domingo, 9 de setembro de 2012

Palavras também dão sentido ao mundo

Poder da fala

É conhecida a ênfase de Tiago sobre a ação na vida cristã. Para ele, a ação dá vida à fé que move o mundo. Mas ele também mostra um complemento disso: palavras também dão sentido ao mundo... Os versos abaixo lançam mão de todo o problema a ser explorado no capítulo 3 (1-12) de sua carta: “Não tenham pressa alguma para se tornarem professores. Ensinar é um trabalho de alta responsabilidade. Professores são avaliados pelos mais estritos padrões. E nenhum de nós é perfeitamente qualificado. Nós agimos mal quase sempre que abrimos nossa boca. Se você conseguir achar alguém cuja fala seja perfeitamente verdadeira, você tem uma pessoa perfeita, no perfeito controle sobre sua vida” (Tg 3.1-2 – The Message).

Isso significa que, quando eu abro a boca, estou mais perto de errar do que em qualquer outro instante da vida. E só um ser perfeito é capaz de controlar a língua ou a fala totalmente. Ou seja, este pleno domínio simplesmente não existe, especialmente fora dos domínios da ação do Espírito.

A questão que me encabula é: como um órgão tão pequeno pode ter um poder tão grande sobre a vida e os relacionamentos humanos?

Comecemos analisando, por exemplo, a frase: “O que a gente fala tem poder”. Que poder é esse? Até onde ele atinge? Certamente a visão espiritualizada e superficial desse negócio não consegue captar o que isso significa. Não se trata nem de fetichizar, nem de demonizar a fala, e dar maior poder do que ela realmente tem. Mas de pensar no que, de fato, ela é capaz...

O texto de Tiago nos ajuda a aprofundar a questão, quando compara a língua a uma faísca, que pode atear fogo numa floresta inteira. Estando no meio dos demais órgãos, a língua é “um mundo de iniquidade”, que tem a potência para contaminar o corpo inteiro, e mais, todo o caminho de uma existência humana. Isso ajuda a entender melhor o exemplo do professor, por ele dado, e o peso da responsabilidade sobre o que alguém nessa posição diz.

Nós domesticamos todo tipo de animal, mas, segundo Tiago, somos incapazes de domesticar a nossa própria língua. Todavia, Tiago não está dizendo que a língua é o demônio, e sim que ela pode até transformar supostos “anjos” em pequenos demônios, exagerando um pouco. Seres humanos, porém, não são nem anjos nem demônios, são apenas humanos, e urge que reconheçam a si mesmos e do que são capazes em sua humanidade, seja para o bem ou para o mal.

E essa é a sacada que nos leva de volta à tese do começo – de que palavras também dão sentido ao mundo: tanto quando usada para fazer bem como para fazer mal. E Tiago não dicotomiza a questão da fala no binômio bem-mal, pois lembra que da mesma boca de onde procedem louvores a Deus, o Pai, procedem maldizeres às pessoas, criadas à sua imagem e semelhança. Com o ser humano é assim, paradoxal, tudo junto e misturado. Daí, é possível perceber que quando dizemos coisas que fazem mal ou bem a alguém, afetamos a saúde integral do corpo, o nosso e o do outro.

Uma frase que talvez Luiz Felipe Pondé diria ser “filha do politicamente correto”, é aquela em que alegamos ter dito algo estando “fora de nós mesmos”, ou “da boca para fora”. Bem, a menos que estivéssemos sob efeito de entorpecentes, sou obrigado a dizer que isso é uma grande balela. Ninguém fala nada “da boca pra fora”. Quando saímos com isso, portanto, ou é para sair menos “mal na fita”, ou para se justificar de um jeito aparentemente humilde, ou porque não nos conhecemos o bastante pra saber “o que é que há, o que é que está se passando com essa cabeça”, ou porque mentimos descaradamente mesmo, e... (complete você). Como se diz, a boca fala do que está cheio o coração. Ou, como disse Jesus, “o que sai do homem é o que o torna impuro” (Mc 7.20).

Mas Tiago não pára por aí. Ele não diz que está bom desse jeito. Pelo contrário. Ele defende que isso não pode continuar assim. Não podemos prosseguir dizendo por aí frases como “eu sou de Deus, eu sou de Cristo”, enquanto normalizamos a maledicência. Também não dá pra afirmar categoricamente que não compactuamos muitas vezes com ela. É preciso sempre desconfiar da fala, não dar todo o crédito pra ela, e nem tirá-lo totalmente. É preciso constantemente se perguntar: Do que a fala está carregada? A quem ela pode estar atingindo destrutivamente? Em que e a quem este “dizer” possivelmente edifica? O quanto posso estar dizendo isso apenas para agradar ou provocar desgosto?

Acredito que a palavra também dá significado ao mundo, e mais, que pode ajudar em sua transformação. A existência e o uso da palavra é, portanto, parte do propósito de Deus para a humanidade. Mas, como bem advertiu Eclesiastes, “há tempo para todo propósito debaixo do céu”. Há tempo de falar – e que a gente aprenda a moderar e liberar nossa fala no tempo adequado, em favor da vida e para gerar vida. Há tempo também de calar – tempo em que o falar atrapalha, tempo necessário para repensar o dizer e para desconfiar do que se tem dito, tempo para deixar um pouco de lado a fala e, quem sabe, começar a agir. Pois palavra sem vivência é palavra sem sentido: pode até causar rebuliços e prazeres mentais, mas não fecunda mais que o exemplo e a integridade de quem nem precisa dizer muita coisa para significar muito.

Jonathan

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Uma fé “fora da caixa”

fora da caixa

Escrevi estas linhas, motivado pela pergunta feita por amigos-irmãos de uma comunidade nascente em São Paulo, chamada “COLETIVObeta”. Na ocasião de minha fala e participação em uma das reuniões do grupo, iniciei considerando que a fé cristã não existe à parte do contexto histórico e cultural em que é concebida. Antes, é permeada, influenciada e modificada por ele. Logo, não existe fé “pura”, no sentido de incontaminada em relação ao ambiente, as pessoas, os coletivos, suas práticas, suas ideias, seus costumes, etc. De modo que esse negócio de “fé fora da caixa” pode não passar de uma perspectiva ingênua – já que todos nos encaixamos em algum esquema, quer admitamos ou não (como bem observou na ocasião meu amigo Hilton Isleb) – mas também (e penso que assim deve ser) uma tentativa de constantemente repensar e de novo situar a fé, de acordo com as transformações pelas quais o mundo passa e nós, mundanos, também passamos.

Assentindo positivamente com a proposta de meus amigos, traço aqui, em breves, algumas ideias sobre o que seria essa tal “fé fora da caixa”.

1. É aquela que se reconhece como dádiva e, portanto, que diz: Eu “estou na fé”. Não trata a fé como posse, porque se é posse a gente guarda na caixa, no armário ou embaixo da cama e a luz (de Cristo) não pode brilhar ali... A fé, definitivamente, não existe para ser “guardada”, mas para ser expressa, para brilhar e salgar.

2. É a fé que abandona a linguagem que diz “minha fé”, por entender que fé cristã se gesta comunitariamente. A conversão pode ser a razão pela qual passamos a viver na e pela fé, mas a comunidade é o que sustenta, desafia e impulsiona a fé a outras possíveis conversões. Ademais, fé que não se converte ao outro não pode ser chamada “cristã”. No máximo se traduz por uma crença, como uma opinião: você crê daquela forma, você crê em Deus, mas sua vida não se move do jeito de Deus. Ao modo como Tiago já dizia: Você acredita em Deus? Beleza! Mas deixa eu te avisar: até os demônios crêem e temem. No final das contas, se nada opera ou transforma, a fé é como um cadáver, uma fé necrófila – amiga da morte, não da vida.

3. É aquela que não pode simplesmente se perder, num vaivém de “tinha e agora perdeu” – pois se não é propriamente minha, vai se perder como? A fé que se perde é aquela que nem bem se achou, e é preciso então perguntar se o que se perdeu não pode ser essencial ao ser verdadeiramente achado na fé. Ser achado na fé é ser achado livre, aceito pela graça e amado como filho de Deus e firmado na esperança da consumação no reino.

4. É ainda uma fé que não teme os riscos, que não tenta se blindar contra o mundo nem contra a humanidade, a começar pela própria. É, portanto, uma fé frágil, tanto por habitar em “vasos” quebráveis, como porque está fora e não se furta de se expressar ao mundo, porque não se envergonha daquele que é a razão própria de sua existência: Jesus! A fé que não tem vergonha de Jesus não cria adornos para ele. Ela assume sua identidade radical como necessariamente mansa e humilde de coração, de um fardo que é leve e suave, mas também de uma atitude rebelde e causadora de problemas, pois veio trazer espada e não “paz” ao mundo – pelo menos não essa paz artificial e sem justiça que ele almeja muitas vezes.

5. Por fim, porque não “se ganha” e, assim, não teme “se perder”, a fé fora da caixa é uma fé chamada a pensar, discernir e, diariamente, reinventar a si mesma diante de Deus e de seu contexto. Isso significa que a fé fora da caixa é uma fé que, apesar do firme alicerce espiritual que tem em Jesus, não se despe da dúvida, da incerteza e da indeterminação próprias do viver humano, especialmente no tempo atualmente vivido. Antes, a fortaleza da fé é que ela é uma certeza em meio a incertezas (cf. Hb 11.1). Enfim, a natureza da própria fé a conduz para fora da caixa, pois não se pode aprisionar o Espírito, que é quem a vivifica. Esse é o grande problema que o Espírito gera para a pessoa de fé: é que ele é livre e atua em liberdade. Uma fé escrava, comodamente encaixotada, não se deixa orientar pelo vento do Espírito, pois é o Espírito quem promove a liberdade para se viver a vida de Cristo de modo autêntico no mundo. Quem tem ouvidos, ouça...

Jonathan

(Imagem: ideiaseacao.com)