segunda-feira, 28 de setembro de 2009

IV. Liberdade

Assim como a fraqueza, em um sentido, a liberdade também é expressão de nossa condição em Cristo – no sentido de que “para liberdade foi que Cristo nos libertou” (Gl 5.1) – bem como insígnia de uma caminhada, já que a liberdade é também vocação – “vós fostes chamados à liberdade” (Gl 5.13) – de modo que ela é uma tarefa ainda inacabada que orienta nossa vida e nossas ações no caminhar.

Particularmente a vida intelectual, para ser criativa, viva, produtiva, precisa de liberdade, que nos põe em movimento, não deixando que a estagnação tome conta. Estagnação e pensamento não são sinônimos ou companheiros de jornada. O pensamento estagnado implica em morte intelectual, não em vida. E há uma grande chance disso ocorrer quando nos acomodamos com meras repetições, reproduções do que os outros fizeram, pensaram ou disseram, e assim deixamos de pensar por nós mesmos, fazer nossas próprias sínteses, opções e trilhas. Isso é muito comum na igreja, e cada vez mais comum numa geração de jovens hiperconectada virtualmente, mas desconectada em matéria de pensar.

A liberdade é a carta de alforria do pensamento, que permite novos vôos, riscos e, por sua vez, novos olhares. Intimamente conectado com o que eu vinha dizendo sobre a fraqueza, o erro é também um campo fértil para a liberdade. Como diria Keith Jenkins, “a liberdade mora na casa do erro”. Quem dera pudéssemos errar sem medo, nem culpa, sendo livres na tentativa perene de acertar, sendo o acerto objeto de nossa perseguição, mas impossível sem a graça.

Por outro lado, sendo condição para o bem pensar, a liberdade não existe fora da disciplina, nem é parceira da perda total de controle. Nas palavras de Renato Russo, “disciplina é liberdade”. Ela não tem um fim em si mesma. Ela germina nas relações, lócus principal de seu exercício. Nesse lugar ela contra propósito, finalidade e aperfeiçoamento.

Primeiro porque Deus é o autor da liberdade, sendo a sua glória a finalidade máxima de sermos livres. Segundo, porque temos uma consciência própria, que precisa de liberdade para discernir bem a realidade, mas que, em terceiro lugar, se conduz e é moderada também pela consciência alheia, a qual nos põe na dimensão onde ser livre é ser respeitoso para com as limitações e interditos do outro, usando-as como termômetro do exercício dessa liberdade, que, embora more na casa do erro, simplesmente não sobrevive sem o amor.

Quarto: isso se dá dessa forma, pois, como diz Paulo, embora tudo me seja lícito, nem tudo me convém e nem tudo edifica ou constrói, e a liberdade visa a edificação. Assim, a largueza da licitude que margeia o âmbito da consciência própria deve ser relativizada à luz das limitações que margeiam a consciência do outro. O “bom” intelectual nasce do exercício de seu ofício em liberdade, mas sempre levando em consideração uma consciência e compromisso maior com o todo em relação ao qual ele se posiciona e se situa.

Jonathan

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

III. Fraqueza

É preciso ser muito “forte”, num sentido não muito convencional de força, para embarcar no mundo de fracos e fraquezas. Isso, pois nosso mundo é feito e disposto aos fortes, ou pelo menos os que “aparentam” ser. E onde a suposta força é celebrada e a fraqueza é rejeitada, não há lugar para os fracos e suas intragáveis demonstrações de pequenez e falta de virtude, aos olhos humanos.

Nessas horas aparece o conflito entre a humildade e a vanglória, a deficiência e a suficiência... Quero falar desse conflito aqui.

Em 2Coríntios 12, Paulo conta a história de um homem que há catorze anos foi arrebatado ao paraíso – se no corpo ou fora do corpo ele não sabia dizer – e que lá ele ouviu coisas indizíveis, que ao ser humano não é licito referir. Em certo momento, ele denuncia ser ele mesmo esse homem (v. 5-6), dizendo não se gloriar de tal feito, embora pudesse fazê-lo, já que se trata de algo verdadeiro. Mas que não o fez por uma razão simples: para se proteger contra os falatórios das pessoas... Imagine o que elas diriam, ou como reagiriam!

É nesse contexto então que ele diz o que mais quero chamar a atenção aqui: contra sua possível soberba, foi lhe dado um “espinho na carne”. Na tradução The Message, usa-se a expressão: “Dom ou dádiva de uma deficiência”. E a razão parece ser evidente: isso é para que você fique em permanente contato com as suas limitações!

Fico imaginando (já que é o que posso fazer): esse espinho pode ser a representação de qualquer coisa – a) uma deficiência física ou mental; b) uma carência emocional; c) uma limitação externa ou desarranjo provocado por alguém ou por uma situação adversa, etc. Para mim, o espinho é um antídoto às avessas, é o que me livra de ser dominado pela vontade de poder, de ser massacrado pelo meu ego.

Dificilmente de cara vejo essa deficiência como uma dádiva, não é mesmo? É, na verdade, um incômodo, um embaraço, que desejo arrancar a todo custo, como Paulo (v. 8). E nessas horas nós procuramos o cirurgião, queremos a cirurgia! Mas o cirurgião diz: não vou te operar, porque eu já estou operando em você, de um modo diferente... Deus opera com a Graça! E por isso ele diz: a minha graça é suficiente para você. E essa é uma palavra apropriada: “deficiência”, pois é o oposto de “suficiência”. É por isso que lutamos tanto contra ela, não é? Porque almejamos a suficiência quase em tudo, ou em tudo o que podemos.

Um dos erros da vida intelectual hoje é o de continuarmos sendo modernos no sentido de buscar a suficiência e evitar o erro a todo custo, como se ele fosse o câncer da ciência. Pelo contrário, o câncer da ciência se chama sufi-ciência! É quando o cientista ou intelectual pensa que a ciência tem todas as respostas e é capaz de tudo e mais um pouco. Essa falsa assunção é (foi) sua ruína. Pois o erro não é defeito, mas é a condição de continuidade e processualidade da ciência, pois “ciência sem erro é dogma”, afirma Pedro Demo, e mais: “A renovação do conhecimento é diretamente proporcional a presença do erro”.[1]

Assim, a fraqueza – seja ela em que dimensão se apresentar – é condição de nossa continuidade na graça, de nossa dependência de Cristo, do aperfeiçoamento de seu poder em nós, como intelectuais a serviço do Reino! Que você e eu aprendamos a celebrar e a ser agradecidos por aquilo que somos, com nossas virtudes e defeitos. Que o Senhor da graça nos ajude a exercitar nossa humildade em nossa aceitação de que não podemos tudo, nem temos controle sobre tudo e resposta para todas as coisas.

Jonathan

Nota
[1] DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1995, p. 53.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

II. Incompletude

Essa é a parte em que reconhecemos nossas imperfeições, limitações, que ainda há um longo caminho a percorrer; não somos inventores de nossa vida e não temos tudo sob controle, ainda que, muitas vezes, nossa existência nesse mundo possa se resumir em um grande esforço e sofrimento em função do desejo de controlar tudo, até o futuro.

Isso é muito difícil para o intelectual, que lida o tempo todo com a busca pelo conhecimento que, num certo sentido, pode ser vista como busca pela “completude”. Por isso, é sempre bom recordar a máxima de Sócrates: “Só sei que nada sei”. Quanto mais eu sei, mas reconheço que, na verdade, não sei. Contudo, por saber que nada sei, maior ainda será meu esmero em prosseguir instintivamente no caminho do saber, constante, provisório, inacabado...

E para o conhecimento teológico isso é ainda mais válido. A incompletude é o ponto de partida do fazer teológico. A única coisa que sabemos é que estamos a caminho e o que vale é o caminhar e nada mais. Ainda não chegamos, há uma longa jornada pela frente. Pensar que estou lidando com o conhecimento de Deus me inspira mais ainda a vislumbrar esse caminho e a condição inacabada de nossa tarefa: “conheçamos e prossigamos em conhecer ao Senhor” (Os 6.3).

Outras duas contribuições de Paulo me chamam a atenção. A primeira está também em 1Coríntios 13, verso 12: “Agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho; mas, então, veremos face a face. Agora conheço em parte; então, conhecerei plenamente, da mesma forma como sou plenamente conhecido”. Em outra tradução (The Message) se diz: “Apenas conhecemos uma porção da verdade, e o que dizemos sobre Deus é sempre incompleto. Mas quando o Completo chegar, nossas incompletudes serão canceladas”. Faz sentido isso para você? Pois para mim faz muito sentido...

A outra contribuição paulina está em Filipenses 3.12: “Não que eu já tenha obtido tudo isso ou tenha sido aperfeiçoado, mas prossigo para alcançá-lo, pois para isso também fui alcançado por Cristo Jesus. Irmãos, não penso que eu mesmo já o tenha alcançado”. Essa é uma afirmação tremendamente Cristã, de humildade, honestidade e inquietação: Eu ainda não terminei, ainda não estou acabado, não cheguei à reta final. E porque eu não me considero um expert nesse negócio, olho para frente e sigo adiante, procurando aquilo que ainda me aguarda.

Esses exemplos me ajudam a entender um pouco mais que a incompletude não é a minha tragédia (ainda que possa parecer), mas o caminho para a liberdade e dependência de Deus, atributo indispensável da vida, mais ainda da vida intelectual.

Jonathan

domingo, 13 de setembro de 2009

I. Amor

Não há muita coisa para ser dita sobre uma vida vivida no amor de Deus que Jesus Cristo já não tenha demonstrado ou que as Escrituras já não tenham resumido em sentenças, tais como “Deus é amor”, “Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”, “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, e assim por diante.

Mas há um texto belo e poético que sintetiza muito bem e poeticamente o ágape (do grego “caridade”, que se refere ao amor divino): 1 Coríntios 13.

A vida intelectual é cheia de armadilhas. Uma delas é a de nos jactarmos do conhecimento, nos orgulhar de quão virtuosos somos por cultivar tanto conhecimento, habilidade, títulos, premiações, eloqüência e proficiência. Vaidade de vaidades, esse mundo acadêmico também é cheio delas, nele há fogueiras delas.
Tudo isso é válido, tem a sua função, cumpre seu papel, mas é inútil se não for precedido pelo amor. A primeira parte do capítulo segue essa tônica: não importa o que digamos, acreditemos, ou façamos, estaremos falidos se nisso não tiver amor, se não for por amor.

Quando aquilo que somos e sabemos, nossas conquistas pessoais, bens, habilidades, recursos e inteligência são exercidos sem amor, isto é, sem o propósito de ter o outro em consideração antes de si mesmo, de não se ensoberbecer, sentir ou provocar ciúmes, não forçar nem abusar dos outros, muito menos se aproveitar das circunstâncias em favor próprio, e não confiar em Deus sempre, elas perdem seu sentido de ser. Isso, pois todas essas coisas têm pouca durabilidade, consumir-se-ão com o tempo e com o fim dele, enquanto o amor, esse nunca morre...

Como diria Paulo em outra oportunidade, “o conhecimento ensoberbece, mas o amor edifica”. O apóstolo não está aqui menosprezando o conhecimento em si, mas indicando a sua provável finalidade (a soberba) sem a presença do amor. O amor dá vida aquele que conhece, e, por conseguinte, ao conhecimento, que por sua vez gerará vida a quem dele na mutualidade partilhar.

O conhecimento um dia conhecerá seu limite. Mas ele pode servir a propósitos imprevisíveis, eternos e belos, se for hóspede freqüente da casa do amor...

Jonathan

Série: Atributos indispensáveis à vida intelectual

Diante do desafio de falar para meus alunos(as) moçambicanos(as) sobre metodologia científica em teologia, pus-me a pensar sobre alguns elementos que seriam indispensáveis nessa caminhada acadêmica. Há muitos desafios, desde os mais teóricos, técnicos, até os que procuram delinear um perfil de bom pesquisador, acadêmico, cientista, teólogo.
Todavia, nossas devocionais nas manhãs antes de cada aula, me conduziram noutra direção, que tem a ver não precisamente com os conteúdos ou q qualidade técnica do intelectual, mas tem a ver com sua espiritualidade. E quando falo isso, não é para criar mais dicotomias – como se a atividade técnica, científica ou profissional não fossem parte da vida espiritual – mas destacar certos atributos e posturas que nascem do interior e se manifestam nas atitudes para com a vida, em geral, e também a vida intelectual.
Pensamos, então, à luz das Escrituras e das tendências hodiernas, em quatro atributos (não exaustivos) que mais moveram nossas mentes e corações naquela semana, ocupando parte de nossa agenda. São eles: amor, incompletude, fraqueza e liberdade. A idéia aqui, portanto, é refletir detidamente sobre cada um deles, pensando em sua função e implicações mais específicas para a vida intelectual.
Boa leitura!
Jonathan
(Foto: Com a turma do Mestrado em Teologia de Maputo, Moçambique/ Setembro-2009)