quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

As pessoas não mudam (III)

3. A fé como batalha

Como a tese em questão pode coexistir de modo relativamente coerente com certa (não-convencional) visão cristã?

“Os dias às vezes parecem iguais, a guerra é minha rotina”, diz uma parte da canção “Continuar” (2008) da banda Oficina G3, idéia que me parece bem aplicável à vida cristã, uma vez que a guerra é um de seus indissociáveis elementos. Luta-se não apenas para sobreviver, mas porque se vive em uma nova ordem de vida, como já foi pontuado. Essa luta tem uma dimensão tanto interior como exterior – e aqui continuarei dando maior atenção à primeira.

A carta de Romanos (7.19) contém uma das mais nuas descrições da luta humana nesta primeira dimensão e que se resume bem na frase “não faço o bem que prefiro, mas o mal que eu não quero, esse faço”. Uma frase que pode bem ser combinada com a que afirma não haver “um só justo na terra, ninguém que pratique o bem e nunca peque” (Ec 7.20). Assim, a vida do justo é marcada por um litígio permanente contra a sua própria e inerente in-justiça. Luta sobre a qual jamais se teria sombra de vitória não fosse a graça divina, que nos basta, como afirma Paulo, mas no meio (e não fora) da batalha.

A paz – e não me refiro ao “estado de paz interior” que se oferecem como produto fácil nas diversas prateleiras religiosas, mas a verdadeira paz de Cristo, que ultrapassa todo entendimento, que é fruto da justiça – só pode ser conhecida por quem não abandona o front de batalha. Citando outra vez Frederick Buechner, “a paz não se encontra na fuga da batalha, mas em seu intenso calor”.

Dessa forma, enquanto gente e seguidor do Cristo que tento ser, luto todos os dias para viver meu chamado em meio às muitas (provisórias) contradições que em mim habitam, e contra tudo o que detesto ser, mas que ainda permanece encravado como espinho em minha carne. Sim, p-e-r-m-a-n-e-c-e... Às vezes por razões que não compreendo – “não entendo o que faço”, disse Paulo – outras tantas, por razões que tento renegar. Mas, se por um lado me sinto enfraquecido, por outro saio fortalecido; se estou sendo derrotado sob certa perspectiva (triunfalista e pragmática de fé), sob outra, baseada na graça e no poder que se aperfeiçoa na fraqueza, alcanço relances de vitória.

Então, decidi que, paradoxalmente e pela força do Espírito, buscarei ser uma pessoa que jamais desiste de perseguir a mudança a despeito de não ser capaz de mudar certas coisas – acolho e rejeito a tese em questão ao mesmo tempo. Para tanto, tenho me esforçado para aceitar quem eu sou, sem, contudo, me resignar à condição de vítima de mim mesmo; desejo não fugir e nem ignorar minha rotina humana e cristã de luta; recuso as vias do “ópio do povo” ou da cauterização da consciência, que fazem discípulos para a morte todos os dias. Entendo que reconhecer minha miséria não é sinal de desistência da luta, mas um caminho para a liberdade.

Jonathan

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

As pessoas não mudam (II)

2. A fé como paradoxo

A fim de prosseguir, quero acrescentar à tese original duas perspectivas que me serão úteis aqui: primeira, da fé como paradoxo e, em seguida, da fé como batalha.

O paradoxo da fé pode assim ser descrito: uma vez que estou em Cristo, pela fé estou e pela graça sou nova criatura, que se reveste dia após dia de uma nova humanidade – isto é, passo a ser gente conforme o tipo de gente que Cristo foi e deseja que eu seja. Nova disposição, vida nova. Ao mesmo tempo, o que é novo vai brotando em meio àquilo que é velho, mas que ainda permanece vivo e ativo em mim por causa do pecado.

Afinal, sou um novo ser ou estou a caminho de me tornar um novo ser? Ambos, talvez. Em outras palavras, sou um novo ser ainda a caminho de me tornar novo conforme a novidade de vida em Cristo revelada. Sou e estou caminhante. Como diz a bela poesia de Antonio Machado: “Caminhante, são tuas pegadas o caminho e nada mais; caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar...”.

Paradoxo, sim. Anomalia para alguns. Boa anomalia para a fé, visto que uma fé saudável é aquela que não tenta erradicar-se dos paradoxos (ou erradicar os paradoxos de si), mas admite (jubilosamente) viver infiltrada no meio deles. Se a fé é “loucura”, segundo a linguagem paulina, então não há porque se envergonhar de ser anomalia excêntrica, aos olhos humanos, a fim de encontrar graça aos olhos divinos.

Se a graça é esse dom divino destinado a gente torta, então não há razão para não se admitir como sendo torto e inacabado – embora isso não signifique “conformismo”. Como analisa Frederick Buechner em seu livro “The Magnificent Defeat” (1966), quando se vive pela fé “ao invés de tudo se manter tranqüilo e certo, nada é tão tranqüilo e tudo é incerto”. E não gratuitamente ou sem razão de ser, como diz ele: “Algo novo e perturbador está rompendo com algo velho. Alguma coisa está tentando nascer. E se algo novo irá nascer, a velha coisa precisa dar passagem, e há agonia no processo tanto quanto há alegria” (p. 63).

Isso mesmo. O processo em que me torno um novo ser é recheado de paradoxos, como os descritos por Buechner. A fé convive com a dúvida, enquanto as alegrias estão misturadas com as agonias. A fé cristã combina menos com o universo seguro do “só” (somente isto ou aquilo) que com o mar de incertezas do “nem só”. Assuma, concorde e aceite quem quiser e nesse caminho se reconhecer.

(Continua...)

Jonathan

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

As pessoas não mudam (I)

1. A tese em questão

Há algum tempo, meu amigo Marcos Orison, vulgo Marquinhos, vem compartilhando com um grupo (seleto) de pessoas uma tese que ele defende – talvez não exatamente nova ou original, mas certamente polêmica (especialmente em círculos religiosos) – de que as pessoas não mudam.

Em princípio, a idéia me pareceu estranha e difícil de ser sustentada, sobretudo em consonância com certo discurso teológico (alguns diriam pregação) que afirma que não há estrago que Deus não possa consertar, ou problema que Ele não seja capaz de dar jeito. E “pau que nasce torto, morre torto”? Sim e não, responderiam os defensores desse discurso. Sim, caso a pessoa se abandone a esta situação, e “não” caso se renda aos consertos da marcenaria celestial. Parece que se a fé não vier temperada com um otimismo – ou “a certeza” – em relação ao ser humano, à vida e o que a circunda, deixa de ser “fé” e passa a ser descrença, ceticismo, pessimismo ou coisa que o valha.

Nesse contexto, a fé necessita da mudança (resultados, coisas acontecendo) para ser fé. Por mais correta que pareça, esta perspectiva tende a diminuir, com o tempo, as perspectivas de amadurecimento do crente, que passa a viver uma fé estagnada (no binômio causa-efeito ou problema-solução), obtusa e “sem graça” (literal e metaforicamente falando). Esse tipo de fé, uma fé que tem os olhos e pés longe do chão, tende a perder sua conexão com e relevância para a vida de pessoas de carne e osso (pleonasmo proposital).

Voltando à tese de Orison. Sua explicação – em palavras que não conseguirei reproduzir a contento (ele precisava ter escrito isso) – é de que cada um de nós carrega cargas ou marcas, sejam elas genéticas, comportamentais e/ou culturalmente geradas, que nos acompanham sempre como um rio perene. Quando alguém se converte ao Evangelho, afirma-se que sua vida e sua pessoa mudam – na linguagem paulina, “tudo se faz novo”. Algumas coisas nesse processo, fundamentais suponho, mudarão seu curso. Passamos a apurar o nosso senso de metamorfose. O Espírito revela à nossa consciência que não somos – ou não podemos continuar sendo – o mesmo tipo de gente que costumávamos ser antes desse encontro com Cristo. Os testemunhos surgem, assim, como evidência pessoalmente narrada da mudança: antes eu era “assim”, hoje sou “assado”, sou diferente, me tornei uma pessoa melhor.

Entretanto – e aqui flerto explicitamente com a tese em questão – se observarmos com atenção, e se formos honestos o bastante, veremos que alguns espinhos de outrora continuaram cravados no mesmíssimo lugar, relutando para não sair da carne. A disposição quanto a como os tratamos pode (e deve) mudar. Mas eles, seja lá representação do que forem, continuam lá, resistentes, mesmo que escondidos ou sublimados. A transformação que a fé em Cristo e sua graça produzem não nos faz ex-pecadores, mas pecadores redimidos da inelutável (humanamente falando) escravidão do pecado.

Percebo que, de um jeito ou de outro, continuamos sendo tortos. Ainda cometemos os mesmos erros tão reprovados, ainda nutrimos a mesma espécie de mal tão detestado, e esporadicamente ainda somos tentados – nos rendendo à tentação às vezes – pelos mesmos vícios que por tanto tempo nos assombraram e que a gente achava que, com o tempo e seus tratamentos, desapareceriam. Fracasso? Desalento? Falta de fé ou de perseverança? Não necessariamente. Injetar doses de realismo na fé não significa torná-la menos fé, mas fazer dela uma fé mais honesta e humana. Então, volto a aquiescer com a tese em questão: as pessoas (realmente) não mudam... Mas, até que ponto?

(Continua...)
Jonathan

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Arruinado, ferido e ainda assim, íntegro (IV)

4. Compaixão: livrai-os de “consoladores molestos”

O que se viu até aqui em relação aos “amigos” longe está de ser uma postura de compaixão, uma vez que, de acordo com Henri Nouwen, quando nos compadecemos não nos escandalizamos com as lágrimas e o lamento do outro, não temos medo de sua dor, muito menos ocupamos uma posição de superioridade. Antes, estar com o outro implica em que nos tornemos vulneráveis, já que amar é ficar vulnerável, parafraseando C. S. Lewis. “Só estamos com o outro quando o outro deixa de ser ‘outro’ para se tornar como nós” (1).

Dessa forma, não me parece gratuita e nem sem sentido a revolta de Jó contra seus amigos, chamando-os de “consoladores molestos”, e outra vez argumentando contra a sua falta de percepção do “lugar” em que eles ocupam em comparação ao seu. É difícil se colocar no lugar do outro. Nunca poderemos ocupar devidamente esse lugar. Contudo, devemos estar conscientes pelo menos do lugar que ocupamos, e falar com honestidade a partir desse lugar, sabendo que este guarda consideráveis diferenças em relação ao lugar do outro. Nesse sentido, as palavras de Jó dão o tom de sua aversão ao “consolo” ora ofertado:

Eu também poderia falar como vós falais; se a vossa alma estivesse em lugar da minha, eu poderia dirigir-vos um montão de palavras e menear contra vós outros a minha cabeça; poderia fortalecer-vos com as minhas palavras e a compaixão dos meus lábios abrandaria a vossa dor. Se eu falar, a minha dor não cessa; se me calar, qual é o meu alívio? (16.4-6).

Sabemos do desfecho da história de Jó; não quero aqui enfatizar o desfecho, e sim o meio dessa poderosa história. Exatamente no meio dela, vemos Jó vivendo um paradoxo em pessoa (como paradoxal é a sua situação): sendo justo, sofre sem enxergar a razão de ser para tudo aquilo; tem amigos ao seu lado, mas que não conseguem demonstrar compaixão e amizade verdadeiras; teme e ama a seu Deus, porém injuria-se contra Ele por não obter as respostas que procura. Acima de tudo, em sua santa ignorância, continua defendendo seu procedimento de franqueza com Deus, não obstante sua evidente falta de esperança (13.15).

Jó não se rende a explicações simplistas, nem aos jogos de barganha de seus amigos. Ele leva o Senhor a sério demais para aceitar se relacionar dessa forma. Ao mesmo tempo em que se vê justo, não deixa de reconhecer a sua miséria. Exatamente porque crê que seu redentor vive, não se furta em expor sua queixa e descontentamento perante Ele. Jó foi honesto com Deus e com seus sentimentos e pensamentos humanos!

E nem havia porquê ser diferente. Deus é Deus, e não será menos Deus por causa de nossas dúvidas, injúrias, questionamentos ou lamentos. Até porque, lamento não é (necessariamente) pecado ou blasfêmia. Ademais, creio que Ele é suficientemente capaz de lidar com a nossa revolta e de compreender nossas fraquezas. Ele não precisa do trabalho de guarda-costas dos amigos de Jó, nem sua ação se traduz na imaculada “teologia moral de causa-efeito”. Deus foi gracioso e amoroso o bastante para receber as queixas de seu filho Jó e dar a elas o tratamento adequado a seu devido tempo, sem precisar de outras pessoas fazendo o “trabalho de Deus” e nem torturar Jó numa inquisição sem fim porque ele demorou tanto para entender os propósitos divinos.

A compaixão é a antítese do dispensável trabalho dos “consoladores molestos” e um passo adiante para uma vida íntegra e honesta com Deus, consigo mesmo e com os outros.

Podemos ser compassivos: sofrendo junto, não fazendo tribunal com o desespero de quem sofre e reclama por sofrer; respeitando seus processos; ouvindo, não julgando, ficando vulnerável, valorizando a honestidade, oferecendo um espaço aberto de acolhimento às queixas do outro, não importa como elas se apresentem; não estranhando nem se escandalizando com aquilo que é humano; considerando a complexidade da situação, ao invés de se render a respostas simplistas; falar apenas o que o bom senso mostrar ser necessário e cabível; calar-se, às vezes a maior parte do tempo, entendendo que estar presente é o mais importante. Em nossa presença, Deus se faz presente para o outro.

Notas

1 - NOUWEN, Henri. Mosaicos do presente. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 101.

Jonathan

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Arruinado, ferido e ainda assim, íntegro (III)

3. O que é complexo não pode ser tão simples

No pensamento de quem está seguro, há desprezo para o infortúnio, um empurrão para aquele cujos pés já vacilam (Jó 12.5).

Há quase vinte anos, o já falecido escritor holandês Henri Nouwen, autor de vários livros sobre espiritualidade, muitos deles retratando o sofrimento humano e, mais particularmente, a si mesmo como um homem experimentado no sofrimento, defendeu uma idéia, que aparece em alguns de seus livros, de que em nosso mundo a alegria e a tristeza são vistas como duas realidades em oposição. “De fato”, afirma ele, “a sociedade contemporânea faz todo o possível para separar a tristeza e a alegria”. Por esta razão, conclui, “a tristeza e a dor devem ser evitadas a todo custo, porque são o oposto da alegria e do contentamento que desejamos” (1).

Cada vez que observo o comportamento humano (incluso a mim mesmo) frente ao sofrimento, mais me convenço do quanto Nouwen estava duplamente certo. Primeiro, em afirmar que nossas experiências pessoais com a dor tendem a nos distanciar da admissão de uma (possível) coexistência com experiências de contentamento rejeitando, assim, o caminho do aprendizado da integridade cristã, como vemos em Paulo: “Aprendi a viver contente em toda e qualquer situação” (Fp 4.11). Segundo, ao defender que a alegria divina não elimina o divino pesar, e de que em Cristo vemos o homem de todas as dores e, ao mesmo tempo, da total alegria. Embora esta possa parecer uma perspectiva por demais idealizada e, de certo modo, distante da realidade não só do que desejamos em termos de “vida feliz”, como do tipo de vida que cremos sermos capaz de sustentar, ainda assim me parece a mais coerente com o caminho de Jesus, que está em evidente contraste com a visão mundana – e paradoxalmente, até com a visão cristã (parte dela).

Mesmo se tratando de um objeto de alta complexidade, a visão religiosa tende a sublimar as experiências de sofrimento ao apresentar respostas para aquilo que nem mesmo Deus quis dar maiores explicações – pelo menos não de modo tão simplista – e ofertando alívios esporádicos, genéricos e ineficazes à dor. No meio disso tudo, Deus se torna moeda de barganha e solução para todos os males, desde que se tome corretamente o caminho da cura mais próximo de você. Vejamos um exemplo disso outra vez em um diálogo entre e Jó e seus “amigos”.

Assumindo que o problema de Jó advinha da iniqüidade que ele recusava a admitir que havia cometido, Zofar oferece a seguinte solução, quase como uma formula mágica de cura e esquecimento do sofrimento:

Se dispuseres o coração e estenderes as mãos para Deus; se lançares para longe a iniqüidade da tua mão e não permitires habitar na tua tenda a injustiça, então, levantarás o rosto sem mácula, estarás seguro e não temerás. Pois te esquecerás dos teus sofrimentos e deles só terá lembrança como as águas que passaram (11.13-16).

Em sua defesa, nosso anti-herói, Jó, tenta demonstrar como as palavras de quem se encontra em lugar seguro podem ser repetições vãs e vazias de sentido, insensíveis, ausentes de solidariedade e desonestas para com quem vivencia na pele a condição retratada:

Como vós o sabeis, também eu o sei; não vos sou inferior. Mas falarei ao Todo-Poderoso, e quero defender-me perante Deus. Vós, porém, besuntais a verdade com mentiras e vós todos sois médicos que não valem nada. Tomara vos calásseis de todo, que isso seria a vossa sabedoria (...) As vossas máximas são como provérbios de cinza, os vossos baluartes, baluartes de barro (13, 4-5, 12).

Na teologia dos amigos de Jó não há lugar para o paradoxo. Segundo suas formulações, tudo na vida praticamente ocorre segundo a lógica de causa-efeito (2); se está sofrendo, certamente é porque pecou; se o mal dura mais que o suportável e aceitável, na certa é provação divina, ou é porque a sua fé em Deus deve estar naufragando e você tem orado e jejuado pouco, só pode ser; se deseja fazer passar a dor que não cessa, deve buscar a Deus com todo fervor, abandonar o caminho de pecado, e logo tudo estará resolvido. Para piorar, Elifaz ainda acusa Jó de fazer pouco caso das “consolações de Deus” (de Deus, ora essa!) e das “suaves palavras” a ele dirigidas (15.11). Percebe-se que os amigos estavam ali como emissários do Altíssimo para consolar Jó, ocupando, assim, um grau mais elevado que ele numa dada escala da humanidade – daí tantas vezes Jó insistir em não ser em nada “inferior” a eles.

Notas
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1 NOUWEN, Henri. Mosaicos do presente. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 33.
2 Caio Fábio batizou a teologia dos amigos de Jó de "teologia moral de causa-efeito". Para maiores esclarecimentos e aprofundamento, ver: FÁBIO, Caio. O enigma da graça. São Paulo: Fonte Editorial, 2002.
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(Continua...)

Jonathan

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Arruinado, ferido e ainda assim, íntegro (II)

2. No hospital entre o Pronto Socorro e a UTI

Um dos lugares em que mais escancaramos nossa inadequação e escândalo diante da dor humana é o hospital. Pense em uma UTI e em um Pronto-Socorro. Que é difícil se ver confortável estando em um hospital, isto é fato. Mas numa UTI, como o nome mesmo diz, o paciente está em terapia intensiva, muitas vezes sedado, e vive um sofrimento mudo. A UTI é um dos últimos estágios, o próximo possivelmente será o óbito. Mas o paciente pouco tem a chance de externar seu sofrimento. Já o pronto socorro é o local onde ouvimos os berros, murmúrios e agonias dos pacientes que geralmente estão vivendo o mais alto nível de adrenalina da dor. Se for um paciente do SUS (Sistema Único de Saúde), esse estado geralmente se prolonga, pois grande é a demanda e precárias as condições de atendimento.

Pode parecer esquisito o que vou dizer, mas tenho a impressão de que tendemos a nos sentir mais confortáveis com a calmaria e o sofrer silente da UTI que com a gritaria e as feridas expostas do pronto socorro. No primeiro caso, o paciente pode estar muito mais próximo da morte e lentamente caminhando para ela, mas o silêncio traz consigo a sensação de estabilidade. No segundo caso, pode-se nem falar em morte, mas o controle da dor é menos intenso, e o resultado pode ser o sofrimento exposto, nu e cruamente. As feridas e a lamuria de Jó desvelaram seu pior lado no entender de seus amigos, o lado de quem passa a depreciar o dia de seu nascimento, desejar a morte e a questionar e contender contra o próprio Deus.

Jó estava em pleno pronto socorro de sua saúde física, emocional e espiritual, e aquilo incomodara profundamente seus amigos. “Vedes os meus males, e vos espantais”, o afirmou ao contemplar o visível escândalo de seus amigos. Como um justo, temente a Deus, pode chegar a uma situação como a de Jó? Se ele de fato era justo, a única saída não seria exclamar: “Isso é um absurdo!”, visto que “absurdo” seria o contexto em questão? Contudo, outra saída encontraram os amigos da onça: a de não admitir que um crente “verdadeiro” e inocente possa ter chegado a um pronto socorro. O sofrimento de Jó era efeito de uma causa única: o seu pecado. Eis o veredito de Elifaz: “Lembra-te: acaso já pereceu algum inocente? E onde foram os retos destruídos? Segundo eu tenho visto, os que lavram a iniqüidade e semeiam o mal, isso mesmo eles segam” (4.7-8).

Se a fé de Jó estava no pronto socorro, onde (de fato) estaria a de seus amigos? Bem longe do pronto socorro, certamente, pois nunca admitiriam ali estar – a fé do verdadeiro crente deve estar sempre vibrante e triunfante, não é assim? Se eles estivessem ali, padecendo junto, jamais repreenderiam as palavras desesperadas de Jó. Como ele mesmo indagou: “Acaso, pensais em reprovar as minhas palavras, ditas por um desesperado ao vento?” (7.26).

Em suma: a teologia dos amigos de Jó racionaliza tudo, até mesmo o clamor do desespero. Mas a teologia da vida ignora raciocínios e parcas compreensões na hora da dor, uma vez que se recusa a exprimir o inexprimível, ou tentar expelir um câncer com analgésicos. A teologia dos amigos de Jó, por sua vez, é capaz de reprovar a fé de quem se encontra no pronto-socorro enquanto a fé deles (religiosos de carteirinha) faz morada permanente na UTI. A teologia da vida deve nos fazer abraçar a dor, mesmo que ela não seja a nossa, e a não querer realizar tribunal em meio ao desespero humano. O desabafo requer acolhimento, sem maiores explicações.

(Continua...)

Jonathan

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Arruinado, ferido e ainda assim, íntegro (I)

1. Sorte ou azar? Quem sabe...

Resolvi iniciar mais um ano relendo o Livro de Jó, personagem dos mais humanos e fascinantes da Bíblia. “Mas justo Jó! Não dá azar ler Jó logo no início do ano?”, diriam os “crentes” mais supersticiosos – por mais caricato que pareça, há quem pense assim, afinal, como diria Gonzaguinha, “ninguém quer a morte, só saúde e sorte”.

Sorte e azar são coisas que acompanham nossos discursos sobre a vida. Há quem se renda de modo literal ao poder deles. Eu, porém, creio que minha sorte está em poder aprender com todas as circunstâncias de vida, sobretudo com as adversas, e que a adversidade não precisa ser sinal de “azar”, mas sim de que estamos vivos e somos humanos – contingentes, e não necessários. Como na música da Legião Urbana, “o sol nasce pra todos, só não sabe quem não quer”, ou só não sabe quem está alienado demais pra saber.

Quero aqui destacar um dos temas que perpassam a jornada de Jó, a integridade. Há quem use o termo como sinônimo de honestidade. A palavra, porém, indica algo maior. “Integridade” é predicado do que é inteiro, completo, indissociável. Uma das marcas da pessoa íntegra está na indissociabilidade entre suas palavras e suas ações, entre o discurso e a vida. Nesse sentido, não é preciso ser “bonzinho” para ser íntegro. Aquele que é injusto, perante certa sociabilidade, pode ser mais íntegro até mesmo que o suposto justo.

Um exemplo está em Jesus ter escolhido publicanos, prostitutas e samaritanos, injustos e indignos como exemplos maiores de integridade (“pérolas do reino”) que os justos de sua época (religiosos). Isto, pois eles são o que são, sem fingimento e “sem cera”; e na condicionalidade do que são é que dependem da graça e compaixão divinas. Já os religiosos, querem demonstrar ser o que não são, e na condicionalidade do que não são, mas afirmam ser, não apenas anulam sua dependência de Deus, como colocam fardos pesados sobre os ombros dos outros, fardos que nem eles carregam, denotando sua hipocrisia (falta de integridade).

O íntegro (ou que persegue a integridade), porém, sabe muito bem quem é e não teme assumir o que é diante de Deus e dos homens. É o caso de Jó. Mesmo arruinado e profundamente ferido, conseguiu se manter mais íntegro que seus “mui amigos”, Elifaz, Bildade e Zofar. No início, ao se deparar com a dor do amigo, até fizeram o que é certo, choraram juntos, mantendo-se em silêncio. Diante da dor... o silêncio! Mas quando Jó abre a boca e começa a escancarar seu coração e a lutar com Deus, tudo muda de figura, os amigos se escandalizam – e eu que sempre achei que amigos não se escandalizam quando a gente se expõe. Como disse o próprio Jó a seus amigos, “ao aflito deve o amigo mostrar compaixão, a menos que tenha abandonado o temor do Todo-Poderoso” (6.14). Por isso, nem todo o que se diz “amigo”...

(Continua...)
Jonathan