quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A revolução do Espírito e a involução dos espíritos

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Caro Fernando,

Obrigado por escrever seu email-carta. Muito me agradou, intrigou e arrancou um bocado de riso. É sempre bom saber que aquilo que a gente escreve tem algum impacto sobre as pessoas, mesmo quando negativamente. E é muito interessante o processo pelo qual somos lidos e avaliados pelo outro. E isso você faz muito bem em sua carta, ora falando de mim, ora de si mesmo, aportando encontros e desencontros. Um trecho, porém, em particular, me fez parar pra pensar mais detidamente (na verdade, é o que mais me motivou a escrever essa resposta), e é o seguinte:

Acredito que em grande parte, sua demanda pelo seu trabalho/vida, faz com que continue produzindo des-tratados teológicos e teologias narrativas assitemáticas. Momento em que nossos rios se separam e nascem as saudades, ou melhor as dúvidas:

De onde nasce sua vontade de ser a própria linha de fuga do território teológico, ser um nômade-emigrante da nação-estatal cristã? Porém, ainda carregar consigo penduricalhos e souveniers. Qual é a força para retornar sempre de onde tenta sair?

Em primeiro lugar, quero dizer que seu texto é para mim mais um sinal de que existe esperança, de que o Espírito se move e sopra onde quer e esse, como diria Miguel de Unamuno, é “o grande problema do Espírito”, é que Ele é livre! E, portanto, jamais deixará de causar seus rebuliços na história, com, sem ou apesar das igrejas que tanto invocam sua presença, às vezes desejando que em seu meio Ele seja “Ele mesmo” (livre, desimpedido e revolucionário), às vezes tentando tratá-lo como monopólio ou patente. O grande lance é que, por não se deixar aprisionar dessa forma, não será o Espírito quem morrerá, e sim aqueles(as) que pensam poder contê-lo. E isso, de variadas formas, já vem acontecendo na história da igreja – quem tem olhos para ver, veja, e quem tem ouvidos para ouvir, ouça!

De fato, escrever para mim é mais um ato de transgredir a mim mesmo – expor necessidades, expressar descontentamentos, extravasar pensamentos, etc. Isso, aliado a um esforço de encarnação, desejando que minhas palavras estejam coladas com a minha vida, e assumindo doses moderadas ou altas de risco, de que esse esforço também revele minhas deficiências, vulnerabilidades e inadequações, e mostre o quanto disso tudo é concebido no olho do furacão do paradoxo, embora não sem temor e tremor. Isso, como você disse, pode gerar risos no canto da boca, ou provocar raiva, ser uma “maquina de guerra” ou “linha de fuga”. Não sou a favor do escapismo, mas não posso ignorar a possibilidade de que a escrita seja também uma espécie de “válvula de escape”. Por outro lado, não pretendo deixar de dizer o que preciso dizer, com alguma medida de coragem e liberdade, para quem quer que seja. Se se retirar esse elemento da pena do escritor, o resultado será menos que medíocre.

Até pelas razões acima, e também pelo que você mencionou (minhas muitas “demandas”), acabo produzindo “des-tratados” teológicos, com pouca pretensão de veracidade (no sentido metafísico) e até mesmo de aceitação por um grande público. Se há algum teor de “verdade” naquilo que escrevo, é sempre por vias de aproximação e jamais por correspondências. Acho que nunca acreditei nisso, na capacidade do discurso, seja ele de que ordem ou matiz científica for, “corresponder” à realidade, à verdade ou mesmo a Deus. Tudo o que falamos, é como quem balbucia ecos do abismo, tendo uma enorme escuridão à nossa frente e apenas uma luz no fim do túnel. Nossa enorma ânsia pela verdade (por agarrá-la, possuí-la) faz com que nos agarremos a esse faixo de luz, achando que conseguimos refletir o luzeiro. Isso é o que chamo de “involução dos espíritos”, bem capaz de co-existir sem nenhuma relação direta com as intermináveis revoluções do Espírito da Liberdade, o Espírito de Deus.

A razão, eu acho, que me leva a viver numa espécie de limbo teológico, como “nômade-emigrante da nação cristã”, me afastando sem deixar de pisar no território religioso, em grande parte é por força da profissão – sou professor de teologia – e da vocação – pode não parecer, mas sou pastor. Um pastor meio “cavaleiro das trevas”, às vezes, mas ainda assim um pastor. E enquanto Deus quiser, não pretendo deixar de colocar meus escritos, ideias e, mais do que eles, minha vida, na linha de frente da luta em prol do reino de vida do Deus de amor. Um reino que é feito de/para todo tipo de gente – desde o fariseu ao simples varredor, desde o que se senta na coletoria, até mulheres retirando água à beira de poços, desde doutores diplomados e engravatados, à gente simples que mal sabe ler ou escrever. Para cada uma das pessoas, há uma forma de abordagem, um jeito de aproximação. Com meus textos, atinjo quem quer que se interesse por leituras variadas sobre teologia, filosofia, história, Deus, religião, vida, espiritualidade, etc. Com minha vida, preciso fazer um esforço para me encontrar com quem quer que seja “próximo”. E “o meu próximo”, como diria Segundo Galiléia, não é exatamente aquele(a) que compartilha de minhas ideias, valores, cultura ou religião; meu próximo é aquele com quem me comprometo.

Se meus textos e minha vida não expressarem, ainda que de modo torto, inacabado e nem sempre feliz ou assertivo, esse compromisso, creio que eles não têm razão de existir. Talvez seja esse o espírito da coisa toda, talvez seja por isso que, mesmo que contra a vontade tantas vezes, tenho tido coragem de bater, mas não de virar as costas.

Um grande abraço,

Jonathan

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Sobre apologetas e apolo-jecas

Paladinos

Pensando e lendo algumas coisas pela internet nos últimos dias, percebi que, além dos neo-apologetas, existem também os “apolo-jecas”. Neo-apologetas são aqueles que ainda pretendem, pelas vias do método teológico moderno, altamente sustentado na argumentação e na objetividade, “defender” Deus. Os apolo-jecas (desculpem a brincadeira), por sua vez, podem ser os fieis seguidores dos apologetas, que batem palma pra tudo o que eles dizem e defendem suas ideias com unhas e dentes. Não estão abertos para o diálogo, pois se recusam a pensar além daquilo que emana “do interior” do discurso já amplamente aceito, discutido (pela liga da justiça apologética), comprovado e aprovado por sua alta ciência teológica e pela cúpula eclesiojeca. Para eles, qualquer coisa que fuja à pretensa argumentação objetiva, da qual tanto se orgulham, acaba soando como tergiversação – pois não vai direto ao ponto, não atinge a questão, portanto, não está de acordo com “a verdade”. Afinal, só existe uma maneira de pensar e fazer ciência válida: a deles.

O modo apologético sustenta-se sob a pretensão não apenas de “falar de Deus” (o que já seria um hercúleo desafio), mas de “falar por Deus”. Muitas vezes ainda cede ao que C. S. Lewis chamou de “oferta do bruxo”, ao trocar sua vocação (teológica) para ser a mais modesta dentre as ciências, pelo conhecimento como poder: para legislar, dominar e condenar. Lutou contra seu próprio princípio de sustentação, de que a força de seu discurso e vida reside precisamente em sua fraqueza. Tantas vezes tem cedido à tentação de não questionar seus próprios pressupostos, lidar mal com os questionamentos alheios e, se isso não bastasse, de decretar como “herege”, “liberal” ou coisa que o valha quem ousa os questionar.

Um jeito “não jeca” de ser apologeta (se é que é possível continuar sendo assim chamado, caso isso aconteça) talvez seja o de deixar de lado essa faceta unívoca (que só tem e só admite “uma voz”), e aceitar a pluralidade, a plurivocidade e a diferença, não para baratear ou negar convicções, mas para enriquecê-las, colocando-as em seu devido lugar, como mais um discurso possível entre outros. Parafraseando o que disse Barth, a teologia só pode ser um discurso possível porque Deus disse “Sim”, e não porque alguém sacramentou e popularizou a fórmula do “é assim e pronto”.

Ademais, esse apego ferrenho ao poder do argumento que convence, em nosso tempo, não convence mais que o poder da vivência. Lembrando do que disse Lewis em A abolição do homem: “Numa batalha, não são os silogismos que vão manter os relutantes nervos e músculos em seus postos na terceira hora de bombardeio. O mais rude sentimentalismo... em relação a uma bandeira, país ou regimento será bem mais útil” (p. 22). Enfim, para Lewis, além de “cerebrais” (racionais) e “viscerais” (passionais), precisamos de “homens de peito” (íntegros, magnânimos na atitude, no sentimento), pois “o peito” é o elemento intermediário que transforma o homem em homem, enquanto, “pelo intelecto ele é apenas espírito, e pelo seu apetite ele é apenas animal” (p. 23).

O que tudo isso me leva a pensar? As “ideias boas” e bem articuladas, em si, podem convencer, mas não transformam, não geram “homens de peito”, na acepção de Lewis, no máximo, homens que, para fins mais “sublimes”, correm o risco de ignorar a parte do meio, pois, como reitera Lewis (ora se referindo a certos racionalistas de sua época), “não é o excesso de pensamento que os caracteriza, mas uma carência de emoções férteis e generosas. Suas cabeças não são maiores que as comuns: é a atrofia do peito logo abaixo que faz com que pareçam assim” (p. 23). Exemplos de vida, por sua vez, atrelados a ideias boas, bem articuladas e bem fundamentadas, convencem e transformam. Jesus é o maior exemplo de que as palavras não são tão convincentes quando ou se descoladas da vida. Ou como se diz por aí, palavras convencem, exemplos arrastam... Talvez aí esteja um mote para pensarmos num discipulado pós-moderno.

Jonathan