Caro Fernando,
Obrigado por escrever seu email-carta. Muito me agradou, intrigou e arrancou um bocado de riso. É sempre bom saber que aquilo que a gente escreve tem algum impacto sobre as pessoas, mesmo quando negativamente. E é muito interessante o processo pelo qual somos lidos e avaliados pelo outro. E isso você faz muito bem em sua carta, ora falando de mim, ora de si mesmo, aportando encontros e desencontros. Um trecho, porém, em particular, me fez parar pra pensar mais detidamente (na verdade, é o que mais me motivou a escrever essa resposta), e é o seguinte:
Acredito que em grande parte, sua demanda pelo seu trabalho/vida, faz com que continue produzindo des-tratados teológicos e teologias narrativas assitemáticas. Momento em que nossos rios se separam e nascem as saudades, ou melhor as dúvidas:
De onde nasce sua vontade de ser a própria linha de fuga do território teológico, ser um nômade-emigrante da nação-estatal cristã? Porém, ainda carregar consigo penduricalhos e souveniers. Qual é a força para retornar sempre de onde tenta sair?
Em primeiro lugar, quero dizer que seu texto é para mim mais um sinal de que existe esperança, de que o Espírito se move e sopra onde quer e esse, como diria Miguel de Unamuno, é “o grande problema do Espírito”, é que Ele é livre! E, portanto, jamais deixará de causar seus rebuliços na história, com, sem ou apesar das igrejas que tanto invocam sua presença, às vezes desejando que em seu meio Ele seja “Ele mesmo” (livre, desimpedido e revolucionário), às vezes tentando tratá-lo como monopólio ou patente. O grande lance é que, por não se deixar aprisionar dessa forma, não será o Espírito quem morrerá, e sim aqueles(as) que pensam poder contê-lo. E isso, de variadas formas, já vem acontecendo na história da igreja – quem tem olhos para ver, veja, e quem tem ouvidos para ouvir, ouça!
De fato, escrever para mim é mais um ato de transgredir a mim mesmo – expor necessidades, expressar descontentamentos, extravasar pensamentos, etc. Isso, aliado a um esforço de encarnação, desejando que minhas palavras estejam coladas com a minha vida, e assumindo doses moderadas ou altas de risco, de que esse esforço também revele minhas deficiências, vulnerabilidades e inadequações, e mostre o quanto disso tudo é concebido no olho do furacão do paradoxo, embora não sem temor e tremor. Isso, como você disse, pode gerar risos no canto da boca, ou provocar raiva, ser uma “maquina de guerra” ou “linha de fuga”. Não sou a favor do escapismo, mas não posso ignorar a possibilidade de que a escrita seja também uma espécie de “válvula de escape”. Por outro lado, não pretendo deixar de dizer o que preciso dizer, com alguma medida de coragem e liberdade, para quem quer que seja. Se se retirar esse elemento da pena do escritor, o resultado será menos que medíocre.
Até pelas razões acima, e também pelo que você mencionou (minhas muitas “demandas”), acabo produzindo “des-tratados” teológicos, com pouca pretensão de veracidade (no sentido metafísico) e até mesmo de aceitação por um grande público. Se há algum teor de “verdade” naquilo que escrevo, é sempre por vias de aproximação e jamais por correspondências. Acho que nunca acreditei nisso, na capacidade do discurso, seja ele de que ordem ou matiz científica for, “corresponder” à realidade, à verdade ou mesmo a Deus. Tudo o que falamos, é como quem balbucia ecos do abismo, tendo uma enorme escuridão à nossa frente e apenas uma luz no fim do túnel. Nossa enorma ânsia pela verdade (por agarrá-la, possuí-la) faz com que nos agarremos a esse faixo de luz, achando que conseguimos refletir o luzeiro. Isso é o que chamo de “involução dos espíritos”, bem capaz de co-existir sem nenhuma relação direta com as intermináveis revoluções do Espírito da Liberdade, o Espírito de Deus.
A razão, eu acho, que me leva a viver numa espécie de limbo teológico, como “nômade-emigrante da nação cristã”, me afastando sem deixar de pisar no território religioso, em grande parte é por força da profissão – sou professor de teologia – e da vocação – pode não parecer, mas sou pastor. Um pastor meio “cavaleiro das trevas”, às vezes, mas ainda assim um pastor. E enquanto Deus quiser, não pretendo deixar de colocar meus escritos, ideias e, mais do que eles, minha vida, na linha de frente da luta em prol do reino de vida do Deus de amor. Um reino que é feito de/para todo tipo de gente – desde o fariseu ao simples varredor, desde o que se senta na coletoria, até mulheres retirando água à beira de poços, desde doutores diplomados e engravatados, à gente simples que mal sabe ler ou escrever. Para cada uma das pessoas, há uma forma de abordagem, um jeito de aproximação. Com meus textos, atinjo quem quer que se interesse por leituras variadas sobre teologia, filosofia, história, Deus, religião, vida, espiritualidade, etc. Com minha vida, preciso fazer um esforço para me encontrar com quem quer que seja “próximo”. E “o meu próximo”, como diria Segundo Galiléia, não é exatamente aquele(a) que compartilha de minhas ideias, valores, cultura ou religião; meu próximo é aquele com quem me comprometo.
Se meus textos e minha vida não expressarem, ainda que de modo torto, inacabado e nem sempre feliz ou assertivo, esse compromisso, creio que eles não têm razão de existir. Talvez seja esse o espírito da coisa toda, talvez seja por isso que, mesmo que contra a vontade tantas vezes, tenho tido coragem de bater, mas não de virar as costas.
Um grande abraço,
Jonathan