Mil e tantos, é a marca dos amigos a que cheguei no Facebook recentemente. Não é uma marca a se gabar, e nem poderia; conheço pessoas que têm mais de quatro mil na sua rede; fora as figuras públicas, que podem chegar a milhares. E a “amizade” ali, muitas vezes (mas não sempre), se torna uma forma de escambo, de troca, quase uma versão daquela música do MC Leozinho, “se ela dança eu danço”; no caso, ali seria: “se ela curte, eu curto”. Por isso, muitos de meus “amigos” do Facebook veem e vão ao sabor do vento, ou melhor, do quão atrativo pareço a eles, e eles a mim; aliás, o Facebook é um excelente espaço para distinguir amigos de conhecidos, de admiradores, de aduladores, e de consumidores – sim, pois esses mil e tantos “amigos” que hoje tenho são os mesmos que consomem as coisas que compartilho, para o bem e para o mal. Então, quando o que só importa é o numero (de amigos, de curtidas, de compartilhamentos), significa que pouca coisa importa. Tenho amigos no Facebook, sim, mas as reais amizades acontecem fora dali.
Sempre fui muito reservado com amizades. Isso porque amizade, para mim, é como um solo sagrado: não piso no de muitas pessoas, nem são muitas as pessoas que pisam no meu. Compartilho esse espaço apenas com quem sei que provavelmente não vai profanar facilmente o solo – ainda que, é preciso estar ciente, como todo relacionamento humano, a amizade é passível de rachadura ou até mesmo de rompimento. Por isso, não é nada sábio achar que tudo está sempre garantido nas relações. A gente pode se surpreender conosco mesmos e com os outros.
Quero falar de amizade aqui a partir do diálogo: passeando pelo cotidiano, pela filosofia e pela Bíblia, para responder três questõezinhas básicas: O que é a amizade? O que significa ser amigo/a de alguém? E o que Deus tem a ver com isso?
A palavra “amor” aparece no grego sob três formas ou manifestações mais conhecidas: Eros (expressão que os gregos inventaram para designar o amor-paixão, e em seu sentido mais profundo, significa “cair fulminado de amor”); Ágape (palavra que os cristãos inventaram para designar o amor de Deus, o amor sem limites, também traduzida como “caridade”, ou “o amor liberado do ego”). O amor sobre o qual estamos refletindo não é nem tão complicado quanto Eros, nem tão raro quanto Ágape. Designa-se por outra palavra inventada pelos gregos, chamada Philia (amizade) e philos (amigo). André Comte-Sponville diz que Philia tem um sentido mais amplo, que é a “alegria de amar”.
A Philia, ou “a alegria de amar”, portanto, seria um estado de regozijo ou alegria, que não é tanto pelo que o outro faz, e sim pelo que ele/a é. Ou seja, é o regozijo, a satisfação pela simples existência do outro, do/a amigo/a. “Que bom que essa pessoa existe!”. A coisa legal da amizade é que ela tem exatamente essa leveza e esse frescor; nada pode ser forçado. Por isso, C. S. Lewis disse que era o menos complicado ou mais simples dos amores. Mas as escrituras nos ajudam a aprofundar o sentido desse “regozijo” da amizade. Quero destacar apenas o verso que provavelmente mais conhecemos: “O amigo ama em todos os momentos; é um irmão na adversidade” (Pv 17.17, NVI).
O melhor sentido para a palavra amigo (no original reah) é companheiro, aquele/a que faz companhia ou anda junto. O texto diz que ele “ama” (acompanha) em “todos os momentos” (tempos, circunstâncias). E o autor acrescenta na segunda frase que: na “adversidade” (tsarah: sofrimento, tempos difíceis), esse companheiro se torna irmão (ach: [tão próximo quanto] alguém que tem o mesmo pai e/ou mãe). No capitulo 18, v. 24, essa última ideia de algum modo se complementa quando ele diz que: “Quem tem muitos amigos pode chegar à ruína, mas existe amigo mais apegado que um irmão”. Na tradução “A Mensagem”, fica ainda mais claro: “Amigos vêm e vão, mas o verdadeiro amigo é mais próximo que um irmão”. O texto, portanto, nos ajuda a separar “amigos” (como os do Facebook) de “verdadeiros amigos”. Ele diz: o verdadeiro amigo é mais próximo que um irmão. O amigo-irmão, para Salomão, é aquela pessoa que faz um esforço para estar por perto e que a gente quer ter por perto, mesmo ou especialmente quando as coisas não vão muito bem. Às vezes o contrário acontece: o sofrimento afasta amigos, ao invés de aproximá-los. Mas, se afasta, ainda assim poderíamos chamá-los de amigos? Ainda assim seria uma manifestação do amor?
Recentemente eu li uma história, contada por Ique Carvalho em um de seus muitos textos sobre amor, que ilustra bem isso. Ali ele narra assim:
(...) Em junho de 2013, poucos dias antes do dia dos namorados, minha namorada terminou comigo. Eu fiquei sem entender. Voltei pra casa e durante todo o caminho me perguntava: “Por quê?”. A única coisa que vinha na minha cabeça era a voz dela dizendo: “Eu amo você”. Eu passei um mês sofrendo procurando respostas para o que estava acontecendo. Um dia, entrei no quarto do meu pai chorando e perguntei: “Pai, ela dizia que me amava. Então, por que ela terminou comigo?”. Ele respondeu: “Meu filho, quando alguém entra na sua vida e depois de algum tempo vai embora, pode ser qualquer coisa menos amor”. Eu disse: “Não dá para entender. Um dia, existe amor e no outro tudo acabou”. Ele respondeu: “Você nunca vai superar seus traumas se continuar procurando no amor uma lógica. Construa uma nova história”. Eu perguntei: “E de onde vem essa força pra começar algo novo?”. Ele respondeu: “Não se preocupe com isso. Todo começo vem de um final”. Uma semana depois, meu pai foi diagnosticado com uma doença rara e degenerativa que iria matá-lo em alguns dias. Minha mãe não o abandonou. Ela ficou. Meu pai saia toda sexta para comer pizza com dois irmãos. Quando ele parou de andar, meus tios começaram a trazer a pizza aqui em casa. Eles diziam: “Sem o seu pai, não tem graça”. E ficavam a noite inteira dando gargalhadas. Hoje, meu pai não consegue mais comer. Mesmo assim, toda sexta meus tios passam aqui em casa. Meu pai estudou em Ouro Preto-MG. Na formatura ele combinou com três amigos de se encontrarem de cinco em cinco anos. Este ano, meu pai não pôde ir porque ele não anda mais. Os amigos dele saíram do interior de Minas e vieram até aqui em casa. Todo formando tem uma foto pregada na parede na república que estudou. Os amigos do meu pai trouxeram a foto dos quatro. Pregaram a foto de cada um na parede do quarto e disseram: “Agora, a nossa república é a sua casa”. E combinaram que daqui cinco anos estariam de volta. Meu pai chorou. Meus pais completaram 47 anos de casados dia 2 de junho. Eles sempre dançaram nesse dia. Meu pai não consegue mais se levantar. Minha mãe entrou no quarto e colocou a música que eles dançavam. Ela disse: “Meu filho, traz a cadeira de rodas”. Eu perguntei: “O que você vai fazer?”. Ela respondeu: “Vou fazer o que seu pai faria por mim”. Eu busquei a cadeira de rodas. Minha mãe colocou meu pai na cadeira. Ela ajoelhou ao lado dele e disse: “Vamos dançar?”. Abraçou meu pai e fez a cadeira girar. Ela ficou ajoelhada a música toda. Meu pai chorava e ria ao mesmo tempo. Eles ficaram ali dançando e se divertindo. Eu voltei pro meu quarto chorando (...). [Ver texto completo AQUI].
Na amizade é assim: nem tudo tem a mesma “graça” se aquela pessoa não estiver por perto. E é importante que a gente diga e faça coisas para que nossos amigos saibam disso, por mais “estranhas” que sejam, enquanto é tempo. E quem sabe quanta oportunidade ainda terá? Dia desses tive um rompante e escrevi mensagens individuais para alguns caros amigos falando sobre como esta pessoa é importante em minha vida e quão grande é minha philia por ela. Uma amiga, sem entender muito bem a razão da declaração repentina, perguntou: “Você está passando bem?”. Outro, aproveitando para fazer graça, indagou: “Você já tomou o seu Gardenal hoje?”. Por mais hilárias que sejam, essas reações são sintomáticas de nossa falta de jeito nessas situações. Alguns de nós lidam melhor com atitudes que com palavras, elogios, ou afirmações de afeto; mas, às vezes, as palavras também são importantes, pois inseminam vida, reforçam nossas identidades.
Para resumir e finalizar, a história de Ique Carvalho me ajuda a unir os sentidos grego e hebraico, filosófico e bíblico, de amizade: Amizade ou Philia, como diz Comte-Sponville, é um regozijar-se mútuo por nossa mútua existência. “Obrigado porque você existe!”, diz o amigo; “bem vindo à minha existência” replica a amiga. Mas, onde existe amizade, há também o convite à partilha não somente dos momentos bons, lúdicos ou de prazer da vida; é um convite a partilhar também a dor, o luto, as incertezas e inseguranças que nos assaltam vez por outra. Em outras palavras, a gente precisa do amigo pra rir com a gente, feito bobo, de besteiras e coisas das quais achamos graça (rir “da gente” também faz parte); mas a gente também precisa do amigo ou da amiga que segure nossa mão e nos abrace quando o momento for de choro.
Tudo isso só é possível, sobretudo, porque a amizade, como todos os amores, é derivada do amor de Deus. Regozijar-se e lamentar pela existência do/a amigo/a, é se regozijar e lamentar em Deus, que o/a fez. Somos capazes de amor e amamos, como disse João, porque “Ele nos amou primeiro”. Isso me lembra da frase que li no livro O Amor, de André Comte-Sponville (Martins Fontes, 2013), que não é um cristão, mas certamente disse isso seguindo o espírito joanino:
“A graça de ser amado precede a graça de amar, e a torna possível”.
Oxalá o amor de Deus, e nossa amizade com Ele, continue possibilitando que sejamos amigos e tenhamos amigos em nossas vidas.
Jonathan