segunda-feira, 19 de setembro de 2016

O risco de se perder e a graça de ser achado

“Ele estava bem longe, na estrada, quando o pai o avistou...” (Lc 15.20)
Certa vez, um grupo de religiosos – ou de gente que se considerava bastante justa – viu um de seus mestres acompanhado de uma turma que eles consideravam ter uma “reputação duvidosa”. É que gente religiosa costuma se preocupar mais com reputação que com integridade. Então, começaram a fofocar entre eles sobre o absurdo daquela situação.
Ouvindo atento àquela conversa, mas sem responder às acusações ou se preocupar com os rótulos que recebera só de aparência, aquele homem, um perito em contar histórias, resolveu emendar umas duas ou três parábolas, que falavam de “perdição” – assunto, aliás, que não saía da agenda daquele grupo, afinal gente que se acha justa demais se preocupa tanto em arbitrar sobre o fato de uma pessoa ser perdida, que se esquece de espalhar a boa-nova de ser achado – mas também, voltando às histórias, falavam de reencontro, perdão e celebração. Uma me chama a atenção em especial, que gostaria de retratar aqui.
A história recontada[*]
É a história de um pai que tinha dois filhos.
O mais velho era um daqueles tipos dedicados, trabalhador responsável, fazia tudo direitinho e gostava de ver tudo nos conformes. Perfeccionista que era, quase nunca faltava na escola e era o primeiro de sua turma. Cedo mostrou interesse em ajudar o pai a tocar os negócios da fazenda, mas fez questão de trabalhar duro para mostrar serviço e comprometimento.
O mais novo era o oposto de seu irmão, o típico “ovelha negra” da família. Irreverente, extrovertido, criativo – se focava mais em pessoas que em tarefas – encantado pela música, tinha um “fraco” evidente por mulheres, nunca fez questão de ser o melhor nos estudos, mas sempre dava um jeito de tirar a nota necessária para “passar raspando”. Ao contrário de seu irmão, nunca demonstrou grande interesse pelos negócios da família. Seu irmão e empregados mais chegados o viam como um bon vivant (alguém que vive a vida para valer), “cabeça de vento”; por vezes era possível ver o mais velho indignado quando pegava o caçula saindo mais cedo do batente só para contemplar o cair da tarde da varanda ao som de boa música, poesia, vinho e diversão com os amigos até altas horas. Embora reprovasse veementemente o comportamento desregrado do irmão, em seu íntimo, silenciosamente, nutria certa inveja da vida que ele levava...
O pai procurava entender e lidar com o jeitão e as aptidões de ambos, cuidando meio que à distância, tentando possibilitar a vocação de seus filhos, sem frustrar-lhes a liberdade, mas obviamente preocupado com o futuro dos dois, especialmente com o do caçula, que era quem menos dava margem para a intervenção do pai.
Certo dia ele lhe deu um susto. Primeiro, quando fez um inusitado pedido: queria antecipadamente a parte que lhe cabia na herança que um dia receberia. O pai, tentando ser generoso e justo ao mesmo tempo, embora desolado e aflito, o atendeu. Dividiu a herança em partes iguais entre os dois filhos. Dias depois vieram o susto e a desolação maiores: repentinamente o filho mais novo surgiu com a ideia de deixar a casa do pai.
O que efetivamente aconteceu e ele partiu para um país distante. Enquanto em casa, vivia com a sensação de que estava desperdiçando a vida, de que havia muito pra ver; quando partiu, foi com um único desejo em mente: aproveitar a vida!
E ele aproveitou “até às tampas”, ao exagero, à fadiga total do corpo e de alma: consumiu, aproveitou, curtiu a vida “adoidado”, experimentou os extremos, e, sem se dar conta, torrou toda a grana que tinha. O seu muito virou bem pouco diante da imensidão de possibilidades e das escolhas que fez.
Logo veio uma fome que atingiu toda a região onde ele se encontrava. E ele não havia se preparado para aquilo. Sem dinheiro, sem teto, sem abastecimento e sem emprego, ele teve que trabalhar pesado – coisa que até então não conhecia, pois nunca tinha feito na casa do pai – tomando conta de porcos. De repente se viu tão esfomeado que já estava até desejando saborear a iguaria comida pelos porcos. Mas nem aquilo podia ter. finalmente ele chagou no fundo do poço.
Foi quando se deu conta do absurdo daquela situação. Então se lembrou do pai. Resolveu voltar, pedir perdão ao pai, assumir sua transgressão e esperar pela misericórdia de, pelo menos, poder ser achado como mais um entre nos empregados da fazenda do pai, uma vez que um dia ele sacrificou e maculou o lugar sagrado que graciosamente tinha ao lado do pai. É, meus irmãos, o amor é como um solo sagrado: não pisamos no de muitas pessoas, nem são tantas pessoas que pisam no nosso; mas quando esse solo é corrompido, a dor que fica é humanamente irreparável. E o filho pródigo sabia disso, compreendia que nada do que ele fizesse poderia reparar o mal causado no passado.
Alguns dias depois, estava o pai sentado na fazenda de sua casa, exatamente pensando em seu filho, sangrando a dor da distância, corroído pela saudade, aturdido por imaginar que o filho estava perdido, ou quem sabe morto. Fechou os olhos por um momento o cochilou. Acordou com uma revoada de pássaros e a ventania e, na estrada, para além do portão da fazenda, ainda distante, avistou o maltrapilho filho caminhando, ou melhor, cambaleando, de volta para casa. O coração do velho disparou. Ele não quis esperar, já tinha esperado demais, e saiu correndo ao encontro do filho e, chegando, o abraçou e o beijou. O filho, sem entender muito bem o calor daquela recepção, tentou começar o discurso de retratação que havia preparado. O pai cobrindo-o de beijos e ele, por sua vez, tentando das explicações! Mas o amor do pai não pedia explicações, pedia o abraço reconciliador, cedia o perdão gratuito, e transbordava a graça que festeja o retorno, a volta do perdido que foi achado.
Sem ouvir o que o filho dizia, ainda coberto de euforia, o pai gritou aos seus empregados e ordenou: – “Venham, tragam roupas e o vistam. Coloquem o anel da família no seu dedo e calçado em seus pés. Apanhem o melhor e mais gordo carneiro e o assem. Nós teremos festa! É tempo de celebrar! Meu filho está aqui – dado como morto, agora vive! Dado como perdido, agora foi encontrado!”. E foi a maior festança, como nenhuma festa antes vista.
O pai é assim, se regozija em cada reencontro, e faz de cada reencontro um evento singular, nunca visto, jamais repetido. O amor personifica, gentifica!
Mas não nos esqueçamos que havia outro filho, que havia ficado em casa. Ele voltava do campo naquele dia, cansado do trabalho. Se aproximando da casa, percebeu um movimento incomum na parte dos fundos, música, gente falando e rindo alto. Logo foi informado que o pai oferecia uma festa em comemoração ao retorno de seu irmão pródigo, a quem dava por totalmente perdido. Quando se deu conta, já estava revoltado e, é claro, recusou participar da festa.
O pai, atento a tudo, sentindo a ausência do outro filho, foi atrás dele e tentou conversar. Mas seu primogênito não o ouvia. Só conseguia sentir mais raiva, até que disse: – “Olha pai, por quantos anos eu permaneci aqui te servindo, nunca te dando uma dor de cabeça sequer, e você jamais ofereceu uma festa dessas para mim e meus amigos?!”. O pai ficou em silêncio por alguns segundos, demonstrando tristeza com aquelas palavras. Mas logo, com misericórdia e paciência, típicas de pai, ele olhou para o filho e disse:
– “Filhinho, você não entende! Você está comigo esse tempo todo e tudo o que é meu é seu também. Mas esse é um momento único, maravilhoso, e temos que festejar! Porque seu irmão estava morto, mas reviveu! Estava perdido, mas foi achado!”. Duvido que ambos tenham voltado para a festa naquele dia... Pois o mesmo pai que festeja é o pai que também sangra quando vê um filho/a perdido por alguma razão...
Imagens e percepções finais...
Essa história é uma das mais impactantes e que melhor resumem o espírito do Evangelho, e o espírito de Jesus Cristo: é a história do amor do Pai nos encontrando onde quer que seja em qual seja a condição em que nos achemos. E nos abraça com um amor que não se pode medir, substituir ou comparar!
E a grande moral da história não está em saber quem são, apontar ou identificar os perdidos da história. A questão é saber quem não é, ou quem nunca foi perdido? Os dois filhos da parábola estavam perdidos; a diferença é que um estava perdido fora de casa, e o outro dentro. Porque não é preciso sair de casa para viver perdido; basta se desconectar das pessoas que amamos e de Deus.
Então, antes de tudo, percebe-se que esta é uma história para ninguém em específico e para todo mundo em geral; pois, em alguma dimensão da vida, todo mundo é pródigo (parafraseando Gerson Borges). E é aos pródigos, aos maltrapilhos, aos pobres de espírito, aos pequeninos que o Senhor, paradoxalmente, escolheu convidar para o banquete do reino. Em outras palavras, o que Jesus estava fazendo enquanto andava com aquelas pessoas não é em nada incoerente com o que ele anunciou a vida toda.
Essa história, contudo, mostra que é possível permanecer perdido, mesmo sem nunca se deixar perder, sem nunca ter partido, como é o caso do filho mais velho.
Esse é um dos paradoxos da parábola: quando dizemos que já fomos achados, que nada mais resta para ser redimido, aí é que perdidos estamos e de modo permanente, invisível. Quando, porém, reconhecemos que perdidos estamos, mesmo que por pouco, significa que há esperança de ser encontrado ou reencontrado...
Sendo honesto, então, preciso admitir isso: sou um eterno reincidente! Não há um dia sequer de minha vida em que, por muito ou por pouco, eu não caia. Essa é uma verdade inconveniente sobre mim: eu vivo caindo! Nem todos sabem; poucos gostam de admitir, mas Deus o sabe...
A inconveniência dessa verdade está não somente no fato de que ela me expõe como pessoa, mas também de que ela mostra que o cair não precisa ser inimigo do estar de pé, de levantar, de poder se reerguer. Na verdade, como diz o ditado, “para cair, basta estar de pé”.
Ou, melhor ainda, como disse Paulo, “quem pensa estar de pé, cuide para que não caia”. Cuide, e não negue; cuide, e não reprima; cuide, o que significa, lide com a possibilidade sempre iminente da queda...
Por isso, é importantíssima no filho mais jovem a atitude de reconhecimento, também crucial a todos nós, em que se admite: “Estou perdido”! Sem isso, não há encontro possível. Quem nunca se sentiu perdido na vida não pode reconhecer a alegria e a satisfação de ser encontrado... É preciso honestidade para se identificar com o filho mais novo, como fez Henri Nouwen quando declarou: “Sou o filho pródigo toda vez que busco amor incondicional onde não pode ser encontrado”.
O que mais tem me chamado a atenção, ao reler esta parábola ultimamente, é que não somente os dois filhos são as figuras vulneráveis e perdidas da história. O pai também é. Não da maneira dos filhos, é claro; o pai é “perdido de amor”.
É essa imagem de Deus que a parábola me revela: a imagem de um Deus de amor, que também se encontra “perdido” em busca de seus filhos perdidos e não descansa até que, finalmente, os encontre. Um Deus que nos ama com um amor incondicional, incansável, imponderável, às vezes tolo, insano e nada justo aos nossos olhos.
Aposto que todos nós aqui já tivemos o sentimento de irmão mais velho, dizendo: – “Eu estou esse tempo todo aqui, ralando, me esforçando para não pisar na bola, e nunca recebi nada ‘extra’ por isso, enquanto esse meu irmão ferra com tudo, enfia o pé na jaca feio, e ainda é recebido com festa! Simplesmente não é justo!”. Agora eu pergunto: quem disse que o amor é justo? Se o amor fosse justo, como imaginamos que deva ser, o que seria de nós? Como qualquer um de nós poderia receber e dar amor?
É para esse tipo de loucura que Deus está nos chamando, para amar conforme um tipo de amor que o mundo desconhece, que é motivo de espanto, escândalo, e até mesmo frustração. É um amor que não força, não se apossa, agarra ou empurra; é um amor que liberta da obrigação do amor, para a possibilidade do amor...
No fim das contas, se nossa consciência nos acusa, se nosso coração nos condena, como o do pródigo, lembremos: Deus, o Pai de amor, é maior que nosso coração, e sabe o que é melhor para seus filhos/as. Pode reprovar com veemência quando maculamos o solo sagrado que há entre nós e Ele; mas, enquanto houver arrependimento, haverá perdão, e o convite para uma nova festa, e um novo reencontro.
Jonathan

[*] A história aqui reimaginada e recontada é uma narrativa baseada no texto de Lucas 15.11-32, conforme as traduções Nova Versão Internacional e The Message, de Eugene Peterson.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Morte e vida, gêmeas siamesas


É necessário muito tempo para a gente aprender a viver. Porque somos lentos, frágeis e teimosos demais.

Ou simplesmente porque, repetindo o jargão, viver não é fácil – especialmente para gente tão complicada quanto eu.
Mas nem sempre temos esse tempo todo para aprender. 
Pois é necessário apenas um instante para que a vida seja ceifada, e com ela, os anseios de um hoje não vivido e de um amanhã melhor. 
É, o amanhã não existe mesmo. Tecnicamente, talvez, mas na prática nunca se sabe. Por isso eu nunca aposto no amanhã; aposto no hoje.
Pois, mesmo com o desejo de ter vivido mais, e mesmo sendo cedo demais para alguns, é possível partir com a certeza de que a vida que vivemos valeu à pena.
E, assim, a saudade pela partida, para quem fica, se torna menos carregada e a dor pode andar de mãos dadas com a gratidão – ao menos eu acho...
Você pode querer sublimar, fazer de conta, buscar consolos fáceis ou ilusões úteis que te façam esquecer da realidade e te projetar para outra, menos “real”, menos cruel...
Mas a realidade é uma só: a morte é um fato inescapável, e ela não tem preferidos.
Cedo ou tarde, ela virá. E “tudo o que era sólido se desmancha no ar” (Marx), ou melhor, na terra ou debaixo dela.
Só que Bauman nos disse que hoje, já, agora, o sólido tem virado líquido. Bem, mas não apenas de hoje...
Há milhares de anos, Eclesiastes já tinha dito que tudo é fumaça, que nada faz sentido. E eu acrescento: nada permanece!
Nada mesmo?
A única certeza que tenho é a do instante, e preciso fazer dele o melhor possível enquanto tenho oportunidades. Mas só o agora oferece oportunidades.
Posso morrer sem ter mudado muitas coisas na minha vida e no mundo a meu redor; mas quero morrer bem ciente de que tentei ao máximo. De que fiz o que pude. De que que arrisquei. De que me tornei disponível aos outros.
E, mais importante, de que amei. Do começo ao fim – permitam-me contradição – só o amor permanece.

Jonathan

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Gente grande


Boas notícias muitas vezes podem vir acompanhadas por más notícias; muitas vezes no mesmo dia ou até simultaneamente.
Diante disso, gente mimada tende a espernear e "ficar de mal" com a vida e com outras pessoas - e, convenhamos, alguns e algumas de nós ficamos "de mal" mesmo por pequenos infortúnios.
O problema é que, não sendo mais crianças, isso fica bem estranho, para não dizer ridículo.
Gente grande, porém, sabe que a vida é cheia dessas contradições e paradoxos; na verdade, gente assim já espera por isso, e tem coragem o bastante para lidar tanto com os benefícios quanto com os malefícios de existir e de "estar vivo".
E mais: gente grande sabe que, muitas vezes, ser grande significa saber "ser pequeno", passar por humilhações, enfrentar lutas, perder, frustar-se, cair, mas levantar e começar tudo de novo.
Ser gente (grande) é não temer começar de novo, quantas vezes for preciso; pois às vezes é tão mais confortável seguir do mesmo jeito, não é mesmo?
Porque em todo caminhar adiante há uma incerteza; em toda incerteza, uma oportunidade; e na oportunidade, o risco de acertar é proporcional ao de errar; em cada "mancada", no entanto, há uma chance de crescimento; e todo crescimento traz no bojo uma pitada de desconforto.
Ah, mas às vezes é tão mais simples seguir do mesmo jeito... ser infante pra sempre, quem dera... pudera!
Crescer dá trabalho, crescer traz responsabilidades irremediáveis. Mas também traz o benefício da sabedoria, o privilégio de poder viver e ver a vida com outros olhos, e quem sabe dar os ombros para que outros possam subir também.
O mundo precisa mais de gente grande, do tipo que não tem vergonha de ser apenas e tão somente "humana"...

Jonathan

terça-feira, 21 de junho de 2016

Ser menos


Das grandes artes da vida que ainda quero aprender, uma tem ocupado especial lugar ultimamente: a arte de "ser menos".
As grandes aspirações e o desejo de "ser mais" a mim têm parecido tanto mais superficiais, quanto inúteis. Tudo é fumaça, diz o pregador!
Quanto mais controle sobre a vida quero, menos vida tenho.
Quanto mais saber e poder almejo, menos humanidade e amor dou e obtenho.
O saber pretensioso estultifica. Faz do inteligente o pior dos tolos.
Não sei bem a razão, mas acho que nunca quis ser tanto gente comum quanto hoje.
Talvez porque nosso mundo esteja tão rodeado e preocupado com questões, e bem pouco preocupado com pessoas, com gente.
Hoje vale mais ganhar um debate, provar uma tese, do que fazer um amigo.
Cansei de tentar vencer; meu negócio agora é tentar amar.
Pois somente o amor "gentifica", constrói e liberta.
O problema é que o desejo de amar deve ser proporcional à disposição para perder.
Somente quem ama sabe mesmo o que é sofrer.
Somente quem conhece a dor do choro, é também capaz de consolar quem chora.
Somente quem passa pela tristeza profunda, reconhece o que é alegria.
Quando decidi “ser menos”, aprendi o quanto a grande maioria de minhas ambições foram e são vazias.
Com elas, gostaria de sepultar também sonhos de sucesso, desejos doentios de aprovação, e o anseio fútil por alguns minutos de fama, a serem derretidos no vórtice do próximo instante.
Tentarei não mais alimentar a necessidade quase antropofágica dos outros de consumir meus talentos, pois essa é só mais uma maneira disfarçada de enterrá-los, ou de jogá-los fora.
Estou interessado em provar minhas escolhas, e a descobrir e perseguir quantas delas me conduzem à integridade, sem ter de falsear a realidade de quem sou.
Finalmente, quero aprender andar com Deus sem desaprender a andar com os outros.
Não há nada mais inútil que gritar “hosana nas alturas” sem estender as mãos a quem precisa aqui, nesse chão da história.
Quero a espiritualidade trans-imanente de Jesus de Nazaré, que me ensinou chamar a Deus de “paizinho” e ao estranho de “meu irmão”.
Quem sabe eu já esteja pedindo muito; quem sabe eu já tenha escrito demais.
Quem sabe o desejo de ser menos não passe do velho anseio de querer ser mais.
Quem sabe? Eu não sei.
Mas de uma coisa sei: não é possível ser menos sem a maior de todas as transgressões, a transgressão de si.

Jonathan
Londrina, inverno de 2016

terça-feira, 24 de maio de 2016

A apologética cristã e sua obsessão com a verdade: notas do submundo pós-moderno


Que a apologética está de novo em alta já não é nenhuma novidade. A questão que me ocupa aqui é: em que ela se sustenta e o que propõe? Com essa pergunta, fica claro que meu interesse nesse ensaio não é nem polemizar com algumas de suas notórias expressões contemporâneas, no Brasil e fora dele, mas entender algumas das bases nas quais se ampara sua metodologia. Para me ajudar a responder essa pergunta, elegi o norte-americano Carl F. H. Henry, teólogo e editor fundador da Christianity Today, e um dos grandes arautos, no século XX, da perspectiva de uma “apologética sólida” (isto é, de uma argumentação lógica e dedutiva em defesa dos conteúdos da fé). Algumas de suas perspectivas sobre a veracidade da fé cristã foram endereçadas em seu livro Toward a recovery of Christian belief (1990), que reúne ensaios de palestras oferecidas por Henry na Escócia em 1989. 

Em um dos ensaios em que mais enfatiza um dos temas mais caros aos apologetas, a questão da verdade, sua afirmação central é a de que a consistência racional é um “teste para a verdade”, e um meio para que a teologia não se transforme em mero fideísmo. Como quase toda apologética, por sua natureza defensiva, possui seus adversários, os escolhidos de Henry neste ensaio são os empiristas, os neokantianos e os existencialistas. Os dois primeiros pelo apelo à objetividade, e o último pelo apelo à subjetividade na busca pelo conhecimento. 

No campo teológico, ele rejeita tanto a visão liberal, de negociar os absolutos da fé bíblica a fim de adequar seu discurso às expectativas do ser humano moderno, quanto a de Kierkegaard e de certos neo-ortodoxos, como Karl Barth (pelo menos em parte de sua obra), por defenderem, segundo ele, que a verdade na religião reside mais no campo da fé (como salto) do que depende de raciocínios ou evidencias lógicas e testes racionais. Para Henry, tais visões não podem ser confundidas com a ortodoxia evangelical, para a qual, em sua visão, “é inaceitável a afirmação irracionalista de que o absurdo intelectual é o que torna dignas as crenças religiosas ou que a obediência espiritual depende de um ‘salto de fé’ indiferente a considerações racionais” (Henry, 1990, p. 39). 

Sua premissa básica, assim, é a da legitimidade de uma teologia dedutiva – fundada em argumentação racional, sistemática e lógica sobre a fé – e a invalidade da alternativa evidencialista, isto é, a que necessita da evidência empírica como prova para argumentos racionais (Henry, 1990, p. 40). Um tanto acertadamente, Henry afirma que mesmo sistemas científicos consagrados, como a teoria da evolução de Darwin ou a teoria da relatividade de Einstein, em certo nível, necessitam de fé, ou seja, da aposta de que as coisas são como efetivamente se argumenta que sejam. “Em suma”, diz ele, “sem a fé, nem a ciência, nem a filosofia, nem a teologia podem fazer progressos” (Henry, 1990, p. 44). 

A teologia dedutiva, embora se ancore na verdade da fé, defende que o teste para esta verdade é sua consistência lógica, a partir da inteligível auto-revelação de Deus; acredita na força do argumento, na defesa proposicional da fé e verificável por meio da Bíblia como meio eficaz de se falar “autoritativamente” sobre Deus. Em tese, não vejo Henry caindo na armadilha infantil de crer na correspondência da verdade com os discursos (teológicos) sobre ela. Ainda assim, ele insiste na ênfase unilateral de que o Espírito usa a verdade, atestada pelas Escrituras e testada pela consistência lógica do discurso, como um instrumento de persuasão e testemunho (Henry, 1990, p. 59). 

A questão crucial aqui, para mim, está em indagar se esse tipo de apelo autoritativo e persuasivo no testemunho seria algo urgente e, discutivelmente, a melhor maneira de se tratar da verdade contemporaneamente e se a principal questão de nossa parte com a verdade hoje é a de sua “defesa”. Se a verdade é, para fins práticos, uma pessoa (Jesus), como e qual é a função e o lugar para o falar dela autoritativa, persuasiva e propositivamente? Minha insistência nessa discussão se dá precisamente por entender que ainda há uma forte corrente no meio evangélico de insistência nessa proposta, que não imputo como sendo errada, talvez só um tanto antiquada para meu gosto – e o de tantas pessoas que, como eu, não conseguem ver sua fé ajustada a apelos absolutistas.

Crê-se, em certos círculos apologéticos, conforme disse Henry (1990, p. 71), que “a expressividade proposicional é, obviamente, uma pré-condição para a avaliação de qualquer sistema. Um sistema que não pode ser expresso propositivamente envolve uma ambição à verdade não compartilhável e que de nenhuma forma pode ser testado”. Ser proposicional não é um problema em si. Nesse momento, ao reabrir essa discussão, estou lançando mão de argumentos, de perspectivas e, espero eu, de razoáveis proposições. Ou seja, não sou adepto do irracionalismo ou do “vale tudo”. 

O que me parece um tanto ultrapassada é a pretensão à verdade (a com “V” maiúsculo) a partir das proposições; é todo o peso que se dá a elas, como se um pequeno sinal de incoerência em minha fala (o que sempre é uma possibilidade), menos até do que em minha vida, fosse prova da invalidade de meu discurso, pois este não corresponderia à verdade (resta saber: qual corresponde?). Em suma, é a pretensão a ser a única “voz da verdade” em um mundo plural. É claro que em uma discussão nos avaliamos mutuamente com base na assertividade e coerência de nossas proposições, o que não significa que: (a) elas sejam infalíveis; nem que (b) a sua consistência lógica invalida, automaticamente, o discurso supostamente menos consistente de outrem, bem como elimina sua possível aceitação como “verdade particular” em certo contexto. 

Ou seja, o que me parece estar em foco aqui é um debate como disputa, não como diálogo, quando tratamos nossas convicções nesses termos. Isso fica mais claro ainda quando Henry diz que, “se as afirmações revelacionais cristãs são verdadeiras, nenhum outro sistema poderá ser mais compreensivamente consistente” (Henry, 1990, p. 82, grifo meu). A aposta está, portanto, não tanto na verdade em si, que se basta, mas na superioridade, em termos de consistência e coerência lógica, do “sistema cristão” em relação aos demais em sua acessibilidade à verdade. 

Para Henry, em suma, embora não se possa provar (como queriam os empiristas) que o que se afirma no sistema cristão corresponde à verdade reivindicada, sua relevância filosófica depende da afirmação de que a verdade cristã tem validade universal, com alguma garantia para isso sendo apresentada (ver: Henry, 1990, p. 88). 

Uma resposta coerente a estas afirmações de Henry pode ser encontrada na seguinte afirmação de George Lindbeck (1984, p. 69, grifo meu):
Assim como a gramática por si mesma não pode afirmar nada que seja verdadeiro ou falso a respeito do mundo em que a linguagem é usada, mas apenas sobre a própria linguagem, também a teologia e a doutrina, na medida em que são atividades de segunda ordem, nada podem afirmar de verdadeiro ou falso sobre Deus e sua relação com as criaturas, mas apenas falar a respeito de tais afirmações. 
A visão de Lindbeck parece coincidir com a ideia de que a teologia não produz teorias de correspondência com a verdade, uma vez que ela seria uma espécie de “fala sobre a fala” (aboutness, na linguagem de Rorty), isto é, não o próprio espelho da linguagem divina, mas uma fala acerca tanto da fala de Deus (isto é, das Escrituras, que contêm sua Palavra) quanto das demais falas sobre Deus.

Então, penso que uma coisa é a afirmação (racional, propositiva e coerente) de suas convicções em diálogo, escuta e respeito com as demais; outra, bem diferente, é a afirmação da sua em detrimento e exclusão das demais convicções (como que dizendo: se a minha convicção nasce e é expressão da verdade, a do outro não pode ser, afinal, a verdade “é uma só”: ou é verdade, ou é mentira, não tem “meio termo”). Ademais, diria que se alguma evidência (ou prova) pode ser reivindicada pelos que se consideram discípulos da verdade (Cristo), esta seria, nos termos de André Comte-Sponville (2008, p. 58), uma “evidência muda”, isto é, que se basta em si mesma, no ser mesmo, na vivência mesma, sem necessitar, forçosamente de defesa, argumentação, prova ou discurso para que “seja a verdade”.

O que preocupa aos cristãos em geral é uma coisa chamada “critério de decisão”. Qual é o critério que devemos adotar para decidir sobre questões de cunho moral, por exemplo? Richard Rorty tem muito a ensinar aos pensadores cristãos nesse sentido. O problema, para ele, não é a busca por critérios em si, mas a busca deles no mundo (ou em Deus) na expectativa de que ele “fale”, ou melhor, dite o que é ou tem de ser. Essa tentação de buscar critérios no mundo é devida a tendência de pensar no mundo, ou no próprio ser humano, como possuidor de uma “natureza intrínseca”, uma “essência”. Como não alcançamos essa essência (apenas pretendemos), o resultado é a “tentação de privilegiar uma dentre as muitas linguagens com que habitualmente descrevemos o mundo ou nós mesmos”, e a consequente criação de “vocabulários-como-totalidades” (Rorty, 2007, p. 31), ou, diria eu, de vocabulários-deuses

Evitar essa tentação é minha proposta nessa breve discussão. Para isso é necessário um sacrifício: não o sacrifício da verdade, mas o sacrifício pela verdade – se é que ainda nos importamos com ela, e não apenas estamos interessados no poder ou status que a pretensão de possuí-la, ou que sua posse efetiva como efeito do “abuso espiritual” ou religioso, nos confere. O sacrifício da verdade acontece sempre que alguém alega tê-la encontrado, em seu estado absoluto, e a codificado em uma linguagem; já o sacrifício pela verdade é um sacrifício de si mesmo e da visão de que minha linguagem e teologia correspondem ao modo como as coisas (Deus, sua Palavra) realmente são. O sacrifício pela verdade é uma imitação do sacrifício de Jesus – o caminho, a verdade e a vida –, que como Ser-Verdade se sacrificou por amor, ao contrário de muitos dos que dizem seus seguidores, que continuam, em nome de uma versão tremendamente distorcida dele, sacrificando o amor ao próximo em nome da apologia da verdade: que mata, trucida e exclui. 
Em contrapartida, afirmar que só sabemos em parte é um modo cristão autêntico de viver na casa do conhecimento sem abandonar a casa do amor. 
O saber, assim como a sombra, é uma espécie de bloqueio. Já nasce limitado. A luz, porém, continua brilhando lá fora... Não temos, portanto, o papel de fazê-la brilhar mais (pois seu brilho é suficiente, e porque é ela que ilumina nossas trevas, não o contrário); nem de tentar brilhar mais que ela (num surto narcísico); mas de, num “manquejar vitorioso” (Manning, 2005, pp. 179-194), caminhar nela. E, assim, poder orar como o salmista: “Lâmpada para os meus pés é tua palavra, e luz para o meu caminho” (Sl 119:105).

Jonathan

Referências bibliográficas

COMTE-SPONVILLE, André. Valor e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 
HENRY, Carl F. H. Toward a recovery of Christian belief. Wheaton, Illinois, EUA: Crossway Books, 1990.
LINDBECK, George A. The nature of doctrine. Religion and theology in a postliberal age. Philadelphia, Pennsylvania: Westminster Press, 1984. 
MANNING, Brennan. O evangelho maltrapilho. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Transcender a aparência, rencontrar a ipseidade


Que empreendimento nefasto, infeliz e destrutivo esse de lutar pela aprovação alheia!

Aos poucos, vamos nos esquecendo de quem somos, de nossa origem, de nossa personalidade, que vai sendo formada à imagem e semelhança do que os outros projetam, e que nós abraçamos visando agradar os outros.

Será que existe algo mais volúvel e fugaz que a opinião e aprovação (ou não) alheia sobre nós?

Um dia, você está no céu; no outro, é mandado ao inferno.

Os mesmos que uma vez disseram que você é “o cara" ou “a mina”, pouco tempo depois, por não aprovarem algo que você disse ou fez, te condenam ao ostracismo.

E se vivermos apenas em função disso, onde vai parar nossa ipseidade (aquilo que faz com que sejamos o que somos)?

Que ela seja formada também por aquilo que emprestamos dos outros, disso não tenho dúvida. Mas não são os outros – sobretudo os que só enxergam a aparência – que têm de determinar quem somos, principalmente porque são raras as pessoas que nos aceitam do jeito que somos, não apenas a "aparência".

No fundo, nossa luta é para que nos tornemos aquilo que somos.

E por mais que minha ipseidade revele também minha dependência de outras pessoas, penso que ela também me reveste da capacidade de escolher a medida ou a extensão desse poder, para minha própria sanidade.

Portanto, preciso da conscientização diária de que meu ser é originado na Vida; sou, portanto, Filho da graça de um Deus que me chama "amado". Quem vive apenas para agradar os outros é porque se esqueceu de sua ipseidade original, de sua identidade de Filho.

A esperança é a de que um dia seremos achados como somos. E toda aparência se desvanecerá.

Jonathan 

terça-feira, 22 de março de 2016

Do amor ao inimigo


Vocês ouviram o que foi dito: ‘Ame o seu próximo e odeie o seu inimigo’.  Mas eu lhes digo: Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem,  para que vocês venham a ser filhos de seu Pai que está nos céus. Porque ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos. Se vocês amarem aqueles que os amam, que recompensa receberão? Até os publicanos fazem isso!  E se vocês saudarem apenas os seus irmãos, o que estarão fazendo de mais? Até os pagãos fazem isso! Portanto, sejam perfeitos como perfeito é o Pai celestial de vocês (Mt 5.43-48, NVI).
De todas as palavras da Bíblia, o "dar a outra face" e "amai vossos inimigos" me parecem ser as que vão mais contra a natureza humana e tudo quanto eu prefiro e tendo a fazer. Por isso, talvez, sejam temas ausentes da pregação cristã, uma vez que é tão difícil viver.

Então, é um tema que a gente trata com certo desdém, como se fosse uma história que Jesus contou um dia, mas que não necessariamente tem que ter a ver com nossa vida (Jesus só podia estar de brincadeira se ele achava que a gente seria capaz de colocar isso em prática).  É "utopia", diriam alguns. Mas para que serve a utopia? Não para negar a realidade, mas para iluminá-la; não para nos distanciar do chão, mas para nos fazer andar melhor nele.

Aqui está o meu problema com aqueles que vivem dizendo que Jesus era simples e de que o evangelho é simples. Pode, às vezes, partir de um ponto muito simples; e pode até ser simples de entender. Mas será simples de viver? Se fosse simples de viver, não seria nem necessário gastar tempo refletindo sobre isso. Mas não. Abraçamos o evangelho não apenas com o (suposto) entendimento do evangelho, mas, sobretudo, com a vivência do evangelho. E faz parte do processo de amadurecimento na vida (cristã) ter de conviver e lutar com as poucas ou muitas inadequações existentes entre o modo como entendemos e o modo como vivemos.

Afinal, o que Jesus está nos convidando a fazer nesse texto, quando fala de uma forma mais ampla e complexa de amor, que é o amor aos nossos inimigos e perseguidores?

I. Um convite à inversão de nossos padrões culturais (v. 43-44)

Observe que ele começa com um "vocês ouviram o que foi dito". A antiga lei, com a qual eles estavam acostumados, partia de um princípio de retribuição: se pegou, pague; se apanhou, bata; se recebeu amor, dê amor; se foi odiado, odeie; se venceu, receba o prêmio; se perdeu, lide com a derrota; etc.

É a maneira como nossa cultura - e a nossa justiça, distributiva e retributiva por natureza - tende a nos impulsionar a agir. Como? Dando inúmeros exemplos diários, da escola à universidade, do trabalho ao trânsito, do bar à igreja, de que é assim que as coisas funcionam "aqui em baixo". E, quando menos se percebe, já estamos normalizando esse modo de ser e nos adequando a ele, afinal, para sobreviver na selva é preciso, às vezes, agir como selvagem.

O convite de Jesus é para que desafiemos isso, invertendo os padrões. Aceitar o convívio harmonioso com quem te persegue não basta, é preciso amar o inimigo e orar por ele. 

Nos tornamos, assim, bobalhões que aceitam tudo e abaixam a cabeça para a injustiça? Não. Jesus foi um bobalhão? Acho que não. Ele lutou, mas com armas diferentes das de seus algozes. Sua justiça era a do reino; e a justiça do reino caminha de mãos dadas com o amor. Não pune, mas perdoa; não bane, mas restaura. Essa é a diferença entre a justiça retributiva e a justiça restauradora, como demonstrou Desmond Tutu em seu livro Por que Deus não é cristão e outros ensaios: enquanto o propósito da primeira e punir o perpetrador, o da segunda não é punitivo, mas restaurador, curador. Segundo ele, "a justiça restauradora acredita que um crime causa uma brecha, perturba o equilíbrio social, o qual, por sua vez, deve ser recuperado, assim como a brecha precisa ser fechada, em um processo em que o ofensor e a vítima possam se reconciliar e retornar à paz" (p. 62).

Assim, o amor ao inimigo não é um convite à subserviência, é um convite à revolução! Mas essa revolução precisa começar primeiro dentro da gente., o que nos remete a um segundo convite implícito no texto.

 II. Um convite para que abracemos nossa filiação (v. 45)

Começa dentro de nós, como eu disse, na medida em que avaliamos quem somos diante de Deus. Nós somos "filhos". E o que nos torna filhos? O fato de que somos nascidos do Pai, e agimos conforme ele age. E como age o Pai? Aqui tocamos num ponto importante. Para responder a essa pergunta, é útil que nos voltemos para dentro de nós mesmos, e nos perguntemos: Como nós temos agido ou como tendemos a agir?

Brennan Manning, no seu livro A sabedoria da ternura, disse que certa vez fez a si mesmo a pergunta: "Será que eu gasto os meus dias amando?". Depois de um exame de alma, a resposta foi "sim". O problema foi quando ele descobriu que dividia a comunidade humana em certas categorias. Então, ele disse: "Há algumas poucas pessoas que amo, certo número de pessoas de quem gosto e uma multidão em quem raramente penso, a quem me dirijo de maneira proativa ou por quem não manifesto qualquer interesse" (p. 85).

Essa talvez seja uma conclusão a que a maioria de nós, incluso a mim, chegaria caso se fizesse a mesma pergunta. Nós fazemos acepção entre pessoa e pessoa. Achamos isso natural. Amamos a quem é mais natural e fácil de amar. E no mais baixo escalão dessa acepção, colocamos nossos inimigos e pessoas que nos perseguem. Como amá-las? E mais do que isso: por que eu deveria amar essa pessoa? O que ela fez para merecer? Pelo contrário, muitas vezes as pessoas nos dão mais motivos para ódio e repulsa que para o amor - o que coloca em cheque a dependência do amor em relação ao mérito e ao dever.

Cito dois casos que aconteceram numa história recente, para nos ajudar a refletir. O primeiro ocorreu em 2012, com um menino do Rio de Janeiro, Wesley, de 2 anos, que morreu após uma parada cardíaca, com escoriações e fraturas no corpo e cabeça. O pai e a madrasta foram acusados de cometer o crime. Fico pensando se fosse com meu filho, uma violência bruta e covarde dessas: o que eu faria? Se você fosse a mãe desse menino, o que seria capaz de fazer com quem praticou essas atrocidades? O segundo aconteceu no mesmo ano em um cinema, em Colorado, nos EUA, quando um atirador de 24 anos fuzilou a plateia, deixando 12 mortos, e mais de 70 feridos, sendo 11 em estado grave. Se você fosse uma pessoa próxima de alguma das vítimas, perdoaria o seu algoz? Seria capaz de amá-lo sendo quem ele é, tendo feito o que fez?

É natural que desejemos que se faça justiça e que as leis sejam aplicadas a cada um dos culpados. Mas, e depois? Não há nenhuma possibilidade de perdão e restauração ao condenado? Difícil, certamente difícil pensar nessa pessoa andando livre pelas ruas outra vez, enquanto aqueles que amamos se foram. Mas quem sou eu para exigir seu banimento para sempre? O ódio e a ausência de perdão não são também formas de se manter também preso com eles, formas de autopunição?  E o que Deus faz? Bem, Jesus diz que Ele ama, dá o seu melhor a despeito de quem seja, bom ou mal - como lemos: ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos.

Sei que não é fácil. Mas, ser filhos e filhas de Deus é fazer o que Ele faz, mesmo que nunca no mesmo nível. Como lemos em João: "Aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus" (1Jo 4.7). Para isso, é preciso perceber o convite oculto de Deus nesse texto, como demonstro a seguir, e que pode ser um tanto aterrador.

III. Um convite para um amor que transcende as categorias de bem e mal... e que cobre uma multidão de pecados.

Deus nos convida a amar nossos inimigos por que Ele ama os seus inimigos: nós. Deus demonstrou seu amor por nós sendo nós ainda pecadores ou inimigos de Deus (Rm 5.8).  E a pergunta crucial é: algum dia deixamos de ser pecadores?

Não fosse pela graça, nunca deixaríamos de ser inimigos de Deus e, se não for pela graça, que todos os dias nos alcança, jamais deixaremos de ser. Na verdade, de muitas maneiras continuamos a ser algozes de Deus. Então, o amor de Deus transcende as categorias de bem e mal porque Ele não distingue quem vai amar. Se estamos e permanecemos no seu amor, essas distinções precisam cada vez menos fazer parte de nós.

Quero citar os versos 46 e 47 de nosso texto base na tradução A Mensagem, de Eugene Peterson:
“Se tudo o que vocês fazem é amar os que são amáveis, esperam um bônus? Qualquer um pode fazer isso. Se vocês simplesmente dizem 'olá' a quem os cumprimenta, esperam receber uma medalha? Qualquer pecador básico pode fazer isso”.
É como se Deus estivesse nos dizendo: mostrem ao mundo um tipo de amor que ele não conhece, o amor com o qual eu os amo todos os dias, o amor que revoluciona e provoca uma inversão de todos os valores. É disso que estou falando...

A difícil questão, porém, permanece sendo: mas COMO posso amar meus inimigos? Talvez um bom começo seja a partir de certos reconhecimentos...

(1) Primeiro, reconhecendo a inaptidão natural que todo temos para amar nossos opositores.

(2) Segundo, reconhecendo o amor de Deus por nós mesmo em nossa condição de seus potenciais, quando não reais, inimigos.

(3) Terceiro, reconhecendo a revolução de graça que esse amor opera em nós, quando assumimos nossa condição de filhos de Deus e agentes de seu reino de vida no mundo.

Amar ao inimigo é uma daquelas coisas com as quais temos de caminhar a vida toda e, à luz de cada situação e de um exame sincero de consciência e de alma, colocar na mesa nossas imperfeições, inadequações e fraquezas, esperando pela misteriosa força que Deus supre. Não se trata de disciplina apenas, do cumprimento de um mandamento apenas. Só pela graça podemos agir com graça.

Termino com uma oração conhecida, a "Oração de São Francisco". Precisamos pendurá-la diariamente nas paredes dos nossos corações, especialmente nesse tempo de polarizações em que temos vivido:

Senhor, faze de mim um instrumento de tua paz
Onde houver injustiça, que eu leve o perdão
Onde houver ódio, amor
Onde houver dúvida, fé,
Onde houver desespero, esperança,
Onde houver trevas, luz,
Onde houver tristeza, alegria.
Ó mestre Divino, faze com que eu não busque mais
Ser consolado do que consolar
Ser compreendido do que compreender
Ser amado do que amar
Pois é dando que recebemos
É perdoando que somos perdoados,
 e é morrendo que se vive para a vida eterna… Amém!
Jonathan

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Quem é esse ser que logo sou?


Eis algumas perguntinhas despretensiosas que esse texto – “Como sabotamos a nossa vida sem perceber” (ver aqui) - me induziu a fazer a mim mesmo (e para além do que ele diz):

- O que ou quem define minha vida? 
- O que sobra de mim, para além da imagem (pública) que construo diariamente?
- O que sobraria dessa imagem pública caso mais pessoas, além de mim mesmo, soubessem um pouco mais sobre quem realmente sou?
- E quem realmente sou? Quem sabe quem é "realmente"?
- Quem são as pessoas que de fato gostam de mim, pelo que sou?
- O quanto de integridade estou disposto a abrir mão para que mais pessoas "gostem" de mim?
- De quantas curtidas eu preciso para me tornar "alguém"?
- Qual é a história mais importante: a que eu escrevo, a que os outros escrevem sobre mim, ou a que eu e os outros inventamos sobre um "eu" que na verdade inexiste, exceto como emulação ou fantasmagoria?
- Vivo eu, sobre-vivo, sub-vivo ou, como diria Paulo, é o Cristo que em mim vive? Afinal de contas, o que significa "viver"?
- E se não vivo "realmente", o que tem me privado de viver?

Não tenho respostas a dar a maioria dessas perguntas, e não estou preocupado com isso. Tento, como diz Rilke em suas Cartas a um jovem poeta, “ter amor pelas próprias perguntas, como quartos fechados e e como livros escritos em uma língua estrangeira”, procurando não investigar “as respostas que não lhe podem ser dadas, porque não poderia vivê-las”. Vivo agora as perguntas! (p. 43)

Não faço isso por preguiça, mas por zelo e amor pela vida, tão rica e complexa para ser encerrada em conceitos. Porque a vida, companheiros/as de rede, é como um enigma fascinante (se não posso definir, o negócio é comparar). Tão fascinante (e única) que não posso continuar vivendo sem parar para refletir no modo; tão enigmática que não é possível desvendá-la por inteiro; e tão breve que não vale a pena se paralisar pela possibilidade de perdê-la. Afinal, como disse o Mestre dos mestres e Senhor dos senhores, quem perde a vida, a acha. Quão libertadora não pode ser a ideia de ganhar aprendendo a perder aqui e ali? Eis um paradoxo da vida: a vitória nem sempre é parceira do ganho; e perder-se pode ser a melhor maneira de se achar.

Jonathan

domingo, 24 de janeiro de 2016

Fé, teologia e a arte de perder chãos


A vida intelectual, como a pensa João Batista Libanio (2006, p. 81), “só se desenvolverá se se mantiver uma atitude de abertura ao diferente, ao novo, ao questionamento”. De acordo com ele, como filhos/as de uma época e uma cultura específicas (na qual se insere a religião) todos/as fazemos parte de uma tradição (ou mais que uma). Por exemplo, o que concebemos como “fé” (falando de seus conteúdos) é fruto de uma vivência dentro de uma tradição, em que a experiências individuais alimentam e são alimentadas por experiências coletivas. Entretanto, como reitera Libanio, “viver só da tradição”, tratando-a de modo rígido ou definitivo, “termina em um processo repetitivo”. Aqui entra o que ele chama de atitude de abertura enquanto “capacidade de assumir uma autocrítica da própria tradição de dentro dela” (Ibid., p. 81).

Essa atitude se opõe, na visão de Libanio, tanto a uma concepção puramente ortodoxa, que trabalha com a perspectiva excludente de sim ou não, ou, ou; quanto também uma concepção relativista, que desqualifica a tradição assumindo uma postura em que anything goes, ou qualquer coisa vale, e que pode facilmente ser trocada por outra coisa no próximo momento. Ao invés, ele propõe uma concepção dialética, que “busca a síntese entre a tradição e a novidade da experiência, chegando a novas formas de verdade. Retém a positividade da tradição, nega-lhe a negatividade e assume do presente sua força crítica positiva. Vão assim construindo novas e mais ricas sínteses de verdades” (Ibid., p. 82).

Nesse sentido, uma tradição nunca deve se impor como absoluta, e toda vez que o faz recai no risco da idolatria. Isso, porém, aconteceu e ainda acontece na história das religiões, e do cristianismo em particular. Basta recordar o período da Reforma Protestante, por exemplo, que teve como uma das razões principais de sua ocorrência a elevação da igreja, sua ordem, seus dogmas, à condição de absoluta, inquestionável, acima da própria Palavra de Deus. Somente através dela se podia conhecer o verdadeiro Deus e a legítima mensagem das Escrituras. Contra isso se impôs o que Paul Tillich (2006, 1992) chamou de princípio protestante. Segundo ele, “o princípio protestante é a reafirmação do princípio profético em seu ataque contra uma igreja que se considerava absoluta e que, por isso, se encontrava demoniacamente deformada” (Tillich, 2005, p. 234), ou, parafraseando o que ele disse em outro lugar (Tillich, 1992, pp. 209-221), trata-se do protesto divino e humano contra toda tentativa de absolutizar o que é apenas relativo e temporal.

Quando a igreja quer igualar a si mesma, ou o que ela diz/faz, a Deus, torna-se um ídolo ou um demônio, deixa de ser igreja – lugar de pecadores salvos pela graça de Jesus Cristo e, por isso, conscientes de que seus saberes e experiências são sempre “em parte” – e passa a ser uma Babilônia ou uma sucursal do inferno.

Contra essa tentação, meu propósito aqui é de fazer uma síntese sobre o que significa permanecer crendo, escolhendo a fé, diante das eventuais desconstruções pelas quais passamos em meio a um universo de descrença e ceticismo, ou mesmo de dúvidas e incertezas que nos cercam, tanto no plano intelectual (teológico e filosófico) quanto no plano existencial. Para tanto, gostaria de propor, como exercício de reflexão, o que aqui estou chamando de “arte de perder chãos”, cuja premissa é a de uma desconstrução sadia e intencional de todos os solos provisórios sobre os quais assentamos nossas crenças. Pode ser representado pela rudimentar figura que abaixo se encontra:


Tentarei explicar o que quero dizer com essa imagem através do seguinte:
1. Na parte inferior da figura estão o chão da fé e o chão da história que, embora distintos, não se encontram em planos diferentes. Fé é fé no incondicional. Trata-se de chão invisível e indizível, em primeiro plano, por isso é chão enquanto sustentação incondicional do que denominamos fé. Essa fé, porém, não nos desistoriciza nem nos desumaniza, mas nos comissiona, segundo a premissa de encarnação vigente no evangelho, a entrar na história como antecipadores da eternidade através de gestos que Paulo chamou de “permanentes”: a fé, o amor e a esperança.
2. A caminhada humana, porém, nos impõe a busca por sentido e, assim, a criação de sentidos possíveis para aquilo que acreditamos e sobre o porquê de acreditarmos nessas coisas. Esses são o que poderíamos chamar de “chãos finos e frágeis”, porque provisórios.
3. Esses, por sua vez, são constituídos por manifestações temporais e impermanentes na esfera da cultura – ética, estética e religião. A cultura humana, inventada e invencionista, incita a cada ser humano a dar formas – símbolos, mitos, representações do “real”, e, par os de fé, da própria fé, da religião e de Deus, expressas pelos conteúdos, dogmas, crenças, tradição.
4. Esses chãos, como já disse, são frágeis e provisórios – e essa é a sua propriedade. O ato de tentar equipará-los à própria realidade ou ao incondicional é parte do antropomorfismo, de modo que a crítica de Feuerbach à religião torna-se válida nesse caso: a realidade (ou o incondicional) é fruto da consciência que o homem tem (ou imagina ter) de si mesmo. A consciência que o ser humano tem da realidade, porém, não é capaz, por mais que pretenda, dar conta ou espelhar a própria realidade. Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo (2008), desenvolve a tese de que, com relação ao real, nossa tendência é a de suprimi-lo numa “atitude de cegueira voluntária”, que nos faz ignorar o real, o singular, e dirigir nosso olhar para outro lugar (seu duplo), onde o real não está. De modo que, aquilo que anunciamos como sendo “real”, é na verdade o “outro”, visto que o real, em si, nos escapa. A realidade não se dá a conhecer plenamente, não é inteligível em sua essência. Na mesma medida em que é ininteligível, também é cruel (ou seja, dura). Daí a cegueira voluntária consiste no efeito psicológico ilusivo produzido pelo efeito do espelho: no encontro com o outro da realidade (seu duplo, sua representação), penso estar em contato com ela mesma (Rosset, 2008, p. 91). O mesmo pode funcionar para o relacionamento da pessoa de fé com o incondicional: a ilusão, nesse caso, consiste na pretensão de falar por Deus, ou de que a imagem verdadeira de Deus está expressa na ideia ou na representação. É aqui que a ilusão pode se converter, ao mesmo tempo, em manipulação e em idolatria.
5. Nietzsche e seu perspectivismo trouxe para gente a ideia de que tanto a realidade, quanto o que chamamos de “verdade”, são criações da linguagem. A linguagem coloca diante de nós um mundo de possibilidades e também de impossibilidades. A palavra pronunciada coloca uma parcela do mundo em movimento, mas nunca é a expressão exata desse mesmo mundo. Isso é o que Jacques Ellul (1984, p. 21) chama de “bendita incerteza do discurso; é o que lhe confere toda a riqueza”. O discurso, completa ele, é sempre ambíguo, jamais transparente. Posso me esforçar para que o outro compreenda exatamente o que estou dizendo, contudo, “não sei, exatamente, o que o outro está entendendo daquilo que digo” (Ibid.). Mas é no meio desses buracos, insucessos e mal-entendidos da linguagem que, segundo Ellul, reside uma nova expansão da vida, em que se recomeça incessantemente, e se deve trabalhar na interpretação do discurso e do texto num movimento sempre em construção e, por isso, sempre susceptível de múltiplas definições. Como expressa Ellul:
A confusão da linguagem impede a posse do ser, seu cativeiro. Eis-me diante de um instrumento de infinita riqueza, inesperada, de uma polifonia desencadeada pela menor frase. A ambiguidade do discurso, e mesmo sua ambivalência, mesmo a oposição entre o momento em que é enunciado e o momento em que é recebido, produzem as mais intensas atividades sem as quais seríamos formigas, abelhas, tornar-nos-íamos ressequidos, esvaziados de nosso drama e da nossa tragédia. Nascem aí o símbolo, a metáfora, a analogia. (Ibid., p. 21).
6. As possibilidades impossíveis da linguagem deveriam, assim, nos conduzir a uma tarefa mais honesta, humilde, dependente daquilo que somos e temos – e, por isso, impeditiva do atrofiamento dogmático –, e da graça de Deus e, por tudo isso, alegre e celebrativa. Eis o extraordinário, diria Ellul: é uma benção para o ser humano viver assim, cativo da linguagem, distante da completude e, ao mesmo tempo, em busca dela, pois do contrário, acrescentaria eu, não seriamos seres humanos e sim deuses, ou semideuses. Assim, a linguagem não é o espelho da realidade do sagrado; fala mais do ser humano do que do ser divino, nesses termos. Minha linguagem é prostituída; volta e meia incorpora novos amantes e novos parceiros/as, sem mesmo se dar conta. E não há nada que passe por seu filtro sem ser afetado e que, portanto, possa ser expresso em estado puro: nem as coisas do mundo, muito menos as coisas do céu. As ideias, os conceitos, os símbolos são, assim, formas de redução da realidade e não o seu reflexo. Quanto mais ciente disso me faço, menos pretensiosos serão meus atos de fala ou mesmo minha teologia. A teologia, mais que qualquer outra modalidade de saber, deveria estar ciente do estado de distanciamento involuntário a partir do qual ela surge; pretende falar de Deus, mas todo significado que dá para esta palavra não passa de uma mirada através de uma brecha ou um pequeno buraco na parede que dá uma visão (apequenada) para fora. Admitir isso não é uma forma de relativizar a verdade, mas de preservá-la. Isso é redenção e não desgraça, sobretudo quando se pode assumir jubilosamente a provisoriedade desses “chãos” da linguagem e permitir que eles se desmanchem e se refaçam num movimento dinâmico. Esses chãos estão para a queda assim como o peixe está para a água. O objetivo, porém, é perder o chão sem cair no abismo, e essa é uma arte bastante arriscada que somente os corajosos e aventureiros se dispõem a aprender e se permitem desenvolver. Deixar o chão ruir pode ser, ao invés da “ilusão voluntária” de quem os iguala à realidade, um mergulho consciente e voluntário. Ora, não foi assim com a encarnação do Cristo? Não foi um mergulho (ou enfraquecimento) voluntário na humanidade e na história?
7. Em conclusão, é possível pensar que esse mergulho voluntário tem tanto uma dose de imanência quanto de transcendência (pensando naqueles dois chãos primários da figura), em que recebemos tanto um banho de realidade quanto da fé no incondicional e, a partir daí, fazemos uma revisão de paradigmas, de pressupostos, de nossos chãos. Aqui reside um aspecto muito importante: um chão cai para que outro seja construído – portanto, não se trata de desconstrução pura e simples que redunda num vazio. E isso se dá num movimento dinâmico – como as águas do rio que correm para o mar e de lá voltam a correr (Ec 1.7). Nesse sentido, pode-se pensar que nunca voltamos os mesmos de cada novo mergulho, de cada nova imersão e experiência. A esperança – falando propriamente contra o dogmatismo e a intolerância – é que voltemos mais maduros, melhores, mais tolerantes e generosos. É um movimento descendente, de humilhação, inspirado no evangelho do Cristo que se esvaziou por amor. Oxalá a teologia possa descobrir na arte de perder chãos um antídoto contra o absolutismo, a idolatria e uma ortodoxia morta.
Jonathan

Referências bibliográficas

ELLUL, Jacques. A palavra humilhada. São Paulo: Paulinas, 1984.
LIBANIO, João Batista. Introdução à vida intelectual. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2006.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Ensaio sobre a ilusão. 2ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008.
TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 5ª ed. Revista. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2005.
_________. A era protestante. São Bernardo do Campo, SP: Ciências da Religião, 1992.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Paradoxos da fé


Na famosa definição de Hebreus, a fé é “a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Hb 11.1). Tomada fora do contexto e de modo descomplicado, essa definição pode enganar um pouco no aspecto dessa “certeza” e dessa “convicção” sobre a qual fala o texto. Que tipo de certeza é essa? Em que se baseia tal convicção? A tese de Hebreus 11, no verso 1, perde muito de seus sentidos possíveis se desatrelada de todo o texto. Minha intenção não é fazer uma exposição do texto, e sim apontar alguns paradoxs da fé importantes nele.

O primeiro é o paradoxo da fé entre a certeza e a incerteza. Do que a fé é pode ser certa? Daquilo que, do ponto de vista humano, aparenta ser o mais incerto. A fé, por exemplo, é certa da existência de Deus, não porque Deus tenha se mostrado de maneira clara por meio de evidências ou provas, e sim porque, na linguagem de Tillich, esta pessoa foi tomada pelo incondicional e o eterno. Como diz Kierkegaard (2012, p. 77): “A fé é antecedida por um movimento de infinito; é apenas então que ela surge, nec inopinate, em razão do absurdo”. Tillich (1957, p. 65), de modo semelhante, também afirma que “todo ato de crer pressupõe participação naquilo para que está dirigido. Sem uma experiência anterior do incondicional não pode haver fé no incondicional”.

O cientista tem provas de uma realidade na medida em que essa realidade se dá a investigar, e então ele tem uma certeza objetiva. O médico pode chegar a ter certeza sobre as origens de uma doença X, porque os exames que ele fez provaram que ela veio da ação de uma bactéria Y. Na fé não é assim. A fé não é apenas certeza do mais incerto, como certeza que se sustenta sob condições incertas. Hebreus diz que quando Deus chamou Abraão, por exemplo, este se dirigiu “a um lugar que mais tarde receberia como herança, embora não soubesse para onde estava indo” (11.8). Abraão partiu na certeza da promessa, no entanto, sem saber. Creu para essa existência, mas não obteve o que esperava nessa existência. Creu porque foi movido pelo incondicional, e porque teve a coragem da fé e o risco de suportar suas eventuais dúvidas e incertezas. E, como diz Tillich (1957, p. 15), “é suportando corajosamente a incerteza que a fé demonstra o mais fortemente o seu caráter dinâmico”.

O segundo é o paradoxo da fé entre o visível e o invisível. Já disse anteriormente que o fundamento da fé (o incondicional) se encontra além da concreticidade dos fatos, portanto, além do que os olhos podem ver, de modo que a testemunha ocular, digamos, de um milagre, não necessariamente se torna um discípulo. Como disse Ariovaldo Ramos (2015) recentemente, “milagre não gera fé, gera festa”. Hebreus diz que a fé é “prova das coisas que não vemos”. Então “fé”, nesse sentido mais estrito, significa confiança naquilo que não se pode ver, ao que não se tem acesso imediato.

Tomemos o exemplo de Moisés (11.23-29). O texto diz que, ao abandonar as riquezas e pompas do palácio no Egito, Moisés “permaneceu firme como quem vê o que é invisível” (v. 27). Ora, a própria ideia de “ver o invisível” já é um paradoxo. Logo, os olhos que “viram” não são estes humanos, mas os da fé, que se cria a partir da visão do inexistente porque “vê além”. Aqui facilmente alguém pode se recordar do que Jesus disse a Tomé, segundo o evangelho de João. Depois que este o viu e tocou em sua mão e em seu lado, declarou “Senhor meu e Deus meu”. Vendo aquilo, Jesus replicou: “Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20.26-29). “Assim, a fé crê no que não vê” (Kierkegaard, 2008, p. 118)

O terceiro é o paradoxo da fé entre a promessa e a realização. Chegamos a culminância dos outros dois paradoxos: o discípulo, que tem a confiança certa nas condições mais incertas, que crê naquilo que não vê, mas espera ansiosamente, deve também, como os “heróis da fé” de Hebreus, acreditar e viver segundo orienta a promessa, sabendo, porém, que pode não chegar a experimentá-la em vida. Quando pensamos na figura do herói no sentido hollywoodiano, a imagem que mais comumente surge é de poder, luta, com eventuais contratempos, mas sabendo que, no fim, o triunfo é certo, pois o herói sempre vence. Sem muita consciência projetamos essa imagem na vida, e não diferente na vida de fé. Nutrimos a certeza de que aquele que plantou o bem, lutou para alcança-lo, trabalhou duramente para sua conquista, ao final, será recompensado. Entretanto, a realidade é mais complexa que isso. Eclesiastes tentou nos alertar a esse respeito ao concluir que a vida é miserável, fugaz, cheia de sofrimento e sem sentido; que a sabedoria pode trazer vida, mas nem por isso o sábio está garantido em comparação com o tolo, às vezes a vida vira do avesso, e vemos o sábio sofrendo muito enquanto o tolo, apesar de suas tolices, só se dá bem. Ele também diz que sol nasce para todos e o fim é o mesmo para todos, pobres ou ricos, sábios ou tolos, justos ou injustos. E que, durante a vida, “cedo ou tarde, a má sorte atinge a todos. Ninguém pode prever a desgraça. Como peixes capturados numa rede cruel ou pássaros numa gaiola, os homens e as mulheres são capturados pelo mal acidental e repentino” (Ec 9.11-12, A Mensagem).

Podemos discordar, ficar bravos e profundamente incomodados com Eclesiastes, e com certa dose de razão, afinal, geralmente não somos preparados para lidar com as más notícias – nem pela família, tampouco pela sociedade ou pela religião –, apenas com as boas, como se o otimismo e o pensamento positivo nos garantissem vitória e vida longa. Contudo, de nada adianta espernear, fechar os olhos ou negar a realidade. Quem pensa que a vida de fé pode blindá-lo contra o sofrimento, facilmente envereda pela rua do engano e da ilusão. Primeiro, porque não há nenhuma garantia cósmica de que ter fé é ter proteção e segurança; segundo, porque não há nenhuma garantia bíblica, no sentido global, que sugira isso. Muito pelo contrário. Andar nos caminhos da fé, por sua própria natureza e pela natureza da vida, implica em enfrentar dificuldades várias, como foi o caso dos anti-heróis de Hebreus. Experimentaram, sim, a proteção divina em algumas circunstâncias e até viram algumas promessas sendo cumpridas, mas também “enfrentaram abusos, açoites e, sim, algemas e prisões”; alguns “foram apedrejados, serrados ao meio, assassinados a sangue frio”. Vaguearam pela terra, sem teto, força ou amigos, “vivendo como podiam nas periferias cruéis do mundo”, que, como diz o autor, não era digno deles! (11.32-38, A Mensagem).

E o autor de Hebreus finaliza claramente expressando o paradoxo em questão: “Entretanto, nenhum desses exemplos de fé puseram a mão na recompensa prometida. Deus tem um plano melhor para nós: que nossa fé se junte à deles, para formar um todo completo, como se a vida de fé que eles tiveram não fosse completa sem a nossa” (11.39-40, A Mensagem). Caminhar na fé, segundo Hebreus, implica em lançar-se nos paradoxos sem seguro de vida ou de triunfo. Aliás, Kierkegaard foi taxativo e um tanto duro a esse respeito, seguindo a lógica ilógica de Hebreus, quando disse que:
Em verdade, se ocorresse à fé alguma vez a ideia de avançar assim, triunfalmente en masse, então ela não precisaria autorizar alguém a cantar refrões satíricos, porque de nada adiantaria proibi-lo a todos. Mesmo que os homens emudecessem, ouviríamos sobre esta louca procissão uma risada estridente como aqueles sons zombeteiros que a natureza faz ouvir no Ceilão; pois a fé que triunfa é a mais ridícula de todas as coisas. Se a geração contemporânea de crentes não teve tempo de triunfar, nenhuma outra o conseguirá; pois a tarefa é a mesma, e a fé é sempre militante; mas enquanto ainda houver luta haverá a possibilidade de derrota, e por isso, no que concerne à fé, jamais se triunfa antes do tempo, ou seja, jamais se triunfa no tempo [...]. (Kierkegaard, 2008, p. 152-153).

Que vantagem há na fé? Que proveito ela, porventura, traz? Afora as promessas falsas provenientes de uma falsa piedade – porque apartada da vida real –, a resposta honesta pode ser: nenhuma! E quem disse que a fé tem a ver, primordialmente, com vantagem e com proveito? Se algum proveito há na fé – claro que estou falando aqui da fé cristã – esse não está primeiramente voltado para a pessoa em si, mas para o próximo da fé, tanto no presente, quanto no futuro, pois a fé que vive no paradoxo se concretiza de várias formas já, só que plantando sementes para a eternidade. O final do capítulo 11 de Hebreus é sugestivo de que a fé do discípulo não é fé em si ou para si, mas é fé para a posteridade, é a fé que cresce e amadurece nos outros. É, nesse sentido, uma dádiva, um bem comunitário, um tipo de fé que se forja na junção do si mesmo e do/com o outro. Ali germina, ali cresce, e dali se expande para a eternidade.

Jonathan

Referências bibliográficas

KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
_______. Migalhas filosóficas: ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
PETERSON, Eugene. A Mensagem. Bíblia em linguagem contemporânea. São Paulo: Editora Vida, 2011.
RAMOS, Ariovaldo. Convergir. Palestra proferida na Soul Igreja Batista, Rio de Janeiro, 15/09/2015. Ver: . Acesso em 16 set. 2015.
TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. 4ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1957.