O tempo e as variadas situações vão revelando o ser e a disposição de cada pessoa, escondidos muitas vezes por trás de uma redoma muito frágil de proteção. Não me esqueço da pergunta central do filme "Crash, no limite": Você acha que se conhece? No que a dor, o apuro, a pressão, a doença, a perda, o poder, o sexo, o dinheiro, o moralismo, a violência, a raiva, o descontrole, e as paixões como um todo podem nos transformar? A calmaria, o grito de paz (onde não há paz), a prosperidade e a felicidade não duram para sempre. E quando elas passam o que é que sobra da gente? Para onde vão nossa coragem e nossa integridade?
Não parece ser à toa que a máxima de Friedrich Nietzsche no prefácio à Genealogia da Moral continua sendo útil. Dizia ele que "nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos?".
Inocente, ignorante ou mal-intencionada (ao menos momentaneamente) é a pessoa que se lança precipitadamente na tentativa de se definir como isto ou aquilo; como "bom", "mal", "gentil", "covarde", "gênio", "incompetente", "boa esposa", "bom pai", "filho irrepreensível", "imprestável", "generoso", "político honesto", "cristão exemplar". Bem diz a sabedoria de Eclesiastes: "Todavia, não há um só justo na terra, ninguém que pratique o bem e nunca peque" (Ec 7.20). Quão tola não é a pretensão à indefectibilidade? Quão destrutiva não é a autocomiseração ou o sentimento de que ninguém te ama, de que você não presta para nada, de que tudo o que faz não serve, não dá certo; ou pior, de que sua índole é essencialmente má e nada pode ser feito sobre isso?
Como seres tão complexos como somos podemos nos deixar reduzir a tão pouco, e por tão pouco? Como podemos passar tanto tempo na casa da mentira e da ilusão, respirando o ar carregado da falsidade? Como podemos vender tão facilmente nossa integridade por causa de um nome, de uma posição, de uma ostentação, de uma reputação? Não é à toa que rimos alto e nos divertimos ao som de uma boa música, regada de companhias furtivas e muito álcool, num momento, e noutro, quase que paralelo, precisamos nos entupir de Lexotan e Rivotril pra sobreviver àquele dia e no dia seguinte começar tudo outra vez. De fato, mergulhamos nesse mar sem fim do desconhecimento, com grande risco de jamais nos encontrarmos.
Ser feliz, ter sucesso, prazer, bem-estar e qualidade de vida em tudo é bom demais, é o que todo mundo quer e isto não é mal em si. A questão está no preço que pagamos para entrar nesse universo. Quanto vale a felicidade? Qual é o preço do bem-estar? Se o alto custo for negar a própria vida, suas idiossincrasias e paradoxos; abandonar-se no desconhecimento, ignorando a aventura que é o aprender a viver pra saber viver bem e o autoconhecimento; se para isso o outro, o próximo tiver de se tornar, para mim, não mais que instrumento útil ou pedra de tropeço, preferirei e escolherei, conscientemente, não querer ser feliz – pelo menos não nesses moldes.
A consciência pode ser uma doença, como diz Miguel de Unamuno; mas entre a consciência que me aprofunda na realidade, e a feliz e consentida ignorância, que me aliena dela, ainda fico com a primeira. E me recuso a reduzir a mim e aos outros a rótulos fáceis, baratos e que desmancham no ar. Afinal, quem sabe o dia de amanhã? Quem conhece a própria reação ao próximo ato, à circunstância seguinte? Quem pode prefigurar o rosto que terá de enfrentar na próxima vez em que se vir diante de um espelho?
Jonathan
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