sexta-feira, 24 de abril de 2009

O espetáculo da busca

No dia 30 de março de 2009 tive o prazer de ver concluída mais uma etapa em minha vida acadêmica: defendi minha dissertação de mestrado em história social na UEL. Fui tanto elogiado nas virtudes, como criticado nas fissuras que apareceram no texto, como não haveria de ser diferente. Mas desde o princípio do trabalho, fiz questão de deixar clara minha inexorável dependência do tempo e lugar a partir dos quais produzi meu discurso, e de que me rendia, assim, como sempre o fiz em minha caminhada, ao "espetáculo da busca", parafraseando Marc Bloch. Assim, asseverei, esperava que esse texto fosse também um pouco de confissões acerca das trilhas percorridas e da construção de meu fazer historiográfico.

De modo análogo, encerrei afirmando que "para o historiador, e não diferente para o historiador das religiões e religiosidades, a história é, como diria Marc Bloch (2001, p. 128), “uma vasta experiência de variedades humanas, um longo encontro com os homens”. Uma das aventuras da narrativa histórica é, a meu ver, aprender e continuar aperfeiçoando a arte de transformar esses encontros em enredos fascinantes para o leitor".

A palavra final de minha orientadora foi: "Em seu trabalho encontro um enredo fascinante". Foi uma prazer ouvir isso de gente tão gabaritada, para dizer tanto algo desse tipo como avaliar de modo totalmente contrário. É boa a sensação do dever cumprido, e de agora poder olhar pra trás e ver que valeu a pena, todo o esforço, as horas de sono perdidas, o processo custoso e prazeroso de pesquisa e todos os momentos em que, muitas vezes depois de uma frustração por não conseguir sair do primeiro parágrafo, fui surpreendido pela luz da divina inspiração de um insight que de repente te arrebata e te faz dizer "eureka!".

Bem, falei tudo isso, mas ainda não disse nada sobre o trabalho. Meu objeto de estudo foram as metamorfoses do sagrado no protestantismo, a partir de um estudo de caso na Igreja Presbiteriana Independente Filadélfia em Londrina. Abaixo, segue o resumo da dissertação, uma espécie de síntese do que nela desenvolvo.

MENEZES, Jonathan M. As Metamorfoses do Sagrado no Protestantismo Brasileiro: o caso da Igreja Presbiteriana Independente Filadélfia. Londrina (1972-2008). Londrina: UEL, 2009. 183p. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em História Social) – Centro de Ciências e Letras Humanas da Universidade Estadual de Londrina. Departamento de História.

O estudo do protestantismo é algo que tem fascinado a muitos pesquisadores nos últimos anos. A multiplicidade que o constitui, as combinações que ele engloba e as metamorfoses pelas quais tem passado são o cerne temático dessa dissertação. Com a finalidade de contribuir com as pesquisas vigentes no campo da história das religiões e religiosidades, esse trabalho visa estudar as metamorfoses do sagrado no protestantismo brasileiro, a partir do caso da Igreja Presbiteriana Independente Filadélfia, em Londrina. Para tanto, articulado teórica e metodologicamente com o pensamento de Michel de Certeau, e com as noções de prática e experiência, empreendeu-se uma investigação que combinou diferentes fontes: orais – entrevistas com líderes e membros da IPI Filadélfia e outras pessoas direta ou indiretamente envolvidas nos processos analisados – e escritas, quais sejam, documentos próprios da igreja e outros produzidos por líderes e teólogos da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, seja em âmbito institucional ou de caráter mais acadêmico. Constata-se, a partir desse caso, que o tema do “avivamento”, que gerou crises e divisões na IPI na década de 1970, é um assunto recorrente na história da IPI Filadélfia, e que reapareceu de modos diferentes em diferentes períodos, mudando perspectivas, gerando metamorfoses. Postulou-se que o sagrado que se manifesta nesse âmbito não é fruto de mera repetição de modelos, mas de recriações, reinvenções da tradição, a partir da experiência singular de fé das pessoas em seus contextos particulares de vida. Em virtude disso, tanto nos discursos como nas práticas religiosas ocorreram rupturas, que ora penderam para uma flexibilização, ora para um reforço de trincheiras religiosas. Metamorfoses do sagrado se constitui, portanto, em um emblema de posturas e práticas que ora combinam, ora repelem elementos díspares e que revela as fissuras e inversões do pensável contidas no hiato engendrado numa comunidade de praticantes entre a fé representada e a fé experimentada.

Palavras-chave: Igreja Presbiteriana Independente Filadélfia; avivamento; protestantismo; metamorfoses do sagrado; práticas; experiência; tradição.

Jonathan

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Em respeito aos tristes (por Ricardo Gondim)

Confesso que sou introspectivo e, muitas vezes, melancólico. Quando ainda era criança, gostava de ficar debaixo de uma árvore, sozinho, para pensar na vida. Continuo assim. Prefiro o silêncio às festas, as refeições com poucas pessoas aos banquetes. E se não tomar cuidado, facilmente caio em depressão.

Essa minha índole quieta não me importuna, mas eu percebo que ela causa alguns constrangimentos na comunidade evangélica. Poucas vezes escrevi textos cinzentos, mas logo fui docemente aconselhado a não repetir tal deslize. Avisaram-me que os crentes não estão preparados para lidar com a tristeza. E que as pessoas gostam de artigos otimistas. Realmente! O movimento evangélico se alastrou no final do século XIX, num tempo em que se respirava um clima de grande otimismo. Acreditava-se que em poucos anos, evangelistas, missionários e pastores converteriam o mundo, antecipando o iminente reino milenar de Cristo. Nosso berço foi embalado com a promessa de que seríamos a “última geração antes do arrebatamento”. Nascemos num clima de euforia. Portanto, não toleramos qualquer mensagem que revele um jeito menos bem-sucedido de encarar a vida.

Sinto-me censurado quando exponho meus sentimentos contaminados de uma vaga e doce tristeza. Sentimentos que, a bem da verdade, me comprazem e me conduzem à meditação. Mas como explicar isso para minha geração? Fico sem saída, pois não quero só escrever textos sobre como me sinto campeão; recuso teatralizar minha solidez e não quero enganar sobre minha santidade.

Em diversas ocasiões tenho a sensação de que estou só entre gigantes da fé. Haveria mais gente como eu? Sei que existem profetas, poetas e santos que também convivem com o desalento. Celebro a honestidade de todos os que, corajosamente, detectam sentimentos menos brilhosos e, iguais a mim, não se sentem culpados.

Ditosos os que choram, pois reconhecem que a vida não é composta só de luzes. Quem busca apenas o riso, querendo perenizar o prazer, cairá no profundo abismo do desencanto. Só os tristes sabem os segredos das noites sem lua e que algumas dimensões nobilíssimas da nossa humanidade somente se expressam em corredores de morte. Grandes são todos os que permanecem em pé mesmo quando não há luz nenhuma.

Ditosos os que entram em contato com suas angústias. Os que ocultam suas inquietações com frases e clichês religiosos se condenam à superficialidade. Não existe tese religiosa que consiga se impor com mais força que a própria vida. De nada vale repetir slogans que prometem um mundo cor-de-rosa. Mais cedo ou mais tarde virá a tempestade que assola a casa. Ventos contrários varrerão projetos cautelosos e, quem não edificar sua vida na verdade, ruirá implacavelmente.

Ditosos os que não se consideram emocionalmente incólumes. Eles sabem que ninguém possui controle direto sobre suas emoções e reconhecem, inclusive, que serão traídos pelos incidentes do cotidiano. Eles vão até o fundo do poço e não se sentem fracassados, pois sabem que tanto alegrias como tristezas são passageiras.

Ditosos os que admitem suas depressões. Eles não tentam sublimar as inquietações com ativismos. Sofrimento é a única dimensão da vida comum a todos os homens e mulheres. Quem tenta blindar-se das tristezas precisa também se proteger da alegria. Fugir do sofrimento significa amortecer a felicidade.

Ditosos os que podem lamentar em público. Eles não precisam de sorrisos plásticos, de discursos demagógicos ou da arrogância religiosa, pois se sentem acolhidos em sua honestidade. Eles sabem que não serão apedrejados quando se mostram frágeis, porque vivem entre amigos verdadeiros.

Ditosos os que se parecem com Jesus de Nazaré. Ele nunca mentiu sobre sua angústia ou solidão. No jardim, afirmou: “Minha alma está triste até a morte”. Na cruz bradou: “Pai, por que me desamparaste?”. Mesmo depois desses desabafos, Deus lhe deu um nome que está acima de todo nome. Se o Filho Unigênito pôde falar assim, ninguém deve temer revelar o tamanho de sua vulnerabilidade.

Esses ditosos podem seguir tranqüilos pela vida, porque a tristeza, segundo Deus, não é para a morte. Aleluia.

Soli Deo Gloria.

Ricardo Gondim

(Artigo extraído de: www.revistaenfoque.com.br)

terça-feira, 14 de abril de 2009

A atitude fundamentalista e suas consequências

O fundamentalista é um fanático… e seu fanatismo o torna uma contradição ambulante, em que ele nega, por suas ações, a fé que afirma professar. Isto não significa que o fundamentalista seja um amigo dos paradoxos. Muito pelo contrario, ele os teme, já que, diferentemente do que a maioria dos fundamentalistas imagina, é na razão (no racionalismo filosófico e na razão instrumental pragmática) e não na fé, que o fundamentalista encontra apoio teórico para suas ações.

O fundamentalista é antes de tudo um inquisidor. Ele persegue e destrói para proteger e salvar, e está disposto a ir às últimas conseqüências para isso. Como qualquer inquisidor, o fundamentalista vê a liberdade de pensamento e de expressão como uma ameaça. Ele entende todo questionamento e toda crítica como formas dissimuladas de ataque, o que evidencia sua neurose paranóide.

O fundamentalista tende a conviver somente com os outros fundamentalistas e, por isso mesmo, acaba isolando-se cada vez mais, o que cria um circulo vicioso de obscurantismo, guetoísmo e uniformidade. Para o fundamentalista, o demônio é o “outro”, isto é, o demônio é identificado com toda forma ostensiva de alteridade. Em vez de dialogar com o outro, ele o hostiliza. Em vez de ver no outro um espelho através do qual ele poderia contemplar suas próprias fraquezas para seu próprio bem, o fundamentalista vê no outro (e na alteridade) uma ameaça.

O fundamentalista religioso se vê, em geral, como dono da verdade, detentor de uma revelação que os outros não possuem ou não compreendem. Ele não enxerga suas próprias limitações, sua humanidade, e se vê, portanto, como mais que humano, ou pelo menos como um ser humano mais privilegiado, selecionado por Deus para um conhecimento secreto ou para uma missão sagrada especial. O fundamentalista não percebe que sua alegada verdade é apenas uma possibilidade entre as outras, e que a única forma de avaliá-la e comprová-la seria estabelecer um diálogo com seus semelhantes que pensam diferentemente, para que, no jogo das interpretações, as incoerências se manifestassem e todos crescessem com isso.

(...) O fundamentalismo é um veneno terrível para o cristão e para as igrejas cristãs. Ele tende a matar lenta e imperceptivelmente, porém também inevitavelmente, a fé dos indivíduos das comunidades. O fundamentalismo é um veneno tão ruim ou até pior que o liberalismo teológico que tanto teme e combate. Ao combater o liberalismo teológico, os fundamentalistas acabam por rotular como liberalismo todas as idéias e noções que sejam um pouco diferentes das suas próprias, e acabam por declarar “liberais” todos os que os questionam ou que problematizam as questões que eles querem fazer crer serem absolutamente cristalinas.

(...) Os pastores fundamentalistas entram facilmente em crise ministerial, ou então se tornam pastores corruptos e politiqueiros, ou ainda aderem a uma piedade pervertida em que se vêem como responsáveis por manter as igrejas protegidas das chamadas heresias. Em nome dessa causa, seus sermões tornam-se teológicos, e a palavra de conforto e orientação que deveria vir do púlpito se torna cada vez mais escassa e a congregação fica sofrendo de inanição espiritual o que acaba gerando um círculo vicioso de maus pastoreios e falta de nutrição espiritual gerando igrejas fracas e que já não mais são capazes de reconhecer o mau pastoreio e a má nutrição, e não são capazes de expurgar de si esses males.

Ricardo Quadros Gouvêa

(Trechos de: GOUVÊA, Ricardo Q. A piedade pervertida. Um manifesto anti-fundamentalista. Em nome de uma teologia de transformação. São Paulo: Grapho Editores, 2006, p. 34-36).

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Teologia: diversão e aprendizado

Quero iniciar com uma afirmação nada original: a vida é um eterno aprendizado. Infelizes são aqueles que no meio do caminho perdem a capacidade de, parafraseando o saudoso Gonzaguinha, "cantar e cantar e cantar, a beleza de ser um eterno aprendiz". Logo, se a teologia versa sobre a vida, ela é, de igual modo, um conhecimento em mutação, uma ciência modesta e disciplinada de eternos aprendizes que não se entregam facilmente ao sabor das respostas prontas, nem de palavras decoradas, tampouco se deixam orientar pelo que dizem as estatísticas, e muito menos se conformam com um "ministério de banalidades", que não problematiza, não pensa, não sente, não se inconforma ou se indigna, e por isso torna-se ineficaz e incapaz de proferir palavras ou realizar ações de cunho profético.

Não! A teologia é a matéria-prima dos inconformados! Dos que não aceitam pacotes, nem tampouco produzem pacotes. E por essa vocação, creio que quando temos uma teologia presa e gerida apenas pelos dogmas e doutrinas não temos teologia, temos arbitrariedade. Arbitrariedade acerca do que é, de verdades imutáveis, indeléveis, de absolutos que nada têm a ver com Deus e que muitas vezes negam o valor da vida que Deus tanto preza, e também do que jamais pode ser, dentro do que estão incluídas a subversão, a heresia e a transgressão, assim categorizadas, muitas vezes, pelo simples fato de questionarem a ordem estabelecida. Teólogos, na melhor acepção da palavra, não se rendem a tais categorizações, tantas vezes simplistas e unilaterais.Por não se render a arbitrariedades e por não negligenciar o seu papel, que é falar de Deus, ela não julgará esse papel (falar de Deus) como um papel estritamente dela (como se pelo simples manuseio de métodos científicos ela pudesse chegar a ele), mas de todo ser humano.

Nesse sentido, todo ser humano pode ser um teólogo, à medida que pensa, pulsa, sente e crê em Deus agindo na criação e na existência. Dessa forma, eu melhoraria um pouco a afirmação de que "teologia nada mais é do que o estudo de Deus". Isso, pois Deus, como um ser eterno, não pode ser estudado. "O Deus do evangelho", diria Karl Barth, "não é, portanto, nem coisa, objeto, nem idéia, princípio, verdade ou soma de verdades, nem expoente pessoal de tal soma" (Introdução à teologia evangélica, p. 12).

Podemos, sim, falar de nossa experiência de Deus, isto é, de Deus como um ser pessoal e relacional. E, exatamente por desejar o relacionamento, escolheu se revelar. Assim, diriam alguns teólogos, teologia é o estudo de Deus em sua revelação. Revelação que desce, palavra que se diviniza, divino que se verbaliza, e verbo que se humaniza. Deus se fez ser humano! Essa é uma das grandes afirmações de fé das quais a teologia deve se valer. E esse Deus, assim, age na história, como temos estudado até aqui. De tal modo que o "objeto" da teologia, por assim dizer, está em movimento, e ela também precisa estar. O assunto da teologia evangélica, citando outra vez Barth, é Deus – Deus na história de suas ações. Não por aquilo que somos, façamos ou nossas capacidades, mas por aquilo que ele é e nos concedeu. Assim, a teologia é uma resposta inteligente e reverente ao gracioso “sim” de Deus, isto é, à sua “auto-revelação benigna e amiga para com o ser humano” (Introdução à teologia evangélica, p. 13).

Sim, é uma tarefa sem fim, permanente, renovável, criativa e que só germina em liberdade, na liberdade do Espírito. Logo, toda teologia autêntica é uma teologia espiritual, parafraseando Gustavo Gutierrez. Já disse antes, mas não custa reiterar: para mim, o lugar vivencial por excelência da teologia é a vida, assim como orar é viver e como Deus é sinônimo de Vida e Liberdade plenas. Só se pode conhecer a Deus à medida que se celebra intensamente o viver, o viver junto com outros, imersos na realidade. A teologia que se vale da experiência de Jesus (o Deus Encarnado) está totalmente ancorada em, e em permanente relação com, a realidade que nos cerca, tantas vezes dura e cruel. Segundo Eugene Peterson, “Deus não se revela à realidade para que a contemplemos como meros espectadores, mas para que possamos nela ingressar e viver”.

Continuemos debatendo e fazendo teologia com diversão e aprendizado...

Jonathan

terça-feira, 7 de abril de 2009

As tradições, o Evangelho (Final)

As dinâmicas do evangelho nos levam a perguntar: de que vale um exterior limpo, se lá dentro, lá no fundo, há muita sujeira escondida? Jesus diria: “Limpa, limpa primeiro, fariseu, esse teu interior, porque a limpeza de fora é conseqüência. Tira a trave do teu olho antes de acusar o cisco no olho do teu irmão”. E quantas traves não passam despercebidas, quantos camelos não são engolidos com muito sal e pimenta – o orgulho, a hipocrisia, a falsidade, a opressão, a injustiça, a mentira, o egoísmo... Esses não são pecados? Mas na aparência... Ah, quanta beleza! Falsa beleza, sórdida e feia “beleza”, “beleza americana”.

E qual deve ser a resposta de cristãos autênticos a esse modo de vivência que nos cega e emudece em relação à manifestação de Deus? Quanto a mim, gente, eu prefiro me juntar ao Brennan Manning e dizer: Eu sou um maltrapilho do Pai! A resposta mais honesta e humanizadora para mim é: “Eu quero ser pobre de espírito”. Chega! Basta de viver a ilusão de que existe algo nessa vida que me preenche e completa mais que a graça. Cansei de lastimar por meus fracassos mais óbvios, de me autoflagelar por causa de minhas limitadas habilidades e sofrer com o golpe diário da reprovação. Deus já me aprovou para sempre quando, em Cristo, disse: “Está consumado!”.

Não consigo e nem preciso me adequar aos caminhos infrutíferos para o reino dessa visão legalista de pureza que por aí se tem pregado. Não! Não é preciso ser menos humano para ser puro na presença de Deus, nem é necessário negar aquilo que de natural e bom ele criou para ser santo. Quero, sim, aprender o que é o amor incondicional do Pai, a adentrar no mundo das pessoas, mesmo quando não me identifico muito bem com esse mundo, às vezes tão diferente do meu. O universo dos “pequeninos” de Deus: as criancinhas, os pobres e oprimidos, as prostitutas e os cobradores de impostos. Nada do que é humano me pode ser estranho. Quero, por fim, corroborar com as seguintes palavras de Manning:
“Quanto mais crescemos no Espírito de Jesus Cristo, mais pobres nos tornamos – e mais percebemos que tudo nesta vida é um presente. A tonalidade fundamental da nossa vida passa a ser ação de graças humilde e jubilosa. A consciência da nossa pobreza e de nossa inépcia leva-nos a regozijar-nos na dádiva de termos sido chamados das trevas para a maravilhosa luz e transportados ao Reino do amado Filho de Deus. O homem ou a mulher pobres escrevem ao Senhor nove cartas que dizem: ‘Bom é’. Numa conversa, o discípulo que é verdadeiramente pobre no espírito sempre deixa a outra pessoa com a sensação de que a vida do discípulo foi enriquecida por ter conversado com ela. Não se trata de falsa modéstia nem de humildade fingida. A vida dele ou dela foi de fato agraciada e enriquecida. Ele não é apenas escapamento, sem abertura para a entrada de fora. Ele não se impõe aos outros. A pobreza espiritual dela a capacita a adentrar o mundo do outro mesmo quando não é capaz de identificar-se com esse mundo – por exemplo o mundo das drogas, o universo gay. Os pobres de espírito são as menos condenatórias das pessoas; convivem bem com pecadores. O homem ou a mulher pobres do evangelho reconciliaram-se com sua existência falha. Estão conscientes de sua falta de inteireza, sua incompletude, o simples fato de não apresentam de forma alguma os requisitos necessários. Embora não apresentem desculpa para o seu pecado, estão humildemente conscientes de que o pecado é precisamente o que os levou a se atirarem à mercê do Pai. Eles não fingem ser mais do que são: pecadores salvos pela graça”.

(Brennan Manning. O Evangelho Maltrapilho. São Paulo: Mundo Cristão, 2005, p. 81-82).
Jonathan

sexta-feira, 3 de abril de 2009

As tradições, o Evangelho (II)

Não vejo Jesus sendo um pouco sequer indulgente com essa corja. Pelo contrário, ele põe o dedo na ferida e aponta tremendas contradições existentes neles. Enquanto se apegam às suas tradições como carrapatos num cão, negam e subvertem o sentido da própria lei, que afirmam defender. “É bem isto, rejeitais o mandamento de Deus para guardar a vossa tradição... anulais a palavra de Deus com a tradição que vós transmitis” (v. 9, 13).

Isso me lembra Paulo quando escreve aos Gálatas, perplexo com a facilidade com que aqueles haviam se desviado da verdade do Evangelho, de sua vocação para a liberdade, para se render à escravidão da Lei, da justificação por esforço próprio. Ele diz: “De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na Lei; da graça decaístes” (Gl 5.4). E, contra os judaizantes, os líderes que faziam aqueles cristãos tropeçarem, ele dispara: “Tomara até que se mutilassem os que vos incitam à rebeldia” (Gl 5.12).

Tanto como em Jesus, não vejo em Paulo a menor comiseração ao se referir a esses líderes-abusadores do rebanho. Jesus compara essa corja aquela a qual Isaías se referia dizendo: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim; é em vão que me prestam culto, pois as doutrinas que ensinam não passam de preceitos de homens” (v. 6-7).

Não é muito complicado, para quem tem o mínimo de sensatez e intimidade com a Palavra, identificar rupturas e diferenciar uma tradição (mesmo as mais mascaradas de piedade) e o Evangelho puro e simples. Lembro de uma palavra que Carlos Queirós disse certa vez numa palestra, quando falava do Evangelho e da igreja. Ele afirmou que o que Jesus chamava de “igreja” não era esse negócio que a cristandade foi criando. E disse mais: que o “evangelho” não pode ser comercializado. O evangelho caricaturizado e distorcido pode até ser. Mas o evangelho de Jesus de Nazaré não. E indagou: ora, quem quer comprar o direito de dar a outra face? Quem comercializaria o direito de perdoar que te ofende ou de amar quem é seu inimigo? Se encontrarem alguém, me avisem...

Nesse texto, Jesus oferece algumas pistas de como fazer isso:
1) Tradições são preceitos de homens, enquanto o evangelho significa boas novas de Deus para o mundo.
2) A tradição se apega mais a rituais, doutrinas bem elaboradas e fechadas, e a uma moralidade exterior (como a de não lavar as mãos antes de comer), enquanto o evangelho quebra convenções religiosas, paradigmas, tradições e gera vida, concerne à vida, ao ser humano integral.
3) A tradição exige que a pessoa mantenha uma exterioridade limpa, polida, com aparência “santa”; o que corresponde, numa linguagem pastoril, a um rebanho sempre bem “tosadinho” e em linha. Pura fachada. Só que por dentro, humm... O bolor pode comer solto, soltinho. Em contrapartida, o evangelho não se prende a essas amenidades do exterior, à artificialidade da fé: cosmética, auto-indulgente, fisiologista. O que está e vem de dentro é mais importante pra Deus.

(Continua...)

Jonathan

quinta-feira, 2 de abril de 2009

As tradições, o Evangelho (I)

Ler: Marcos 7.1-13
1.
A fama de Jesus já havia percorrido toda a região da Galiléia, palco de seu ministério nesse momento. As pessoas o reconheciam por onde quer que ele andasse. Prova disso está em sua passagem por Genesaré (Mc 6.53-56). Mal descera do barco com os discípulos e as pessoas já o reconheciam, o cercavam, tocavam nele, traziam os doentes e enfermos, pediam para que os deixasse tocar nele, mesmo que fosse apenas a franja de sua veste, para que ficassem curados.
2.
Por conseguinte, a vinda dos fariseus e escribas a seu encontro, num momento posterior, como relata o texto acima indicado, não me parece gratuita ou desproposital. Eles já sabiam muito bem quem era Jesus e o que ele representava. De cara, Marcos aponta certa predisposição desses em identificar possíveis falhas que pudessem desabonar a reputação de Jesus e de seu bando. Marcos descreve algumas características que permeavam a vida desses mestres da Lei e determinavam seus “absolutos” (v. 3-5). A religiosidade desses homens era marcada pelo rito, pela cerimônia e pela obediência às tradições dos antigos. Essas tradições eram transmitidas de geração em geração. Eram absolutos, “verdades” dogmáticas defendidas a pulso de aço.
3.
Todavia, embora esses “absolutos” fossem tomados como leis divinas, poucos correspondiam, de fato, ao que a Lei preceituava, e muitos, aliás, anulavam a própria palavra de Deus. Esses homens eram mestres da palavra, mas seus absolutos não eram os absolutos de Deus. Essa foi a denúncia de Jesus. De modo análogo, penso que isso ocorre com muitos de nossos “irmãos” hoje. Algumas idéias que percorrem o meio cristão com “cara” de verdade absoluta de Deus, são, na realidade, “absolutas perversões” em relação ao que a Palavra diz. São verdades-mentira; só servem como manutenção de uma ordem que há muito tempo deixou de ser divina (se é que um dia o foi), não passando de convenções, “signos de rebanho” (como diria Nietzsche), com a finalidade de controle das pessoas e subsistência das instituições e seus “cargos”, que mais parecem “encargos”.
4.
Longe estão de ser absolutos de Deus, mas artimanhas, tanto daqueles que pensam poder receber mais fazendo muito mais para Deus (enquanto só fazem para si e satisfazem apenas a si mesmos), quanto daqueles (os líderes do rebanho) os quais, por torpe ganância, abusam do poder conferido por seu posto e fazem perecer mental e espiritualmente os pequeninos a quem o Senhor quis dar o reino, enquanto eles 'triunfam" em suas abomináveis formas de espiritualidade e santidade. Transformaram o ministério do sacrifício de Cristo num antro de banalidades. Como diria o profeta Jeremias, "até os profetas não passam de vento, porque a palavra não está com eles, as suas ameaças se cumprirão contra eles mesmos" (Jr 5.13).
5.
O único caminho para esses é o de converterem-se de seus maus caminhos e passar a viver íntegra, honesta e livremente em Jesus Cristo, sendo sinceros consigo mesmos, com as outras pessoas e com Deus, sobre qualquer matéria, e em especial, as da fé. Costumamos dizer: “Deus tenha misericórdia dessas pessoas” (mais?), como se Ele agisse pautado por “pena”. Não! A misericórdia (o não recebimento do castigo que merecíamos) não se existe sem a justiça (a retidão que nos cabe). Não servimos a um Deus indulgente à moda humana, que sente “dó” da gente, mas, sim, a um Deus justo, que faz justiça, e o faz pautado no amor e na graça (o favor que não merecemos), derramando sua misericórdia a quem quer enquanto aplica a justiça. Não suportaríamos caso sobre nós pesasse apenas a justiça, pois longe estamos de ser “justos” por nossos próprios esforços.

(Continua...)
Jonathan