nouwen, “apenas um modo de expressar a realidade da oração” – talvez o mais recorrido na tradição cristã para a qual a palavra é tão importante (para muitos, imprescindível).
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Esta visão vai ao encontro de uma intuição muito pessoal (minha), fruto não só de experiências com a oração, mas da percepção de sua (in)eficácia no mundo real no tocante à vida humana e seus mistérios, onde as palavras nem sempre encontram “o sentido” ou “fazem sentido”. É a intuição de que a oração genuína acontece (antes) no coração e pouco pode ser captada pelo discurso. Aliás, normalmente somos traídos pelo discurso, que tende a mascarar (no cativeiro da linguagem) o que se passa no coração e que talvez os olhos e a expressão reflitam um pouco melhor, embora sempre parcialmente.
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Dessa forma, sinto-me impelido a, como Nouwen, “redescobrir os momentos de oração nos rostos do homem e nas formas do mundo em que ele vive”, de um modo que somente um contemplativo crítico e sensível da realidade pode fazer, despido das urgências de seu ambiente e da tendência comum em trivializar a oração, por um lado, tornando-a um ato mecânico-religioso, e de fetichizá-la, por outro, como uma “varinha de condão”. Quando paro para contemplar, por exemplo, algumas histórias de vida sofridas de estudantes (que trabalham de dia e estudam a noite, ou que estão em busca de trabalho) e lutam diariamente para conciliar múltiplas atividades, tendo de lidar com as muitas contingências desse estilo de vida, posso perceber nas expressões e olhares cansados, sonolentos, mas alegres, relutantes e esperançosos, muitas orações sem palavras, pequenos e singelos gestos de uma busca que não cessa e, na dificuldade, traz consigo inúmeros aprendizados.
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Então, em breves esforços de compaixão, oro também, sem palavras, com os olhos marejados ou esboçando um sorriso, na confiança de que o Senhor está entre nós, partilhando conosco de cada instante. Ali, absorto por emoções e pensamentos que pululam e gritam em silêncio, encontro Deus, parafraseando Nouwen, na brisa suave que vem da janela – relembrando que o Espírito sopra e age no silêncio e de que onde houver luta, também haverá esperança – na angústia e na alegria do outro e na solidão de meu próprio coração.
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Assim, ao invés dos “punhos cerrados” – imagem utilizada por Nouwen para indicar tensão e auto-proteção – ouso orar a Deus “de mãos abertas”. Pois, como diz ele: “Uma vida imersa em oração é uma vida de mãos abertas, em que você não se envergonha de sua fragilidade mas percebe que é mais perfeito um homem se deixar guiar pelo outro do que procurar prender tudo nas mãos” (Oração, p. 79. Grifo meu.). Portanto, na perspectiva de mãos que se abrem, orar significará abandonar-se diante de Deus, deixando de lado todo anseio por controle e abrindo-se para o maravilhoso e imprevisível mundo das possibilidades do Eterno, desejando um outro “eu” possível e crendo que “outro mundo é possível”.
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Jonathan

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Uma constante (e omitida) tarefa

Fazer discípulos e acompanhá-los numa trilha rumo à maturidade em Cristo: eis uma das constantes tarefas da educação cristã em meio aos mais variados contextos.

Mas isso não passará de utopia improvável – a formação de mentores (não somente pastores) capazes de levar a cabo esta difícil tarefa de unir evangelismo e educação cristã – caso não haja um treinamento teológico no âmbito da comunidade. Um treinamento que ultrapasse o nível da manutenção das pessoas nos estágios de fé em que se encontram (os chamados “sermonetes”) e se preocupe com a reflexão séria e profunda das Escrituras à luz da realidade vivenciada por aquelas pessoas, equipando-as para que sejam efetivos instrumentos (para o reino) no raio de alcance de seus relacionamentos com o mundo “lá fora”. Assim, discipulado deixa de ser um programa de treinamento a serviço exclusivo de uma funcionalidade intramuros, e passa a ser um lócus (continuado) de formação do discípulo para enfrentar os desafios da realidade extramuros.

Quando falo em treinamento teológico não me refiro apenas àquele tipo de treinamento que se ocupa da sistematização de dados da revelação visando a repetição disso em um “plano (lógico) de salvação”, por exemplo. Refiro-me a uma atividade mais modesta – porque reconhece os limites de suas cogitações, e porque o cogito (as idéias) é fruto de uma relação com o que é cogitado (Deus) – sem deixar de ser intensa, e mais divertida, sem deixar de lado a reverência, de interpretar, através da Bíblia, os modos de ser e de agir de Deus no mundo, e como isso afeta diretamente o nosso modo de sermos seus embaixadores, no mesmo mundo. Isto deve nos conduzir a uma intimidade e entendimento maior com (o conhecimento de) quem somos, de quem Deus é e da missão que nos vem sendo conferida.

Esta atividade, especialmente no mundo (pós-moderno) de hoje, deve passar pelo reconhecimento de que, quando fazemos teologia, utilizando a analogia de Brian McLaren, “somos vasos avaliando o oleiro, crianças questionando seus pais, formigas discutindo sobre o elefante”. Daí vem seu lado “modesto”, seu caráter essencialmente humilde, porque conta inelutavelmente com a graça de Deus e o sopro de seu Espírito sem os quais teologia alguma é possível, tampouco efetiva, na vida de ninguém.

Nesse contexto, se permitirmos que a teologia volte a sua vocação de ser, de acordo com McLaren, “uma exploração sem fim e na busca eterna pela verdade, pela bondade, e pela beleza de Deus e sua relação com o nosso universo e tudo o que nele há”, então ela será “maravilhosamente ressuscitada por nós” , como tarefa de todos, não para substituir o lugar das Escrituras (como parece ser o receio de alguns), mas para nos ajudar a entendê-las e aplicá-las melhor. Sem isto, possivelmente teremos não apenas mentores rasos (superficiais), mas discípulos rasos e evangelistas rasos.

Portanto, aceitamos a tarefa de “fazer discípulos” não como parte de um programa para o crescimento da “minha denominação”, nem tampouco confiando no “braço forte” da igreja contra os seus supostos “inimigos” (os pagãos), que nos esperam no mundo para o confronto (e a esperada decisão por Cristo) final. “Fazer discípulos” é uma tarefa que só se realiza no temor Daquele que capacita os chamados, e na confiança perene em suas palavras: “Estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos”!

Jonathan