Na vida cristã, felicidade não é objeto, nem fim e nem pretexto, mas fruto (não casual e não artificial) do encontro com Deus (consigo e com o outro) no caminho das desventuras bem-aventuradas da vida. Dessa forma, hoje posso dizer que não sou e nem me sinto tentado a ser discípulo do Cristo pela proposta fisiologista – e propagandística (desculpem o pleonasmo) – para “ser feliz com Jesus”. Primeiro, porque esta “promessa” inexiste no Evangelho. Segundo, porque nem sempre sou, estou ou me sinto alegre ou feliz, e isto não é nem de perto sinal de que deixei de estar com Cristo – está na hora de parar com essa balela doentia! Terceiro, porque você não encontra uma palavra sequer nos discursos de Jesus, ou dos apóstolos, mesmo os de ânimo, que tente mostrar uma realidade diferente do que ela é. O que vejo é um realismo esperançoso e uma esperança realista. Por fim, ainda tem o nó, que prefiro não desatar, de pessoas que conheço que garantem ter uma vida saudável e feliz sem nunca ter passado pelo apelo ou dito “eu aceito”. Há mistérios que nem a mais pretensiosa ou competente das teologias pode desvendar. E é muito bom que assim seja, do contrário não seria mais teo-logia e sim diabo-logia.
Tornei-me seguidor de Cristo pela misteriosa e graciosa atração por seu amor, demonstrado na cruz do calvário, e pela consciência que passei a ter, pelo Espírito, do consequente compromisso com o caminho da cruz. Se encontrei a felicidade nesse caminho é pela simples alegria de a ele pertencer, de poder ser chamado de e amado como filho, e pela imensa gratidão e contentamento que de mim brotam – não sem lutas, revoltas ou sofrimentos, afinal sou humano – em meio às mais variadas circunstâncias.
Para Paul Tillich, o que cria a alegria em alguém é a afirmação do “ser essencial” desse alguém a despeito de desejos e ansiedades.[1] Não estou seguro se concordo que a alegria é “criada”, pois isto pode dar certo tom de artificialidade ao processo; prefiro uma palavra que Tillich mesmo usa depois: aprendizado. Lembrando do que disse Paulo aos Filipenses: “Aprendi o segredo de viver contente em toda e qualquer situação, seja bem alimentado, seja com fome, tendo muito, ou passando necessidade” (Fp 4.12b – NVI). Isso mesmo, alegria é aprendizado. Dito isto, podemos retornar a Tillich:
Lucílio é exortado por Sêneca a fazer sua ocupação, o “aprender como sentir alegria”. Não é à alegria de desejos satisfeitos que ele se refere, porque a alegria real é “assunto sério”: é a felicidade de uma alma que é “elevada acima de todas as circunstâncias”. A alegria acompanha a auto-afirmação de nosso ser essencial, a despeito das inibições provocadas em nós pelos elementos acidentais. Alegria é a expressão emocional do corajoso Sim ao verdadeiro ser próprio de uma pessoa.[2]
Esta alegria se expressa no pranto tanto quanto no riso; e nos mais recônditos de nossa alma, ainda que muitas vezes ferida, triste, sem horizontes, existe uma alegria escondida, a alegria de que ser é o suficiente, pois felizes podem ser aqueles que aprendem que na vida não precisamos ter ou fazer tantas coisas. O mais importante é caminhar, e de modo mais despretensioso possível, para que os sonhos e as pretensões de Deus encharquem nossos corações, mobilizando-nos para uma jornada mais compassiva, sensível e agradecida.
A alegria de simplesmente ser-em-Deus nos ajuda a experimentar do gozo do trabalho e da vida material com mais naturalidade e menos apego, ilusão e dependência. Vale recordar aqui algumas das constatações do autor de Eclesiastes, de que “não há nada melhor para o homem do que desfrutar do seu trabalho, porque esta é a sua recompensa (3.22), e que “poder comer, beber e ser recompensado pelo seu trabalho é um presente de Deus” (3.13). Auxilia-nos, ainda, a aprender a como lidar melhor (e até debochar, sem grandes culpas ou neuroses) das eventuais convulsões do ego, vaidades e mesquinharias como sendo parte indissociável dessa arte (torta) de ser humano – levar a sério o pecado não implica em se levar a sério demais o tempo todo, o que pode ser tão doentio quanto o descaso para consigo e suas responsabilidades. Descobrir esta alegria é aprender a viver sabendo que basta a cada dia o seu próprio mal, e também o seu próprio bem, e a desfrutar dos pequenos, simples e belos momentos do cotidiano como sendo especiais e repletos de singularidade.
A esperança cristã, contudo, também é paradoxal; nela não se separam o gosto de viver a vida que se tem (aceitação) do anseio pela ressurreição e a vida eterna (inquietude). A ética da aceitação jubilosa, presente na visão trágica de Rosset, por exemplo, se dissocia da visão cristã quando se resigna ao provisório, quase como que dizendo que essa vida aí, da forma como é, está boa, e não se deve querer nada diferente disso. Segundo Rosset, a alegria é a “força maior” precisamente porque dispensa a esperança – entendida por ele apenas como atração pelo gozo de uma “outra vida” e, por isso, “força mais do que duvidosa”.[3] Entretanto, perguntaria a Rosset como a aceitação jubilosa pode resistir sem a esperança? É ela quem a alimenta; a aceitação só pode ser, por assim dizer, “jubilosa”, contente, porque não apenas aceita a provisoriedade em si, mas a provisoriedade do que é provisório. Em outras palavras, quero dizer que a esperança cristã aceita e convive com o provisório, mas não relega a ele a última palavra. Duvido que Rosset fique jubiloso com minha apropriação de sua aceitação jubilosa.
Por outro lado, a felicidade no encontro com Cristo, como temos visto, também incorpora a dimensão trágica na medida em que não a nega, mas propõe o enfrentamento e a convivência. É parceira das tristezas, injúrias e dores e, às vezes no “olho do furacão”, de modo incompreensível, ressurge como fênix, como “socorro bem presente”. Aqui talvez seja válida a recorrência (ainda que deliberada) a Rosset, quando ele afirma que esse “socorro da alegria” permanece, para nosso bem, misterioso, “impenetrável aos próprios olhos daquele que sente seu efeito benéfico”.[4] Segundo ele:
O homem verdadeiramente alegre pode ser reconhecido, paradoxalmente, por sua incapacidade de precisar com o que fica alegre e de fornecer o motivo próprio de sua satisfação.[5]
A felicidade, nesse sentido, faz (e se desfaz) em um misto de satisfação e alegria com e, aparentemente, sem motivo. Podemos estar obviamente alegres por uma linda razão, mas também “rindo à toa”.
Jonathan
Notas