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A arte da conversação civilizada é algo de que o mundo pluralista necessita com premência. Ele só pode negligenciar essa arte às suas expensas. Conversar ou sucumbir” (Zygmunt Bauman).
O livro "Legisladores e Intérpretes" (Jorge Zahar, 2010), um dos últimos do polonês Zygmunt Bauman publicados em português, se trata de uma análise da vida moderna, sobretudo, da vida intelectual. Constrói-se em diálogo crítico com autores modernos, bem como com analistas que propuseram algum tipo de crítica à modernidade no século XX, tanto filósofos como sociólogos. A obra foi um dos primeiros passos do autor rumo a uma sociologia da modernidade e a criação do conceito de “líquido”, que vem expressar precisamente um estágio avançado de transformações da modernidade, a que muitos preferem chamar de pós-moderno, de fluidez, incertezas e ambiguidade.
A declaração da "queda do legislador" é central para entender o propósito do livro, uma vez que procura dar as razões que conduziram o ideal moderno representado na figura do legislador à derrocada na pós-modernidade, de uma “era de certezas” e “autoconfiança” para uma “era de incertezas" e de desconfiança em relação aos valores estabelecidos (como o da pretensa objetividade e o do progresso) ao papel do “sujeito” e ao futuro da história. A tese é de que a queda do legislador é provocada por um mecanismo autodestrutivo próprio da modernidade como projeto, que está em ser um empreendimento humano sem limites e que acaba extrapolando a capacidade humana de assimilar sua própria engenhosidade. A modernidade pagou, dessa forma, o preço de sua ambição e de suas “contradições inextricáveis”: quando se vê o particular e o limitado tentando conter o absoluto; o efêmero buscando a durabilidade; o normal ensejando o status de superioridade (ver: p. 161).
Isso construiu uma “ilusão de ótica” na qual a modernidade julgou ser o ponto referencial a partir do qual tudo ocorre, a régua universal, medidora de tudo e de todos. Quando este devaneio metafísico passa a ser denunciado no debate pós-moderno, percebe-se que as certezas de antes estão mortas ou em processo de decadência. O certo é substituído pelo incerto; o mundo contemporâneo passa a ser um lugar estranho aos legisladores, incapazes de responder as expectativas que eles mesmos criaram em torno de si e de seu projeto.
Em consequência, Bauman considera que: “O mundo contemporâneo é impróprio para os intelectuais como legisladores” (p. 170). Abre-se caminho, assim, para a ascensão de novas representações, dentre elas está a figura do intérprete. A função do intelectual passa a ser não mais a de legislar – em busca de vereditos absolutos – mas de interpretar recortes da realidade a que chamamos de “textos”. Tudo o que temos são textos, dirão muitos filósofos da linguagem. E textos não são espelhos da realidade, mas reflexos obscuros e particularizados de uma realidade inacessível ao intelectual, a não ser por meio deles, os textos, que em si conferem um acesso também limitado, parco eu diria. É como se, como corolário, não existisse realidade alguma fora deles. A realidade seria, então, fruto da compreensão humana expressa na linguagem. Não se tem mais verdades, e sim interpretações...
Algumas implicações para a teologia me vêm à mente. A educação teológica, tal como a concebemos em boa parte até hoje, é filha da modernidade. Também nasceu dentro de um edifício de certezas e sob uma ótica dogmatizante. Sustenta-se sob a pretensão não apenas de “falar de Deus” (o que já seria um hercúleo desafio), mas de “falar por Deus”. Muitas vezes cedeu à “oferta do bruxo” (C. S. Lewis) de trocar sua vocação para ser a mais modesta dentre as ciências pelo conhecimento como poder: para legislar, dominar e condenar. Lutou contra seu próprio princípio de sustentação, de que a força de seu discurso e vida reside precisamente em sua fraqueza. Tantas vezes tem cedido à tentação de não questionar seus próprios pressupostos e, mais do que isso, de rotular como “herege”, “liberal” ou coisa do tipo quem ousa os questionar.
A queda do legislador deve ser, como em muitos contextos já tem sido, um prenúncio profético à teologia, de retorno à sua vocação, de abandono de sua faceta moderna, colonizadora da vida e do pensamento, de quem tentou e ainda tenta fazer “fimose em Deus” (Caio Fábio). A teologia precisa abandonar sua faceta dogmática, e abraçar a pluralidade e diversidade que fazem não dela e de suas cogitações o referente ou o absoluto, pois isso é coisa que só Deus pode ser.
Jonathan