É inegável que William Young, escritor canadense, há pouco tempo entrou para o hall de notáveis autores da literatura contemporânea. De mero desconhecido, Young saltou para o status de um dos autores mais lidos nos últimos tempos, com o lançamento de seu primeiro livro, e também primeiro best-seller, A cabana (Sextante, 2008). Neste primeiro livro ele já demonstrou a habilidade rara de fundir em uma mesma história uma narrativa cativante e uma reflexão (existencial e teológica) provocativa, inovadora. O “problema” do livro – para alguns, é claro – é o mesmo que se pode encontrar em inovadores por natureza: eles incomodam muita gente, especialmente aos guardiões da ortodoxia de plantão.
E começo então a falar sobre esse mais recente lançamento de Young, A travessia (2012) pontuando que ele tem algumas semelhanças com A Cabana. Em primeiro lugar, porque os temas teológicos de fundo são quase os mesmos: o problema do sofrimento humano, religião, liberdade e graça, comunidade trinitária, etc. Em segundo lugar, porque a dinâmica em que esses temas aparecem na nova trama também é bastante parecida, em que o protagonista, um homem beirando a meia-idade, vivenciando uma situação extrema, é conduzido a um encontro com a Trindade, que, assim como na obra anterior, assume formas humanas típicas: o Espírito Santo é uma mulher idosa da tribo Lakota, carinhosamente apelidada de “Vovó”; Jesus aparece como um homem de olhos castanhos e vestimentas rústicas, e Papai tem uma aparição rápida na figura de uma garotinha de vestido azul e verde, embora o autor tenha dito na narrativa que, através de Jesus e de Vovó, “Papai nunca deixou de estar presente” (p. 235). Impossível esquecer-se de outro ilustre personagem, chamado de “Jack da Irlanda”. Logo fica claro, pela influência que teve na vida do autor e na construção de sua obra, que se trata de uma homenagem a C. S. Lewis (que era conhecido por seus amigos como “Jack”). Por fim, pode-se dizer que a mesma tenacidade da união entre narrativa e reflexão, tão habituais no estilo do autor em A Cabana, continuam presentes, embora menos intensamente, em A travessia – título, aliás, que, a meu ver, não traduz a ideia do original em inglês, Cross Roads, que significa encruzilhada, cruzamento ou trincheira. Esse título, ademais, como comentou um amigo meu, dá uma cara meio “espírita” ao livro.
Agora aponto alguns aspectos singulares deste livro. Sua história é revestida de uma complexidade ainda maior que a de A Cabana, com muitos outros personagens coadjuvantes, vários cenários diferentes, e o elemento “místico”, por assim dizer, é ainda mais forte que o que vimos no livro anterior, de arrepiar os cabelos dos mais conservadores, acostumados a se ligar mais em detalhes legais e possíveis em termos de realidade, e menos no princípio que rege a história, que neste caso, é preciso lembrar, trata-se de uma ficção, recheada de aspectos arrolados para mexer com a imaginação e despertar o interesse no leitor – bem, nada de mal nisso, certo? Como diz a epígrafe do capítulo, atribuída a C. S. Lewis. “Um dia você será velho o bastante para voltar a ler contos de fadas” (p. 31).
Então, é preciso adiantar que, assim como (e até mais que A Cabana), a obra em questão deve ser lida com a fluidez livre de uma estória, como tal altamente metafórica e sem compromisso de ser precisa na forma como insere os saberes teológicos em questão. Essa é uma ressalva necessária contra possíveis buscas de “erros e heresias” no livro, desqualificando-o como “obra teológica”, como fizeram alguns em relação ao livro anterior deste autor, até porque não se trata de uma “obra teológica”, pelo menos não no sentido estrito e hermético do termo, mas pode ser classificada dentro de um gênero mais amplo, que une características típicas de um romance, mas com inserções de questões teológicas explícitas. Naturalmente, o autor teve a intenção de apresentar uma determinada visão sobre Deus, em sua relação com a humanidade, em oposição a outra, mais “religiosa” talvez. Aliás, como havia feito em seu romance anterior, Young também reconhece nesta obra que imagens de Deus não são o próprio Deus; podem ser relances inacabados apenas, como Vovó afirma a Tony, o personagem central, já no fim da história: “Imagens... nunca foram capazes de definir Deus, mas como desejamos ser conhecidos, cada vislumbre, por menor que seja, é uma pequena janela para uma das facetas de nossa natureza” (p. 235). Mas um romance que reúne aspectos teológicos não equivale a um livro de teologia sistemática, por exemplo. Dessa forma, este livro deve ser lido com espírito mais poético que cartesiano, embora seja perfeitamente possível discordar de uma ou outra visão teológica expressa pelo autor.
A natureza imaginativa permite ao autor pensar em um caso de como alguém profundamente ferido pelas contingências da vida, e que, com isso, feriu a muitos outros também – no caso de Tony, os feridos foram seu irmão, ex-esposa, filha, sócios, funcionários e, assim, conseguiu afastar todo mundo para longe de si – pôde, num contexto de sofrimento extremo, como a morte, ter um reencontro tal com a vida e perceber que tudo o que antes chamava de liberdade, vida e sucesso, era na verdade sinônimo de escravidão, morte e fracasso. Essa vida ele reencontra através do terno amor de Jesus, o mesmo Jesus que sua mãe havia dito em sua infância que nunca deixaria de o abraçar. O personagem, em decorrência de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) que o deixou em coma profundo, encontra-se com Jesus, Vovó e Papai em uma realidade intermediária, cujo cenário é um retrato da própria vida dele até então, e é convidado a uma dupla experiência de cura e “conversão”: a cura de si mesmo através da cura e conversão a outra pessoa que ele, Tony, deveria escolher. A partir de então, começa a aventura de Anthony Spencer, em busca de respostas a perguntas como: Quem é Deus? Quem sou eu? A quem devo curar? Como posso curar alguém estando eu ainda, de múltiplas formas, ferido e à beira da morte? Se não posso apagar o passado, será é possível lidar de modo diferente com ele? Como superar a perda do filho de 5 anos, que desde então o transformara em uma pessoa fria, fechada e egoísta?
Assim, através da história de Tony, Young demonstra que não é de um dia pro outro que o mal se instala silenciosamente no coração humano, o que torna também a conversão – esse gradativo arrancar, com a ajuda do Espírito, das ervas daninhas do jardim da existência, com o cuidado de não jogar fora com elas rosas e outros espécimes preciosos – é de fato um processo, que pode até ter marcos ou viradas bem definidas, mas que dura a vida inteira.
Uma passagem emblemática que ilustra bem essa ideia é quando Jesus, falando a Tony sobre esse gradativo projeto de (re)construção conjunta (Deus e a pessoa) de uma vida – que, para ele (Tony) estava “demorando demais” – explica que aquele terreno sobre o qual operava (que visualmente tinha a forma concreta de uma propriedade) era:
Um terreno vivo e não um canteiro de obras. Algo real, que respira, não uma construção que pode ser erguida à força. Sempre que você dá mais valor à técnica do que ao relacionamento e ao processo, sempre que tenta acelerar o desenvolvimento da consciência e forçar a compreensão e a maturidade a crescerem antes do tempo, é nisto – disse ele apontando para todos os lados da propriedade – que você se transforma (p. 56).
É óbvio que Jesus estava falando de Tony e não de qualquer pessoa em geral. Mas também é claro que esse princípio não se aplica ao personagem apenas, mas a qualquer pessoa que leia isso mais atentamente. Se nossa vida é um canteiro, certamente é um canteiro constantemente sinalizado com a placa “em obras”. E que a obra de Deus na vida de alguém pode ser lenta sob o olhar desse mesmo ou de outro alguém, mas há de ser completa até o dia de Cristo Jesus. Até lá, seremos seres inacabados e em processo. Gosto sempre de pensar que a música “In repair”, de John Mayer, é uma excelente descrição de como vejo minha própria vida, especialmente quando diz: “Eu estou em reparo, não estou pronto ainda, mas estou chegando lá”.[1]
Essa, portanto, é uma história sobre o poder de Deus de mudar uma vida – se e quando nesta vida há lugar para a morada de Deus – e, através dela, revolucionar e surpreender tantas outras com um amor incompreensível. Carrega a mensagem de que quando Deus (Pai, Filho e Espírito), passa a viver em nós, mais que religiosos, nos tornamos caminhantes da encruzilhada, sempre sendo colocados na posição de ter de escolher a vida, sendo impelidos pela graça, mas não obrigados. Costumo dizer que ser seguidor do Cristo é, de fato, estar numa posição de encruzilhada, em que nada mais é fácil, simples e nem confortável, e até por isso é tão fascinante.
Outra citação de C. S. Lewis, que aparece na última página do livro referindo-se, sobretudo, à vida cristã, é cabível aqui: “Se você buscar a verdade poderá encontrar conforto no fim. Se buscar conforto, não o alcançará, e tampouco a verdade, mas apenas bajulação e ilusões no começo e desespero no fim” (p. 239).
Finalizando, não recomendo a leitura desse livro para aqueles que, porventura, estejam ansiosos por encontrar o que já viram em A cabana. Não leia, porque, no final, provavelmente se sentirá frustrado(a). É um livro parecido em alguns aspectos, mas inteiramente diferente em outros. Recomendo sua leitura aos amantes de estórias, dramáticas, complexas, paradoxais, como a vida muitas vezes é, e que estejam dispostos a refletir e repensar sua visão sobre si, sobre Deus e sobre as pessoas que dão significado especial à sua, minha, nossa existência.
Jonathan
[*] Resenha de: YOUNG, William Paul. A travessia. São Paulo: Arqueiro, 2012, 240p.
[1] No original: “I’m in repair, I’m not together but I’m getting there”. John MAYER. Álbum: Continuum. Columbia Records, 2006, faixa 11.