segunda-feira, 29 de junho de 2009

Nutrir a coragem de ser quem se é

"Tão somente vivamos de acordo com o que já alcançamos" (Filipenses 3.16).

Tenho a convicção de que grande parte das dores do dia-a-dia das pessoas provém da não aceitação de si mesmas como são e de sua vida tal como ela é...

Nos vemos cercados de cobranças: em casa, para ser um bom pai, bom marido, bom filho, boa esposa; no cotidiano, para ser um bom amigo, um bom aluno, um profissional bem-sucedido, um ser quase-perfeito (polivalente) em tudo o que faz e diz.

Precisamos das cobranças, é claro; elas não deixam que nos acomodemos. Mas elas podem ter também o efeito contrário se não soubermos administrá-las bem. Podemos ser tragados pelas muitas cobranças do dia a dia...

Paulo é sábio em apontar essa questão. Avaliar sua situação, esquecer das coisas que para traz ficam, e avançar para o “alvo”, não implica em pular etapas, desrespeitar os níveis.

A vida não é como um vídeo-game: tendo a senha correta, você pode pular de fase. Não! Aqui, se nós tentamos pular de fase, tendemos a nos violentar, ou violentar os outros, quando não respeitamos seus próprios progressos e o nosso. Cada pessoa tem um ritmo... Identificar o nosso ritmo próprio de crescimento e respeitá-lo é também reconhecer que estamos inacabados, é curtir mais saudavelmente a sua vida.

Paul Tillich, que escreveu “A Coragem de ser”, diz nesse livro que: “Coragem é a afirmação do ser a despeito do não-ser”. Em outras palavras, é aceitar quem somos, não obstante o fato de ainda não sermos completamente quem seremos ou quem gostaríamos de ser... Não poderemos andar de acordo com Deus se não andarmos “de acordo com o que já alcançamos”, sem atender aos clamores da falsa urgência criada pelos outros ou por nossa mente de que temos de pular etapas.

Termino com uma frase de Rob Bell, para você pensar essa semana: “Você não poderá estar conectado com Deus enquanto não estiver em paz com quem você é, da maneira como foi feito e a vida que lhe foi dada”.

Jonathan

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Convertendo nossas ilusões através da oração

Vemos vez após vez nos Evangelhos como Jesus se retirava sozinho para orar, às vezes bem antes do amanhecer. Ao orar, Jesus se dava conta, cada vez mais, de que o Pai dos Céus era quem O enviara. Era Deus que lhe dava as palavras para dizer. Ele não requereu quaisquer “prêmios” de ministério; antes, simplesmente ouviu.

Só a oração nos permite ouvirmos outra voz, ser sensíveis a maiores possibilidades, encontrar um caminho para fora de nossa necessidade de ordem e controle. Então, as questões que parecem moldar a nossa identidade já não importam tanto: Quem diz coisas boas sobre mim? Quem não diz? Quem é meu amigo? E meu inimigo? Quantos gostam de mim? Quando fazemos de Deus o centro de nossa vida, a nossa percepção de quem somos dependerá menos do que os outros pensam ou falam de nós. Deixamos de ser prisioneiros do interpessoal.

De fato, orar mostra-nos como impedir o interpessoal de se tornar um ídolo. Orar faz lembrar-nos de que aprendemos a amar só porque vislumbramos ou percebemos um primeiro amor, um amor supremo. Aqui está o caminho do amor que transcende o interpessoal: “Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4.19). Encontramos liberdade quando somos tocados por aquele primeiro amor, pois é aquele amor que nos arrebatará de nossa alienação e separação. É um amor que pode aquietar nossa compulsão por acumular bens e fazer de conta que podemos organizar o futuro. É o amor que nos permite amar os outros.

Orar torna-se, então, uma atitude que vê o mundo não como algo para ser possuído, mas como um presente que nos fala constantemente do Doador. Orar liberta-nos do sofrimento que vem da insistência em fazermos as coisas do nosso jeito. Orar abre o nosso coração para receber. E orar refresca-nos a memória para percebermos como outras pessoas revelam-nos o presente da vida. (...) De muitas maneiras, orar torna-se uma atitude perante a vida, de abrir-se para um presente que está sempre vindo. Criamos coragem para permitir que aconteçam coisas novas, coisas sobre as quais não temos controle, mas que agora se nos mostram menos ameaçadoras.

Henri J. M. Nouwen
(Texto extraído do livro Transforma Meu Pranto em Dança).

terça-feira, 23 de junho de 2009

E se tudo terminasse com o "fim" (II)

Agora pense um pouco mais...

Porque toda essa orla terrorista e determinista de olhar para Deus, o Universo, e o “fim” de tudo, me fazem pensar: Por que devo crer num Deus que fez tudo isso e agora supostamente deseja destruir tudo? Não seria contraditório pensar que esse mesmo Deus, que no princípio disse que o que foi por ele feito “era muito bom”, e mais, que o ser humano, a quem ele entregou aquilo, as demais coisas da criação, que era boa, e a quem ele disse ser sua “imagem e semelhança”, agora é parte integrante de seu plano de, por vontade própria, aniquilar tudo, porque “tudo” saiu fora de seu propósito? Ora, mas qual é o sentido de pôr fim em algo “criado com sentido”?

Eu, particularmente, me vejo às voltas com essas questões e, olhando para minha própria vida, olhando para os efeitos da ação de Jesus Cristo nela e na vida de meus irmãos (na fé e os semelhantes) e de tantos outros antes de nós, conforme testemunha a história, não consigo pensar que haja um sentido real para isso tudo, e até mesmo para crer que existe um Deus, o amoroso arquiteto, se tudo, afinal, foi feito para “acabar”.

Que todo o amor e a beleza, que toda a alegria e celebração, que toda a dor e a tristeza, as lágrimas vertidas, os sorrisos e abraços verdadeiros, as horas de inquietação, a solidariedade no infortúnio, o custoso processo de crescimento e amadurecimento nessa grande fornalha de transformação que é a existência, as lutas, as perdas e as vitórias, tudo isso não tenha nenhum sentido de construção e razão, pelos quais aqui estamos e pelos quais num mundo melhor viveremos.

Por isso tudo, para mim, ainda crer nesse Deus, significa crer numa verdade mais profunda contida na Revelação. Verdade não toda ela acessível, pois se assim fosse não seria “Verdade”, mas verdade como convicção de uma vida vivida pela graça e na presença daquele que é a Verdade, Jesus Cristo; uma vida que só tem sentido porque ela tem “um sentido”, isto é, porque, ainda que ela, permeada por nossas obras, não seja uma “preparação linear e cumulativa da Jerusalém celeste”, parafraseando Jacques Ellul, a Jerusalém celestial não é negação, nem representa a destruição, mas a plena restauração dessa vida.

E essa plena restauração é o alvorecer da novidade, pela voz daquele que a carrega: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21.5). De modo que, para mim, pensar no “fim”, não é pensar na destruição completa, mas na consumação, na vinda plena do que é perfeito. Não é o desaparecimento de tudo o que é num “céu”, mas é a reconciliação de todas as coisas pela imersão de uma nova cidade, a Jerusalém espiritual, que desce dos céus, na antiga ordem e antiga cidade, negação da vida, mas ainda lugar que abriga, paradoxalmente, não a plena, mas um relance da expressão do Reino de Deus.

Essa vida tem um sentido!

Jonathan

(Texto escrito “ao sabor da pena”, para a aula de Novo testamento 7 – Apocalipse, ministrada aos alunos do 4ª ano de Teologia do ISBL – Centro Educacional Evangélico).

E se tudo terminasse com o "fim" (I)


Imagine...
1.
Que tudo o que você conhece, viu e crê até hoje; que toda a forma da criação, as belezas naturais, as belezas artificiais; que o ser humano, seus valores, convicções, relacionamentos, amores, paixões, ódios, sonhos, desejos; que o mundo, sua multiplicidade de cores, de raças, de culturas, de geografias, de histórias; que o universo, em sua imensidão, grande parte senão a maioria dela desconhecida; com toda a compreensão possível e com todo o mistério insondável, tivesse vindo do nada... Eu pergunto: você acreditaria nesse universo?
2.
Agora, pense que tudo isso e toda a complexidade dizível e indizível, tivesse mesmo sido criada por Deus. E que você, como parte disso tudo, ainda que como um “grão de areia no olho de um furacão”, tivesse sido criado de uma forma especial, única, com uma vida que só poderia ser vivida por você e por mais ninguém, com as escolhas por você feitas, com a família e o contexto em que você nasceu (afinal, nem tudo é sua escolha, certo?), e tudo o que a partir de você passa a ser gerado: outras vidas, família, um universo todo ele constituído, que tem a ver com o todo, mas que tem a ver também com você, suas habilidades, inabilidades, qualidades e defeitos...
3.
E você tem um chamado, dado especialmente pelo Criador, para realizar coisas muito boas em prol da criação dele, e do projeto que ele tem para essa criação. Você então descobre que pode, sim, até ser “apenas uma parte”, mas uma parte que tem uma importância especial em toda essa engrenagem. Deus escolheu te criar e te amar especialmente, e te vocacionar para uma missão muito peculiar Dele.
4.
Pois bem. Agora pense tudo isso na perspectiva de que um dia haverá um fim. E de que este fim, como creram muitos de nossos antepassados, está muito próximo, cada vez mais, não sabemos quando, nem como, mas esse fim virá. E conforme a tradição que recebemos, esse fim será “apocalíptico”, estrondoso; Deus virá com seus anjos e todo o seu esplendor e colocará fim em tudo isso, afinal, tudo está definitivamente corrompido, desde a queda, depravado, como crêem os “ultracalvinistas” ou os profetas do destino pré-determinado de plantão. Esse fim é iminente; nada poderá detê-lo; aliás, tudo o que o ser humano efetivamente constrói aqui contribui apenas para apressar a urgência dessa hecatombe celestial.

(Continua...)
Jonathan

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Amor mais forte que a morte

Há uma semana atrás partiu o pai de meu irmão Raoni, Joaquim Borges Pinto, a quem também considero um pai "por tabela". O texto abaixo é a transcrição das singelas palavras que tive o privilégio de deixar à família e amigos por ocasião da cerimônia fúnebre. Na mesma cerimônia, um amigo também leu um texto escrito pelo próprio Joaquim há alguns anos atrás. Ele demonstra não só sua criatividade, mas também seu exemplo de companheirismo e como semeador de esperança. O texto se encontra no post logo abaixo deste.
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Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Como está escrito: ‘Por amor de ti, somos entregues à morte o dia todo, fomos considerados como ovelhas para o matadouro’. Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Romanos 8.35-39).
Sempre acreditei, contra todas as falsas expectativas e os falsos sentimentos, que o AMOR é a mais sublime e necessária de todas as virtudes, marca indelével da imagem de Deus em nós... Não porque seja um sentimento, mas porque é e se traduz em ação! Ação que nunca julga se é justo ou injusto pagar, com a própria vida se preciso for, para que outros vivam. Por isso o amor é permeado pela dor e a incompreensão. Que razão, por mais arguta que seja, consegue compreender o amor?

Jesus foi essa pessoa... permeado de incompreensão, de dor, de amor – e por isso da maior alegria! A alegria que nada pode arrancar, pois não depende das circunstâncias. Por seu exemplo podemos hoje dizer, crer, esperançar: a morte não é o fim, é o começo! Nada pode nos separar do seu amor!

Joaquim, de modo prático, entendeu isso... Ele apreciou mais a vida do próximo do que a sua própria, e isso num mundo onde grande parte de nós preocupa-se apenas consigo mesma e faz disso a coisa mais importante da vida. Ora, foi o próprio Jesus quem disse: “Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos” (João 15.13).
“Perdemos um grande cara”, como disse o Ceará ontem nos corredores... É verdade. Mas o céu ganha também um grande cara, que orgulhou o Pai, deixando um exemplo lindo de integridade a muita gente...

Para muitos, a morte é o fim da produtividade. Eu, porém, creio que isso pode ser exatamente o contrário. Jesus também disse que “se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto” (João 12.24). E vejam que o significado pleno da vida e obra de Jesus só veio à tona após sua morte.

A morte não é o fim... Ela pode ser o início da fecundidade. Por isso quero viver na perspectiva de ser um semeador, para que um dia, quando o Senhor me levar, minhas sementes possam continuar florescendo e frutificando a 10, 100, 1000 nas vidas de outras pessoas... Isso muda um tanto nossa perspectiva, não é mesmo?

Henri Nouwen, um dos maiores exemplos recentes disso, foi quem disse: “Todos os homens e mulheres verdadeiramente sublimes que moldaram nossa maneira de pensar e agir produziram frutos que eles mesmos não puderam ver ou prever”.

Creio que todos aqui concordam que o Joaquim foi um desses seres humanos sublimes... Seus frutos ainda permanecerão por muito tempo nas vidas daqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo e de conviver com ele: família, amigos, companheiros de luta, gente que ele ajudou...

O amor é mesmo mais forte que a morte, vocês não acham?

E que Deus possa consolar e dar esperança aqueles que ficam, para seguirem suas vidas longe da mediocridade, marcados pelo exemplo de luta, coragem e altruísmo deixado pelo nosso amado companheiro Joaquim!

Fraternalmente,
Jonathan

Eu queria...

Eu queria...

Que uma brisa vinda do sul a mim trouxesse a Dulce, a Olga e a Roseli, e que nas asas da imaginação encontrássemos o Wanderley e o Paulo;

E então, nos oníricos caminhos dos sonhos buscássemos o João e o Silvio. E assim, juntos, cavalgaríamos Pegasus e avistaríamos a Regiane à sombra da árvore do fruto sagrado e mais adiante o velho Irineu sentado no Caminho de Compostela e que, por sua fé, flanaríamos até o Joseph e o Josué que, juntos, filosofariam sobre o sentido da existência.

Aí todos nós trilharíamos sobre as plácidas águas do mar azul. E lá, no fim do azul do mar, dormitariam o Celso e o Negão em seus devaneios sobre a pureza das crianças...

Ahh! As sendas das purezas... depararíamos com o Wander, o Jair, o Marcão e o Ademir envoltos no véu sacro da sabedoria.

Mas eu queria chegar no topo da montanha impossível. Era preciso juntar todos os estóicos e os bravos. Eis que, num átimo de tempo surgem dourados por brilhos estelares, o Tom, o Sérgio, o Benê e a Rosilene.

Seria, pois, a hora da ascensão ao cume; e um tosco pássaro branco viria dos confins dos sertões e nos levaria em suas asas, como num raio de luz, às bordas da montanha impossível e, de lá, trombetearíamos aos quatro ventos:

Um outro mundo é possível!

Joaquim Borges Pinto
(Escrito em 26 de março de 2003)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Inquietações, silêncio, presença

"Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, pois naquela se vê o fim de todos os homens; e os vivos que o tomem em consideração" (Eclesiastes 7.2).

Prefiro o ar inquieto do quarto de uma pessoa solitária, povoada por pensamentos, silêncio e pontos de interrogação, do que o ar ilusivo de um auditório iluminado e cheio de pessoas ouvindo respostas fáceis e fúteis a perguntas para as quais, muitas vezes, não há resposta, pelo menos não assim... infantilmente. As respostas que me apetecem não são aquelas que cabem em uma caixa, mas aquelas que transbordam os odres quando estes não mais servem, não para contê-las, mas para lidar com elas.

Não se "contém" respostas, mas administra-se bem ou mal nossa capacidade de conferir algumas delas, reconhecendo a provisoriedade de nossas formulações. Num mundo carente de respostas, não podemos deixar de formulá-las, não é este o ponto; precisamos, sim, formulá-las com cuidado (para não ser leviano com a dor dos outros), humildade (para reconhecer que não temos jeito pra tudo) e honestidade (pois a melhor resposta pode ser o reconhecimento de que não temos resposta).

Esta semana, enquanto estava ao lado de uma amiga que acabara de perder seu marido, vi-me envolto por essa "incapacidade" - não por não saber o que dizer, mas por saber que qualquer coisa que dissesse teria pouco ou nenhum efeito naquele momento. Num dado instante, uma funcionária entrou no quarto do hospital (onde estávamos) e disse: "Não chore, não fique assim, ele descansou, foi melhor". Melhor, é mesmo? "Era melhor ter ficado calada", pensei, e só ter dado um abraço nela, por exemplo. O que a percepção de que "foi melhor" muda a dor de quem perde, de quem fica? Então, fiquei ao lado dela, chorei junto, ouvi suas elaborações de luto. A presença é muito mais significativa que as palavras. Nossa ânsia furtiva por falar, por "dar respostas" nos cega para a beleza e efetividade da simples presença. Talvez Deus não tenha nenhuma palavra específica para "melhorar" minha dor circunstancial, mas, pela fé, eu posso estar certo de que tenho sua presença: misteriosa, silenciosa, incompreensivelmente confortadora...

Perguntas são formuladas no lamento, perguntas que encontram a face fria do silêncio: "Até quando, Senhor? Esquecer-te-ás de mim para sempre? Até quando ocultarás de mim o rosto? Até quando estarei eu relutando dentro de minha alma, com tristeza no coração cada dia?...." (Salmo 13). Que a resposta possa eu mesmo (e cada um) encontrar, no fundo do ser, soprada pelo Espírito: "No tocante a mim, confio na tua graça"... resposta de um coração choroso, relutante, duvidoso, mas, paradoxalmente, muito confiante. Confiança que não se expressa num otimismo ingênuo, nem em palavras bonitas, mas na certeza quem sabe inquieta, silenciosa, da presença de Deus.

Jonathan

Inquietações, inquietações - Por Ricardo Gondim

Quem são homens e mulheres para que te lembre deles? Onde te escondeste, ó Senhor, que não invades logo esse teatro de horrores? Por que não terminas com o ato macabro que se arrasta além do tempo? “Não se te dá que morramos”? O preço que cobras por nos teres criado imperfeitos não é alto demais? Existe outro mundo possível? Por que as antecipações do Reino foram imprecisas e, rapidamente, se esfarelaram em instituições adoecidas pela fome de poder?

Por que as forças do mal se reproduzem como amebas? Forçados a viver com paradoxos, os humanos sofrem debaixo da burocracia de um Estado frio; satanicamente manipulado por lógicas nobres. Mas existe uma lógica que exige o choro de criança, o luto de mãe pobre e o abandono de idoso? Tal coerência já deveria ter sido soterrada há milênios. As masmorras, os hospícios, os patíbulos, são monumentos que escarram na cara da humanidade.

Tateio em busca de respostas. Entorpeço a alma diluindo a verdade. Inebriado por quimeras, sigo iludido com a grandeza humana. Com a mão direita canibalizamos, com a esquerda, escrevemos poesia. Fazemos guerra para trazer paz. Vaidosos, nos consideramos um pouco menores que os anjos. Não vemos nossa face desfigurada; somos monstros de iniquidade.

O caminho não desemboca na estrada. O rio não alcança o oceano. A estrela não explode o universo. O tempo não fraciona a eternidade. A pergunta não esgota a verdade. O afeto não redime o ódio. A nostalgia não recupera o passado. A clemência não explica o holocausto. A ciência não alcança o inconsciente. Não há século que alivie o mal de cada dia.

Ricardo Gondim
Extraído de: www.ricardogondim.com.br

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Transgredir - por Paulo Brabo

Transgredir, numa palavra, é fazer a narrativa avançar. Trata-se literalmente de “transpor uma linha”, “cruzar um limite”, mas não é coisa que esteja atrelada a qualquer necessidade ética ou nuance moral. É devido a esse agnosticismo moral da transgressão que o único valor absoluto abraçado pela narrativa é ela mesma, isto é, que a história seja contada.

Dito de outra forma, transgredir não equivale, de modo algum, a pecar; transgredir é exercer uma liberdade de escolha que é sempre terrível, porque cada escolha pode ter intenções e resultados bons ou maus. É por isso que se diz de quem transgrediu que “conheceu o bem e o mal”, porque sua escolha poderá ter resultados bons ou ruins – ou, mais propriamente, porque o transgressor terá de arcar com as consequências tanto boas quanto más da sua decisão.

Em termos narrativos, portanto, transgredir equivale a viver. Pedir um favor, dar um presente, declararar amor, declarar guerra, fazer amigos e ajudar um desconhecido – bem como atitudes puramente negativas e cautelosas como o recolhimento e a abstinência – envolvem, cada uma a seu modo, alguma modalidade de transgressão. O dilema moral não reside em transgredir ou não, mas em transgredir de que forma; isto é, de que forma fazer a narrativa avançar.

O médico transgride quando se interpõe no caminho da doença, o bombeiro transgride quando se interpõe no caminho do fogo; a viúva pobre transgride quando passa dia e noite exigindo justiça na porta da casa do juiz corrupto, e o juiz transgride quando faz justiça para aplacar a insistência da viúva. Se Romeu e Julieta não tivessem transgredido, reconhecendo seu amor diante um do outro e do mundo, seus descendentes correriam céleres e vivos entre nós em linhagens independentes; porém amaram e morreram, isto é conheceram o bem e o mal. Deus, naturalmente, é o mais assíduo e mais apaixonado transgressor, porque criou-nos o homem à sua imagem e semelhança e aqui estamos eu e você. Cada protagonista tem o conflito que merece.

Não devemos, portanto, cair na armadilha da serpente e procurar, nesta que é a narrativa primordial da transgressão, indícios de um pecado original, porque – não bastará nunca repetir – o pecado original não está no original. Neste que seria o momento ideal para fazê-lo, o texto irá se recusar, até o final, a chamar de pecado o que está prestes a acontecer. Daqui a um momento Adão e Eva terão transgredido e Deus dirá “agora o homem é como nós, conhecendo o bem e o mal”. Ou seja, o homem é como Deus no que transgrediu, e não no que pecou. Com Deus e como Deus, terá de arcar com as consequências da sua transgressão.

E, como homem, terá de arcar com as consequências do seu pecado. O pecado no entanto, não é resultado, causa ou efeito da transgressão. O pecado é injeção da serpente.

Paulo Brabo

Extraído de: http://www.baciadasalmas.com/

terça-feira, 2 de junho de 2009

Carta à minha comunidade

Queridos irmãos e irmãs,

Tem sido muito gratificante participar desse processo de "desenho" de nossa caminhada para adiante, que não é a mera nomeação e/ou criação de coisas como entretenimento, mas uma oportunidade real de dar "uma cara" para uma comunidade que é nova e que vem aprendendo, às duras penas talvez, mas com maturidade até aqui, com os erros do passado e algumas repetições deles no presente, bem como com os muitos (e superiores aos erros) acertos que temos tido, pela graça do Pai. É bonito ver que Deus tem nos moldado a cada dia de um modo muito peculiar, e nos incomodado a descobrir nosso papel como igreja no lugar em que Ele mesmo nos colocou, sem necessidade de comparações ou "inveja" de outros modelos.

Como uma comunidade pequena, ou uma "família", como temos dito, é muito mais comum a vivência calorosa de crises, problemas e demandas e de uma forma muito próxima, como vive mesmo uma família. Estamos muito mais sujeitos a ter de lidar com ciúmes, desentendimentos, chateações e mágoas que uma "mega-igreja", por exemplo, que já possui toda uma estrutura de funcionamento capaz de manter muitas pessoas à distância dos "problemas" que ocorrem nos bastidores, que, sabemos, todas elas têm. Nossa diferença é que não podemos esconder coisas nos bastidores, pois os bastidores são vividos por quase todos e cada um de nós explicitamente. Não vejo isso como demérito, mas como oportunidade de crescimento.

Respeito e até entendo aquelas pessoas que preferem o conforto morno e descomprometido de uma comunidade que te oferece tudo, ou às vezes do compromisso com algo já bem estruturado e organizado. Deus fala e age por meio deles também, eu creio. Mas se sempre me for dada a possibilidade de escolha, preferirei os calorosos braços da comunidade pequena e tudo o que a vida nela implica, pois sei que o ônus pode ser maior, mas o crescimento também o é, e as alegrias que certamente experimentamos por partilhar de um jeito peculiar de ser humano e de ser igreja, de um modo tão abençoadamente entrelaçado que nos envolve e nos convoca ao comprometimento, também o são.

Quero dizer que nossa comunidade não é e nem será o melhor lugar do mundo para estar por sua possível super-estrutura ou a proteção que pode nos ofertar dos "males" de ser-no-mundo, mas por ser uma realidade reveladora do que é o ser-no-mundo e o ser-em-Cristo, e uma grande porta para nos tornarmos, dia a pós dia, pessoas melhores, servos mais compassivos, mais sábios e abençoadores, mesmo através dos erros. As pessoas "lá fora" NÃO ESTÃO em busca de "supercrentes" como modelo (aliás, elas estão fartas deles), mas de "gente como a gente", cuja aproximação de Cristo nos faz ainda mais gente, porém uma gente redimida, mas inacabada e, por isso, em busca da plenitude.

A vida em família pode ser tão fascinante quanto é assustadora. E talvez o fascínio resida exatamente no fato de para onde corrermos lá estaremos, não há como fugir. Assim, por que não encarar, com honestidade, humildade, amor, temor e tremor? Tenho orgulho de fazer parte da Igreja do Caminho, e continuarei tendo, mesmo que Deus me conduza por outros "caminhos", longe dela, algum dia... é muito bom e gratificante ser parte daquilo em que claramente se vê a mão graciosa e amorosa do Pai!

Jonathan