“Ele estava bem longe, na estrada, quando o pai o
avistou...” (Lc 15.20)
Certa vez, um grupo de religiosos – ou de gente que se
considerava bastante justa – viu um de seus mestres acompanhado de uma turma
que eles consideravam ter uma “reputação duvidosa”. É que gente religiosa
costuma se preocupar mais com reputação que com integridade. Então, começaram a
fofocar entre eles sobre o absurdo daquela situação.
Ouvindo atento àquela conversa, mas sem responder às
acusações ou se preocupar com os rótulos que recebera só de aparência, aquele
homem, um perito em contar histórias, resolveu emendar umas duas ou três parábolas,
que falavam de “perdição” – assunto, aliás, que não saía da agenda daquele
grupo, afinal gente que se acha justa demais se preocupa tanto em arbitrar
sobre o fato de uma pessoa ser perdida, que se esquece de espalhar a boa-nova
de ser achado – mas também, voltando às histórias, falavam de reencontro,
perdão e celebração. Uma me chama a atenção em especial, que gostaria de
retratar aqui.
A história recontada[*]
É a história de um pai que tinha dois filhos.
O mais velho era um daqueles
tipos dedicados, trabalhador responsável, fazia tudo direitinho e gostava de
ver tudo nos conformes. Perfeccionista que era, quase nunca faltava na escola e
era o primeiro de sua turma. Cedo mostrou interesse em ajudar o pai a tocar os
negócios da fazenda, mas fez questão de trabalhar duro para mostrar serviço e
comprometimento.
O mais novo era o oposto de
seu irmão, o típico “ovelha negra” da família. Irreverente, extrovertido,
criativo – se focava mais em pessoas que em tarefas – encantado pela música,
tinha um “fraco” evidente por mulheres, nunca fez questão de ser o melhor nos
estudos, mas sempre dava um jeito de tirar a nota necessária para “passar
raspando”. Ao contrário de seu irmão, nunca demonstrou grande interesse pelos
negócios da família. Seu irmão e empregados mais chegados o viam como um bon vivant (alguém que vive a vida para
valer), “cabeça de vento”; por vezes era possível ver o mais velho indignado
quando pegava o caçula saindo mais cedo do batente só para contemplar o cair da
tarde da varanda ao som de boa música, poesia, vinho e diversão com os amigos
até altas horas. Embora reprovasse veementemente o comportamento desregrado do
irmão, em seu íntimo, silenciosamente, nutria certa inveja da vida que ele
levava...
O pai procurava entender e lidar com o jeitão e as
aptidões de ambos, cuidando meio que à distância, tentando possibilitar a
vocação de seus filhos, sem frustrar-lhes a liberdade, mas obviamente preocupado
com o futuro dos dois, especialmente com o do caçula, que era quem menos dava
margem para a intervenção do pai.
Certo dia ele lhe deu um susto. Primeiro, quando fez um
inusitado pedido: queria antecipadamente a parte que lhe cabia na herança que
um dia receberia. O pai, tentando ser generoso e justo ao mesmo tempo, embora
desolado e aflito, o atendeu. Dividiu a herança em partes iguais entre os dois
filhos. Dias depois vieram o susto e a desolação maiores: repentinamente o filho
mais novo surgiu com a ideia de deixar a casa do pai.
O que efetivamente aconteceu e ele partiu para um país
distante. Enquanto em casa, vivia com a sensação de que estava desperdiçando a
vida, de que havia muito pra ver; quando partiu, foi com um único desejo em
mente: aproveitar a vida!
E ele aproveitou “até às tampas”, ao exagero, à fadiga
total do corpo e de alma: consumiu, aproveitou, curtiu a vida “adoidado”, experimentou
os extremos, e, sem se dar conta, torrou toda a grana que tinha. O seu muito
virou bem pouco diante da imensidão de possibilidades e das escolhas que fez.
Logo veio uma fome que atingiu toda a região onde ele
se encontrava. E ele não havia se preparado para aquilo. Sem dinheiro, sem
teto, sem abastecimento e sem emprego, ele teve que trabalhar pesado – coisa
que até então não conhecia, pois nunca tinha feito na casa do pai – tomando
conta de porcos. De repente se viu tão esfomeado que já estava até desejando
saborear a iguaria comida pelos porcos. Mas nem aquilo podia ter. finalmente
ele chagou no fundo do poço.
Foi quando se deu conta do absurdo daquela situação.
Então se lembrou do pai. Resolveu voltar, pedir perdão ao pai, assumir sua
transgressão e esperar pela misericórdia de, pelo menos, poder ser achado como
mais um entre nos empregados da fazenda do pai, uma vez que um dia ele
sacrificou e maculou o lugar sagrado que graciosamente tinha ao lado do pai. É,
meus irmãos, o amor é como um solo sagrado: não pisamos no de muitas pessoas,
nem são tantas pessoas que pisam no nosso; mas quando esse solo é corrompido, a
dor que fica é humanamente irreparável. E o filho pródigo sabia disso,
compreendia que nada do que ele fizesse poderia reparar o mal causado no
passado.
Alguns dias depois, estava o pai sentado na fazenda de
sua casa, exatamente pensando em seu filho, sangrando a dor da distância,
corroído pela saudade, aturdido por imaginar que o filho estava perdido, ou
quem sabe morto. Fechou os olhos por um momento o cochilou. Acordou com uma
revoada de pássaros e a ventania e, na estrada, para além do portão da fazenda,
ainda distante, avistou o maltrapilho filho caminhando, ou melhor, cambaleando,
de volta para casa. O coração do velho disparou. Ele não quis esperar, já tinha
esperado demais, e saiu correndo ao encontro do filho e, chegando, o abraçou e
o beijou. O filho, sem entender muito bem o calor daquela recepção, tentou
começar o discurso de retratação que havia preparado. O pai cobrindo-o de
beijos e ele, por sua vez, tentando das explicações! Mas o amor do pai não
pedia explicações, pedia o abraço reconciliador, cedia o perdão gratuito, e
transbordava a graça que festeja o retorno, a volta do perdido que foi achado.
Sem ouvir o que o filho dizia, ainda coberto de euforia,
o pai gritou aos seus empregados e ordenou: – “Venham, tragam roupas e o
vistam. Coloquem o anel da família no seu dedo e calçado em seus pés. Apanhem o
melhor e mais gordo carneiro e o assem. Nós teremos festa! É tempo de celebrar!
Meu filho está aqui – dado como morto, agora vive! Dado como perdido, agora foi
encontrado!”. E foi a maior festança, como nenhuma festa antes vista.
O pai é assim, se regozija em cada reencontro, e faz
de cada reencontro um evento singular, nunca visto, jamais repetido. O amor
personifica, gentifica!
Mas não nos esqueçamos que havia outro filho, que
havia ficado em casa. Ele voltava do campo naquele dia, cansado do trabalho. Se
aproximando da casa, percebeu um movimento incomum na parte dos fundos, música,
gente falando e rindo alto. Logo foi informado que o pai oferecia uma festa em
comemoração ao retorno de seu irmão pródigo, a quem dava por totalmente
perdido. Quando se deu conta, já estava revoltado e, é claro, recusou
participar da festa.
O pai, atento a tudo, sentindo a ausência do outro
filho, foi atrás dele e tentou conversar. Mas seu primogênito não o ouvia. Só
conseguia sentir mais raiva, até que disse: – “Olha pai, por quantos anos eu
permaneci aqui te servindo, nunca te dando uma dor de cabeça sequer, e você jamais
ofereceu uma festa dessas para mim e meus amigos?!”. O pai ficou em silêncio
por alguns segundos, demonstrando tristeza com aquelas palavras. Mas logo, com
misericórdia e paciência, típicas de pai, ele olhou para o filho e disse:
– “Filhinho, você não entende! Você está comigo esse
tempo todo e tudo o que é meu é seu também. Mas esse é um momento único,
maravilhoso, e temos que festejar! Porque seu irmão estava morto, mas reviveu!
Estava perdido, mas foi achado!”. Duvido que ambos tenham voltado para a festa
naquele dia... Pois o mesmo pai que festeja é o pai que também sangra quando vê
um filho/a perdido por alguma razão...
Imagens e
percepções finais...
Essa história é uma das mais impactantes e que melhor
resumem o espírito do Evangelho, e o espírito de Jesus Cristo: é a história do
amor do Pai nos encontrando onde quer que seja em qual seja a condição em que nos
achemos. E nos abraça com um amor que não se pode medir, substituir ou
comparar!
E a grande moral da história não está em saber quem
são, apontar ou identificar os perdidos da história. A questão é saber quem não
é, ou quem nunca foi perdido? Os dois filhos da parábola estavam perdidos; a
diferença é que um estava perdido fora de casa, e o outro dentro. Porque não é
preciso sair de casa para viver perdido; basta se desconectar das pessoas que
amamos e de Deus.
Então, antes de tudo, percebe-se que esta é uma
história para ninguém em específico e para todo mundo em geral; pois, em alguma
dimensão da vida, todo mundo é pródigo
(parafraseando Gerson Borges). E é aos pródigos, aos maltrapilhos, aos pobres
de espírito, aos pequeninos que o Senhor, paradoxalmente, escolheu convidar
para o banquete do reino. Em outras palavras, o que Jesus estava fazendo
enquanto andava com aquelas pessoas não é em nada incoerente com o que ele
anunciou a vida toda.
Essa história, contudo, mostra que é possível permanecer
perdido, mesmo sem nunca se deixar perder, sem nunca ter partido, como é o caso
do filho mais velho.
Esse é um dos paradoxos da parábola: quando dizemos que já
fomos achados, que nada mais resta para ser redimido, aí é que perdidos estamos
e de modo permanente, invisível. Quando, porém, reconhecemos que perdidos
estamos, mesmo que por pouco, significa que há esperança de ser encontrado ou
reencontrado...
Sendo honesto, então, preciso admitir isso: sou um eterno
reincidente! Não há um dia sequer de minha vida em que, por muito ou por pouco,
eu não caia. Essa é uma verdade inconveniente sobre mim: eu vivo caindo! Nem
todos sabem; poucos gostam de admitir, mas Deus o sabe...
A inconveniência dessa verdade está não somente no fato de
que ela me expõe como pessoa, mas também de que ela mostra que o cair não
precisa ser inimigo do estar de pé, de levantar, de poder se reerguer. Na
verdade, como diz o ditado, “para cair, basta estar de pé”.
Ou, melhor ainda, como disse Paulo, “quem pensa estar de pé, cuide para que não caia”. Cuide, e não
negue; cuide, e não reprima; cuide, o que significa, lide com a possibilidade
sempre iminente da queda...
Por isso, é importantíssima no filho mais jovem a
atitude de reconhecimento, também crucial a todos nós, em que se admite: “Estou
perdido”! Sem isso, não há encontro possível. Quem nunca se sentiu perdido na vida não pode reconhecer a alegria e a
satisfação de ser encontrado... É preciso honestidade para se identificar
com o filho mais novo, como fez Henri Nouwen quando declarou: “Sou o filho
pródigo toda vez que busco amor incondicional onde não pode ser encontrado”.
O que mais tem me chamado a atenção, ao reler esta
parábola ultimamente, é que não somente os dois filhos são as figuras
vulneráveis e perdidas da história. O pai também é. Não da maneira dos filhos,
é claro; o pai é “perdido de amor”.
É essa imagem de Deus que a parábola me revela: a
imagem de um Deus de amor, que também se encontra “perdido” em busca de seus
filhos perdidos e não descansa até que, finalmente, os encontre. Um Deus que
nos ama com um amor incondicional, incansável, imponderável, às vezes tolo,
insano e nada justo aos nossos olhos.
Aposto que todos nós aqui já tivemos o sentimento de
irmão mais velho, dizendo: – “Eu estou esse tempo todo aqui, ralando, me
esforçando para não pisar na bola, e nunca recebi nada ‘extra’ por isso,
enquanto esse meu irmão ferra com tudo, enfia o pé na jaca feio, e ainda é
recebido com festa! Simplesmente não é justo!”. Agora eu pergunto: quem disse
que o amor é justo? Se o amor fosse justo, como imaginamos que deva ser, o que
seria de nós? Como qualquer um de nós poderia receber e dar amor?
É para esse tipo de loucura que Deus está nos
chamando, para amar conforme um tipo de amor que o mundo desconhece, que é
motivo de espanto, escândalo, e até mesmo frustração. É um amor que não força,
não se apossa, agarra ou empurra; é um amor que liberta da obrigação do amor, para a possibilidade
do amor...
No fim das contas, se nossa consciência nos acusa, se
nosso coração nos condena, como o do pródigo, lembremos: Deus, o Pai de amor, é
maior que nosso coração, e sabe o que é melhor para seus filhos/as. Pode
reprovar com veemência quando maculamos o solo sagrado que há entre nós e Ele;
mas, enquanto houver arrependimento, haverá perdão, e o convite para uma nova
festa, e um novo reencontro.
Jonathan
[*] A história aqui reimaginada e recontada é uma narrativa baseada no texto de Lucas 15.11-32, conforme as traduções Nova Versão Internacional e The Message, de Eugene Peterson.