"Muitos já se dedicaram a elaborar um relato dos fatos que se cumpriram entre nós, conforme nos foram transmitidos por aqueles que desde o início foram testemunhas oculares e servos da palavra. Eu mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo, e decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo Teófilo, para que tenhas a certeza das coisas que te foram ensinadas" (Lucas 1.1-4).Há pelo menos três coisas que me chamam atenção nessa introdução de Lucas ao seu evangelho – e isso me ajuda a pensar na pergunta do começo.
(1) Primeiro, ele diz que “muitos se dedicaram” à tarefa a qual ele se propõe a fazer, talvez com muito mais habilidade, fôlego e extensão que ele. Imagino que Lucas, ao levar isso em consideração, pode ter pensado: “Bem, diante de tais relatos, que posso eu relatar?”. Não é esse o conflito inicial de quem se vê na posição de ter que redigir um relato: “Que posso eu escrever, se tantos já o fizeram e tão bem feito?”. Aí é que está o ponto: muitos já o fizeram, mas não com o meu olhar. Os conhecimentos podem até ser os mesmos, bem como a realidade e os temas. A particularidade, porém, está no olhar de quem escreve: suas perspectivas, experiências e maneiras de tratar o “comum”. Lucas parece ter encontrado a sua. Eu, às vezes penso que encontrei, às vezes ainda me vejo em busca.
(2) Segundo, ele diz que “investigou tudo cuidadosamente” antes, para depois produzir um “relato ordenado”. Fica evidente que esse “olhar” de Lucas não brotou do nada, sem esforço, sem pesquisa dedicada, coleta minuciosa e análise cuidadosa das informações que tinha à sua disposição. Ou seja, não se produz um “relato ordenado” sem antes investir uma boa dose de leitura e investigação sobre aquilo que se quer escrever. Há muitas besteiras sendo escritas, e boa parte delas advém da falta de informação e dedicação antes de simplesmente “se lançar” no ato de escrever. Alguém só poderá escrever bem e ordenadamente se antes leu e pensou sobre o que leu.
(3) Terceiro, o texto de Lucas tem um “para que”, indicando finalidade, propósito. Ele queria que Teófilo tivesse “certeza”, segurança acerca daquilo em que fora instruído. Há um teor testemunhal e apologético nesse empreendimento de Lucas, uma meta clara. A escrita precisa de uma finalidade para ser relevante, ainda que esta seja, como disse no começo, atender anseios e necessidades pessoais. E, ainda assim, é possível edificar outros. Henri Nouwen é um modelo nesse quesito. Boa parte de seus escritos são diários, escritos originalmente para si mesmo, como hábito, necessidade, disciplina e satisfação pessoal. Mesmo assim – ou precisamente por isso – quando publicados, ajudaram muitas pessoas a se identificarem e encontrarem seu caminho, seja ele qual for.
Quando escrevemos com um “para que”, e esse cai na graça de encontrar outros “para quês” semelhantes, dificilmente nossas palavras “voltam vazias”. O propósito, portanto, é o alvo, que ajuda a evitar que nos percamos naquilo que nós mesmos escrevemos, nem que aquilo que escrevemos se perca, caindo no vazio.
Por que eu escrevo? Porque a escrita me transforma, dá asas à boa transgressão, à chance do encontro, do diálogo, do crescimento e, com eles, a possibilidade de transformar meu ambiente e círculo de influência, por menor que ele seja.
Jonathan