“Agora conheço em parte, mas depois conhecerei plenamente, assim como também sou plenamente conhecido” (1Co 13.12b).
Em 1952, Paul Tillich publicou A coragem de ser, que ainda hoje é considerada por muitos (e por mim mesmo) sua obra-prima. Como outras de suas obras, esse livro foi oriundo de conferências que o autor deu na Universidade de Yale dois anos antes. Seu objetivo na obra foi o de analisar a fé a partir da coragem – no sentido ontológico, como uma qualidade do “ser” de alguém. Embutida na reflexão sobre o ser, está a questão do “não-ser”: aquilo que eu sou e aquilo que eu não-sou são duas realidades que formam a minha existência.
Nisso consiste a principal fonte de sua ansiedade: a experiência de ser tendo a “consciência existencial do não ser”. Em outras palavras, trata-se da consciência de que meu ser tem limites, começando por limites internos (físicos, psíquicos, emocionais, etc.), passando pelos limites externos (os de “seu mundo”, de sua situação social, de sua cultura), até chegar aos limites existenciais (a finitude como o seu limite-mor).
A ansiedade básica do ser humano nasce então da constatação sobre aquilo que ele não é: não-tão-lindo, não-tão-santo, não-tão-inteligente, não-tão-perfeito. Quando essa constatação se confirma como certeza, a ansiedade pode se transformar em desespero (“sem esperança”, a falta de sentido se torna então vitoriosa). É compreensível, então, que “toda a vida humana possa ser interpretada como uma tentativa contínua de evitar o desespero”. E, na maior parte do tempo, o ser humano consegue. A questão é: como?
A resposta de Tillich é: evitando o ser! Ou seja: evitando encarar a si mesmo como “si-mesmo”, projetando um alter-ego. O antídoto para o desespero passa a ser, assim, a auto-ilusão, em que, nos termos de Arthur Danto, “não ocupamos nosso interior, mas vivemos ingenuamente no mundo”. Em termos práticos, ornamentamos nossa aparência com maquiagem, photoshop ou botox; acumulamos títulos, posses e posições para forjar nosso “ser social” (o que somos para os outros); criamos mecanismos psicológicos e neurolinguísticos para afirmar uma persona que só existe em nosso mundo de desejos e projeções. Tudo para que os outros gostem mais da gente e nos aceitem, e nós também.
E, vejam, isso nada tem a ver com o desejo de e o impulso para ser melhor em todos os sentidos. Pois, para isso, é necessário sim uma dose de autoafirmação, de luta consigo mesmo, de inquietude e busca de superação. Isso é saudável e faz parte de nossa “evolução” (essa palavra é ruim, mas não achei outra) como pessoas. Esse impulso e desejo se tornam destrutivos, como salienta Tillich, caso se queira evitar a todo custo o risco de insegurança, imperfeição ou parcialidade e incerteza que rondam nossa condição, além da própria realidade de quem somos e de quem não-somos.
Dessa forma, Tillich afirma que a “boa vida”, a vida sã e humanizada, é a vida corajosa, isto é, a vida que pode ser afirmada em sua integridade, a despeito de suas ambiguidades, imperfeições e da própria morte que a cerca. Nietzsche, como sabemos, chamou isso de amor fati (amor ao destino ou a vida a despeito de quaisquer condicionalidades). Elevou isso, porém, à “vontade de potência”, paradoxalmente projetando um homem superior (um “super-homem”) e, como tal, incapaz de reconhecer suas fraquezas e de aceitar as dos outros.
O que Tillich chamou de “a coragem de ser”, porém, nos conduz a esse lugar de aceitação e autoafirmação do ser “a despeito de” não-ser. Reúne ao mesmo tempo uma atitude passiva, de aceitação do ser imperfeito ou do “ser como uma parte”, e uma atitude ativa de afirmação do ser como “si próprio”, e não como outro qualquer. O equilíbrio entre as atitudes passiva e ativa são fundamentais para a integridade e sanidade desse ser. Uma sem a outra conduzem a extremos: aceitação sem afirmação gera resignação (ou pior, auto-comiseração); afirmação sem aceitação promove a auto-ilusão. E os extremos, como já disse certo sábio, são inimigos da vida.
A coragem de ser de Tillich tem inúmeras outras implicações para a fé, como, por exemplo, a coragem de “aceitar-se como sendo aceito, a despeito de ser inaceitável”; o que teologicamente pode ser descrito como graça. A eficácia da graça de Deus na vida humana depende da aceitação de nossa ineficácia e de nossa insuficiência. Minha preocupação aqui reside, porém, em que implicações essa coragem de ser traz para a reflexão sobre os caminhos e descaminhos do saber. E, nesse sentido, as palavras de Paulo na epígrafe são indicativas de um caminho: o caminho da coragem do ser que se reconhece como uma parte, e que, ademais, sabe que o seu conhecimento é apenas parcial.
Isso soa como uma afirmação óbvia, e isso se trata de uma afirmação óbvia, mas que muitos de nós têm obviamente a ignorado. Na prática funciona assim: sabemos que nosso saber é em parte, mas agimos com o outro como se apenas o dele ou dela fossem. Na teologia, por exemplo, sabemos, por total inferência e afirmação de fé, que “Deus é grande”, que “Deus é eterno”, mas agirmos muitas vezes como se “o que pensamos” sobre Ele também fosse (incluindo tais afirmações). A assunção da parcialidade e do estado inacabado desse conhecimento, porém, deve sempre nos lembrar de que ele nunca é grande coisa. O silogismo “falo sobre Deus, logo sou grande coisa, e esse saber também é” é um dos mais fatais para a teologia e para a espiritualidade cristãs. Faz do lugar teológico um lugar de usurpação e, como tal, um lugar idolátrico, pecaminoso.
Como já vimos anteriormente nessa série, a comunidade de Corinto também vivia essa tentação por ser formada também por uma elite intelectual, muito ciosa de seu conhecimento. A poesia de 1Coríntios 13 vem para quebrar qualquer auto-ilusão a respeito desse lugar. Primeiro, porque afirma que o amor prevalece sobre o saber. Alguém pode saber falar a língua dos homens e dos anjos e entender todos os segredos do universo, mas sem amor tudo isso é reduzido a zero (v. 1-2). Segundo, porque enfatiza que o saber é sempre em parte (v. 8) – mesmo quando temperado com amor, como já enfatizei anteriormente nessa série. Terceiro, porque nos recorda sobre a finitude do saber: um dia, como tudo, ele também será aniquilado (v. 9).
Ou seja, nada desse conhecimento que hoje acumulamos e ostentamos com orgulho irá permanecer. Nada! Profecias? Desaparecerão. Línguas? Cessarão. Ciência? Passará. Teologias? Igualmente.
Essa mensagem pode aumentar o desespero de quem vive tomado pela angústia de não-ser, tentando a todo custo superar essa condição, sem primeiro passar pelo lugar humanizador da aceitação. Mas ela é, sobretudo, uma mensagem de esperança e libertação. É um grande conforto poder deitar a cabeça no travesseiro ao final de um longo dia sem esse peso tenebroso da autoafirmação (do que eu posso ser-saber) destituída de aceitação (dos limites desse ser-saber).
O saber é uma benção enorme, mas o não-saber, nesse contexto, é uma benção ainda maior, verdadeiramente libertadora! Porque não apenas damos espaço para o outro, que também é e também sabe parcialmente, como finalmente deixamos que Deus desempenhe o papel de Deus, nos relegando o maravilhoso lugar de “apenas humanos”. Então, a coragem de ser quem se é e como “uma parte”, de Tillich, une-se com a liberdade e “a alegria de não ser Deus”, de Tomás Halík no livro A noite do confessor. É um alívio, diz ele, não ter de substituir Deus como amador, ou (diria eu) como um teólogo aspirante a Deus. Assim, (finalizo com suas palavras):
'Quando temos a coragem de largar as rédeas que, de qualquer modo, não controlam nada, mas que, não obstante, nos arrastam continuamente – através de nossas ansiedades e arrogância, através de nossa grandiosidade, loucura e vaidade, ridículas, embora perigosas –, quando desistimos de nosso posto fictício de comandante do universo, sentimos um alívio enorme. A humildade e a verdade curam e libertam'.
Jonathan